Cheerful

 

É uma manhã úmida e escura de um mês chuvoso. As capas de chuva nada podem contra a fina garoa. Sinto-me molhada até os ossos. O café me queimou a boca. Vida de merda. Notei um fio de cabelo caindo em cima do meu olho. Tentei prender, mas ele caiu de novo. Pensa que vai levar a melhor, cabelo? Toma! Arranquei o fio. Cabelo de merda.

-- Compra espelho! Dois real! Só na minha mão! Vai levar, gatinha?

Olho para cima, e vejo um cara embaixo de uma tonelada de rastas, espelhos e roupas coloridas, amarelo, verde, vermelho, preto. Nos espelhos vejo esse cabelo descolorido, totalmente zoneado, preso com um pauzinho, minhas olheiras, as veias azuis passando por debaixo da minha pele, esse agasalho de lã surrada... Cadê os meus seios?! Que horror. Se estou assim agora, imagina daqui a trinta anos.

-- Não. Cai fora.

Volto a olhar o fio de cabelo na minha mão. Viu, cabelo? Agora você não é mais nada para mim. Larguei-o no chão. Achei que nada feriria mais os seus sentimentos do que o desprezo. Mal posso esperar pelo resto do dia. Suspirei e apoiei minha cabeça com as mãos, enquanto olhava para o meu prato vazio.

Alguém está me olhando. Acho que o sujeito da mesa do canto estava me olhando. Não, está escrevendo sei lá o quê. Tive a mesma sensação umas três vezes, mas sempre que olho ele está escrevendo. Deve ser impressão.

Sujeitinho estranho. Tem as órbitas dos olhos vermelhas, as maçãs do rosto saltadas. É meio ossudo, mas não parece fraco. Olhos, cabelos e roupas pretos.

Uff. Comecei a mexer o meu prato, procurando reflexos psicodélicos.

Não pode ser impressão. Porra, o cara não para de olhar para cá. Quer brincar? Eu topo! Comecei a encará-lo. Qualé?

Ele tomou o maior susto e desviou os olhos para o papel de novo. Agora já era, já sei que você estava me olhando. Cruzei os braços, me ajeitei na cadeira, cruzei as pernas e continuei encarando. Quer olhar? Estou aqui!

Parou de escrever. Está vendo se a barra está limpa com o canto dos olhos. Desiste, porque eu vou continuar te encarando. Quero ver como vai terminar essa palhaçada.

Ele olhou de novo. Ele está me olhando, dessa vez não desviou. E aí? Vai ficar aí parado me olhando?

Ele relaxou o rosto, num sorriso discreto. Hum. O que ele está querendo? Apoiou a cabeça numa mão, se debruçou sobre a mesa e continua me encarando. Ha! Que situação ridícula... Não acredito que isto está acontecendo comigo. Está começando a ficar interessante... Como será que vai terminar? Será que só vai ficar nisso?

Ele desvia o olhar e volta rapidamente, várias vezes. Desiste, eu sou melhor nesse jogo. Vou ficar te encarando até o final. Putz, esse negócio está realmente muito divertido. Ele está sorrindo! Que é isso? Ele cruzou os braços -- não, ele está abraçado a si mesmo. Deixa eu trocar de perna, que já estava com a perna dormente de ficar cruzada.

Piscou um olho. Você está achando tudo muito engraçado, não é? Desiste, eu não caio em paquera barata.

Vai falar algo -- parou -- se levantou vem para cá. OK, pago para ver. Se apoiou na mesa... Está com uma expressão estranha no rosto...

--Cara, você é a mulher da minha vida!

Fica!