O DESERTOR

Me encolhi para me proteger dos estilhaços, que voavam em todas as direções. Alguns companheiros gastavam o que restava de sua munição atirando aleatoriamente. O barulho, a fumaça e a escuridão impediam qualquer contato visual com os ingleses. Eu já não tinha certeza sobre de que lado estavam os inimigos e de que lado estavam os nossos, e acredito que aqueles que atiravam no escuro também não. Enquanto isso, juntava minha tralha no intento de escapar vivo daquele inferno, não importava para onde.

O barulho de metralhadora à minha direita parou. Não me demorei a examinar o cadáver do atirador. Pulei fora da trincheira. Ainda fedia às semanas de lama, bosta e frio que passei ali, aguardando a chegada dos ingleses. Mal tive tempo de hesitar, uma explosão destruiu o abrigo e me arremessou para longe. Não sei para onde corri em seguida, nem por quanto tempo.

O fato é que, no meio da correria, dei de cara com um inglês carregando seu fuzil. Acelerei ainda mais em sua direção, gritando "CORRE! CORRE!". Desarmado e sentindo a morte iminente, o soldado mergulhou sua cara no chão, e antes que pudesse voltar-se contra mim, eu já havia desaparecido no escuro.

Não me lembro de ter adormecido. Pela manhã, uma baioneta me acordou e me levou a um campo de prisioneiros.

Meses de serviço militar tinham deixado o meu estômago dormente. Já havia passado alguns dias desde que eu tivera uma refeição, mas não me atrevi a pedir comida aos ingleses. Embora eles estivessem em situação melhor do que a nossa, também não pareciam confortáveis em seu campo. Meu atrevimento estava tão ausente que me limitava a passar o tempo brincando discretamente com a grama seca que crescia ao meu redor. Tinha me convencido de que iria sair vivo, e despertar a atenção deles não seria uma forma de alcançar essa meta.

Nós prisioneiros dormíamos expostos ao vento e a neve. Assim, antes que pudéssemos apresentar algum sinal de inanição, morríamos em decorrência do frio e da sujeira a que estávamos relegados. As valas comuns ficavam cheias rapidamente, mas em decorrência do frio, não havia cheiro de morte. Durante o dia esperávamos a noite com ansiedade, para que, durante o sono, pudéssemos esquecer o frio e a privação. Durante a noite, esperávamos o dia com a mesma ansiedade, para que o sol espantasse a ameaça da morte pelo frio. Pouco havia para fazer além de esperar.

Foi aí que, numa dessas noites de frio e tédio, ouvi uma gritaria vinda das barracas dos ingleses: estavam moendo um prisioneiro a porrada. Acho que ele havia tentado roubar a sua escassa comida. Um dos soldados, presumivelmente um oficial, queria que o prisioneiro corresse. O rapaz hesitava, tanto por estar ferido quanto pela inércia que a condição de prisioneiro acostuma. Cansado de bater, o oficial deu uma rajada para o ar. Entre tropeços, o prisioneiro tentou correr alguns metros. O oficial mirou na cabeça e, com uma só bala,espatifou-a.

 

Não sei se me recordo bem do que se passou em mim naquele momento. Sei que se pudesse trocar a destruição do mundo por um segundo de sofrimento para o inglês assassino, eu o teria feito sem hesitar. Me envergonho em pensar que não senti compaixão pelo prisioneiro, mas apenas ódio, ódio e vontade de matar. Minha consciência deixou de guiar meus atos para se tornar apenas observadora de meu comportamento mecânico.

Uma coronha me empurrou para o chão com rudeza. Mesmo no escuro, reconheci o soldado que, por pura omissão, deixei de matar.

-- What's your problem? Never seen death before?

Notei que haviam lágrimas sob meus olhos, que toda minha face estava contraída, os dentes a mostra, e que meus dedos haviam arranhado a terra nervosamente.

-- That's my first murder, Sir. -- respondi, entre os dentes.

DOR! Meu braço doía como não saberei expressar. O assassino se aproximou sem que eu tivesse notado e acertou um golpe de coronha no meu cotovelo. Me contorcia no chão, sem poder me mexer.

-- Watch your tongue, bastard! You'll get a hole in your wise head.

Chutou meu estômago. Parei de respirar. Me abandonei à morte.

-- Don't push your luck, bastard.

Esperei o tiro por uns quinze minutos. Depois fui relaxando, até dormir.

Mais tarde, acordei molhado com minha própria urina. A roupa estava toda empapada, e já começava a congelar. Morrer de frio é ruim; morrer congelado em urina, é degradante. Comecei a alucinar. Procurava qualquer coisa que me proporcionasse calor. Qualquer coisa que me fizesse sair da situação específica de morrer congelado em minha própria urina. Eu queria um alvo. Se seria um cobertor, uma ação ou um sentimento o que me salvaria daquela situação, eu não estava em condições de analisar. O alvo poderia ser qualquer coisa. Comecei a odiar. No ódio encontrei o assassino. No assassino encontrei o alvo.

 

Nunca imaginei que matar fosse algo tão simples. Não sei como ninguém me surpreendeu. Me levantei, fui até a barraca do assassino, que, talvez por ser um oficial, dormia separado, catei uma faca e o retalhei. Depois saí e voltei ao meu cobertor congelado e dormi tranqüilo. O frio cessou.

Pela manhã um dos prisioneiros estava faltando. os ingleses atribuíram a ele o assassinato. Não houve buscas; não havia interesse em recuperar um prisioneiro perdido na neve, talvez já morto. Além do mais, o moral dos ingleses não estava muito melhor do que o nosso.

A minha sobrevivência não me importava mais. Estava muito, muito cansado, estava apático, havia matado um homem. Agia maquinalmente. Quando os mantimentos dos ingleses chegaram, e finalmente passamos a ter direito à lavagem suja que nos serviam, não havia mais esperança em mim. Acho que fui receber a minha tigela de lavagem mais por obrigação do que por vontade. A fila era extensa.

Estendi minha mão para receber a tigela de alumínio com o líquido marrom-amarelado, que parecia possuir mais vapor do que água, mas o soldado que servia aos prisioneiros hesitou. Era o inglês que não matei quando pude. Ele notou que havia sangue coagulado entre as dobras da minha mão.

Não tentei esconder a prova do crime. Peguei a tigela e fui sentar à espera do tiro. Não seria mais necessário viver. Podia tirar essa preocupação da cabeça, e tomar a lavagem calmamente. O soldado iria contá-lo a um oficial, me moeriam e então me matariam. Meu futuro já não era mais incerto. Enfim, a paz.

Não cheguei a me desapontar quando, ao cabo de alguns dias, ainda permanecia vivo. O que aconteceu e que comecei a duvidar da inteligência, e até da sanidade do inglês. A minha com certeza já não existia, pois cheguei a pensar na possibilidade do sujeito ser um agente infiltrado, ou de não ter me denunciado por eu ter poupado sua vida. Essas hipóteses não se sustentavam. Só havia um dado sobre o qual eu podia me apoiar: ele sabia.

 

Ainda se passaria muito tempo antes que a repatriação dos prisioneiros figurasse nas agendas diplomáticas.

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