14-1-97

 

Vida de Daniel

 

 

Infância

 

 

Estou no meu quarto, as cortinas deixam entrar uma claridade fracamente amarelada, que não é suficiente para iluminar os objetos. Grito por minha mãe.

 

1

 

Odeio a camisa de botão do colégio. Odeio as listrinhas vermelho e brancas. De longe, parecem rosa. Mas se me perguntam se gosto da escola, digo que sim. Afinal, nada que eu conheço é melhor que isso. Eu tenho um amigo no jardim de infância, mas não me lembro do nome dele. Ele sentou uma vez na mesma mesa que eu, mas não me lembro do que fizemos. Não fizemos nada juntos. Acho que sou amigo dele porque eu sei escovar os dentes sozinho, e ele não. Acho que também é porque a tia sorri pra gente, e por que a minha mãe disse.

Mas eu sou infeliz. Minha mãe não quis comprar chiclete pra mim. Pura maldade.

 

Odeio recreio. Não há nada pra fazer no recreio. Fico no sol, olhando pra areia. Uma vez fui numa sala que tinha umas crianças que não sabiam pintar, e eu sei. Foi legal. Eu queria olhar dentro de uma casa, mas a minha mãe não deixou.

Odeio almoço. Arroz branco não tem gosto, feijão preto tem gosto de sujo, carne seca não dá nem pra engolir. Fico até as duas horas sentado de castigo "até comer tudo". Às duas e meia a Nete negocia "só mais uma colher" e eu posso sair da mesa. Mas para onde?

Adoro o meu vô. Ele me dá um abraço de quebrar costela e diz "fenk you" quando eu ajudo ele a encontrar coisas no chão. Ele é cego. Todos os velhos fazem barulho quando comem torrada. Velhos são legais. No porão o vô tem discos de marchas que não são chatos, e discos legais de outros países. No porão não faz tanto calor.

A vó sempre traz presente da rua. Todo dia me dá uma revista em quadrinhos. Mas eu só tenho uma, a mesma de sempre. Acho que ela está me enganando.

Odeio minha mãe. Ela chega, bota música ruim, briga por que eu não quero comer as coisas dela, diz que vai me contar histórias para dormir e briga quando eu cobro.

 

2

 

Eu não era o único que estava chorando no primeiro dia do colégio. Mas que importam os outros? Não quero ficar aqui.

Estava brincando com outros dois garotos, que me disseram que antes de vir para o Santo André, eram da mesma escola. Eles estavam brincando com uns bloquinhos de madeira, e fazendo umas ruas para os carrinhos "matchbox". Muito legal. A gente ficou amigo, e até o C.A. brincávamos de matchbox o tempo todo. E de massinha também. E também íamos juntos à aula de artes, que o professor era maluco e queria pegar a gente. Ficava todo mundo debaixo das mesas pra ele não pegar. Depois tiraram ele. A gente tinha muito medo dele, e sabia que ele era maluco, mas a professora que ficou no lugar dele era chata e sem graça.

Odeio o C.A.. Os meus amigos agora não brincam mais de matchbox, jogam futebol. Todos os meninos jogam futebol. Todas as meninas pulam elástico. É por isso que são meninas. Porque são chatas. Fico sozinho, e brincar de matchbox não tem mais graça. Na fila do lanche, os meninos da frente cedem o lugar de trás deles para todos os outros menos eu, de modo que eu sou sempre o último a pegar o lanche, e acabo tendo que comer pão doce. Eu odeio pão doce.

 

Me xingam toda hora. Eu dou soco no peito deles e eles dizem que eu sou fraquinho. Dou soco com toda força e nada. Aliás, às vezes nem consigo acertar o soco, porque sou baixo e não consigo chegar perto.

 

Na aula de educação física, que eu sou forçado a ir, todos os meninos têm que jogar futebol. O Zé Guilherme e o Luís Otávio tiram par ou ímpar e escolhem quem vai para os seus times. Quem ganhar escolhe o primeiro, o outro escolhe o segundo, e assim por diante. O Alexandre, que é covarde e tem lábio leporino, é sempre o penúltimo a ser escolhido. Eu sou o último sempre, mas às vezes tem briga, por que eu tenho que ficar no time que tem os melhores jogadores, para ficar equilibrado. Agora, se dá número ímpar, me botam pra fora do jogo. Eu odeio futebol. É a coisa que eu mais odeio.

 

Uma vez, o Alexandre quis me bater. O Zé, o Luís Otávio e os outros garotos correram atrás do Alexandre pra linchar ele, e ele teve que subir na árvore para escapar. É covardia bater em mim.

 

As tias gostam de mim. Eu não.

 

 

 

3

 

Eu tinha um tanque à pilha. Meu primo tem um igual. Meu primo perdeu o dele, e saiu lá de casa com o meu na mão. Eu quis tirar dele e a tia Sissi brigou comigo. A minha mãe também. Adeus, tanque à pilha.

 

Sábado de manhã tem "Mundo Animal" no canal 4. Hoje está mostrando que o pingüim bota dois ovos. Desses ovos nascem dois filhotes. Um deles é mais forte e ganha comida. O outro fica fraco e morre.

 

Todos os garotos dizem "eu vou falar pra minha mãe!". Eu não. Eu só choro. E aí me chamam de mulherzinha. Eu devo ter um problema. Eu não consigo parar de chorar, mesmo não tendo medo dos outros garotos.

 

Estou na quarta série. Entrou um cara muito grande no colégio, feio. Ele também não joga futebol e ninguém fala com ele. Ele é o único garoto que me xinga agora, por que me xingar é covardia. Ele é covarde. Só há eu e ele no pátio do recreio; todos os garotos estão jogando futebol, todas as garotas pulam elástico. Eu não choro dessa vez. Eu tento chutar ele, ele segura minha perna e me joga no chão. Eu não consigo bater nele, mas eu tento.

Entrou um argentino (seja lá o que for isso) no colégio. Chamei ele para brincar de matchbox. Durou alguns dias, depois ele começou a andar com o grandão feio. Mas também depois ele brigou com o grandão, e tentou o futebol. Estou sozinho de novo.

 

Depois de me torturar com natação, minha mãe me pôs no Tae-Kwon-Do. Mas arrumou um namorado legal, que nos leva no fim de semana para uma fazenda nas Agulhas Negras, três horas de viagem, estrada de terra, sem luz elétrica, sem telefone, só mato. Mó aventura. Ele me deu umas botinas de couro que eu adoro, que são boas para andar na lama. Na fazenda, acordo cedo e vou ajudar o tio Zeca mexer na horta, corto uma lança de bambu e fico me enfiando no mato. Descobri esconderijos que os índios devem ter usado. É muito bonito.

 

4

 

Adoro pescar girino na fazenda. Adoro o parque nacional. Uma vez, a gente se perdeu perto do pico, sem enxergar três metros por causa da neblina. Fiquei eufórico pensando que a gente ia dormir ali mesmo, ter uma aventura. Mas a chata da minha mãe encontrou o caminho. Só eu queria ficar. Eu sou corajoso na fazenda. Se não estou com a lança de bambu, estou com um facão para andar em trilha.

A minha mãe e o namorado foram visitar uns paulistas que moravam perto, e eles tinham uma filha da minha idade, queriam apresentar pra mim. Eu não queria. EU NÃO QUERIA. Eu fiquei escondido atrás do carro até morrer de tédio, e aí eles venceram. Eu fui até onde estavam as pessoas, e conheci a tal paulista. Ela era bonita. Ela me chamou pra brincar. Foi legal. De noite, ela quis brincar de casinha, ela a mulher e eu o marido. Eu, brincar de casinha? Eu não! Eu não sou mulherzinha! Mas aí ela me ameaçou dizendo que não era mais minha amiga se eu não brincasse com ela, e eu tive que aceitar. Foi legal.

Todos os fins de semana se repetia a mesma coisa. Eu não queria ir à casa dela, eu ficava com vergonha, eu desistia de me esconder, brincava, e no final era legal. Até brincar de casinha. De fato, era quando eu ficava mais feliz, mas costumava ser na hora de ir embora. Que chato.

Depois, na volta para o Rio, eu ficava nostálgico e ouvia "Toada" do Boca Livre no rádio. Nem sempre os paulistas estavam na fazenda, o que fazia a minha saudade mais torturante. Sonhava com a paulista, inventava aventuras com nós dois. Aí caiu um raio na casa deles e eles sumiram por uns tempos. Sério!

Um casal de hippies foram morar na Serrinha, que era onde ficava a fazenda, e ficaram nossos amigos. Quando fui na casa deles, vi uma criança de cabelos longos e louros. Achei que fosse menina. Não era. Era o filho deles. Em dois minutos estávamos brigando, querendo o sangue um do outro. Isso também acontecia todo fim de semana. Eu e o Linus tínhamos dois minutos de amizade precedendo um dia de porrada. Nunca ficava claro quem tinha ganho, e portanto a briga nunca acabava.

Os paulistas voltaram. A garota me disse "quer namorar comigo?", e no momento seguinte eu vi o que isso significava: todos os garotos do meu colégio gritando "mulherzinha, mulherzinha!".

-- Não!

-- Por favor!

-- Não, nunca!

E saí correndo. Depois os paulistas deixaram de novo de ir à Serrinha e eu me arrependi amargamente. Nunca me esqueci da garota, nem desse dia.

 

5

 

De volta ao Rio. Algum fascista inventou que agora para entrar nas salas precisávamos formar fila no pátio. Não é necessário dizer que eu era o último da fila. Um garoto novo, valentãozinho, puxa-saco do Zé mas não da alta roda, pouco familiarizado com a minha intocabilidade, resolve me insultar. Disse algo como "Olha que bota feia o Daniel está usando!". Simultaneamente, a botina já tinha entrado no estômago dele. Eu nem pensei. Eu devo ter gritado de tristeza e raiva, a Serrinha era a única coisa no mundo que me fazia me sentir humano. Ele caiu e, embora quisesse se levantar para me bater, não conseguia por causa da dor no estômago, que imobiliza a respiração. Isso deve ter tornado tudo mais ameaçador ainda para ele. Apanhar do Danielzinho? Eu nem era mais parte da hierarquia, eu faltava a aula de educação física para assistir a de artes com as crianças do jardim! E tinha batido nele. E ganhei a briga, por nocaute.

Os outros meninos, incrédulos, correram pra levantar ele e me segurar, gritando "O Danielzinho bateu no fulano!" "O Danielzinho? Caramba!".

Eu estava chorando alto, talvez mais do que ele.

-- Pára de chorar, Danielzinho! Você ganhou!

E eu não conseguia parar. Devo ter um problema. Ganhei a briga, e estou em prantos. Eu não gosto disso. Você estragou tudo. Quem mandou botar a Serrinha no meio? Não era mais fácil me chamar de mulherzinha?

 

6

 

Mas foi tal o estardalhaço causado por eu ter batido no menino, que eu acabei gostando. Todo mundo passou a me tratar bem, ou com um mínimo de respeito. Fiz amizade com o Carlos, o argentino, e o Rui, um altão magro, ambos meio outsiders. Virei um baixinho valentão. Desafiava todo mundo, bastava pensar que estavam me insultando. Ninguém queria brigar comigo nessa altura da infância, na quarta série, e em lugar disso nós lutávamos espada com nossas réguas. Eu tinha a régua mais grossa, e quebrava todas as réguas dos outros colegas. Era invencível.

 

Adolescência

 

If I had a chance I'd ask you out to dance, and woudn't be dancing with myself.

 

Um dia eu vou parar de respirar, e é isso que me consola e me dá forças para continuar vivendo.

 

1

 

Fui para o Colégio Princesa Isabel. Também saí da casa da vó e morei em um conjugado por um ano. A Lola me obrigou a fazer amizade com o único não-adulto do prédio, um cara dois anos mais velho. Meu terceiro amigo, dessa vez um com o qual eu podia contar para desabafos e coisas do gênero. Carrinhos e Telejogo enchiam nosso tempo quando não estávamos no colégio. Também não havia muito pra desabafar, já que nossa vida quase se resumia a ir ao colégio e jogar Telejogo. Mas era legal.

10 anos. 8 para o serviço militar e a morte. Nos mudamos para a Rua Eduardo Guinle. Lola deixa seu namorado e a paulista se torna cada vez mais inacessível. A sociedade me assalta. No primeiro dia do Princesa Isabel, fiz amizade com um judeu que sentou do meu lado, e isso selou minha sorte por vários anos. Virei judeu emérito. No meu prédio, garotos mais novos e mais velhos, festinhas de fim de semana, fofocas, porteiros rabugentos...

Chego no playground com os olhos e o rosto vermelho. Peço pra jogar pingue-pongue. Os garotos mais velhos perguntam se eu estou chorando. Eu digo que estou com conjuntivite. Perguntam se alguém me bateu, que se for isso é só dizer que eles vão lá e dão uma lição no covarde. Digo que não, que tomei sol demais, e me queimei. De só um lado da cara? É, isso aí...

Eu odeio pingue-pongue. E odeio ser forçado a fazer amizade.

 

A vitrola velha foi para o meu quarto. Comecei a ouvir Beatles baixinho, para não incomodar, e colava o ouvido na caixa acústica. Depois Genesis, porque estava vendendo na Sears. Um dia, outro Alexandre, um cara mais velho, estava ouvindo The End do Doors no salão de festas, com o volume máximo, e contando o que significava "father? Yes, son. I want to kill you... Mother... I want to... Come on yeah!". Eu não entendi nada, nem interessava, mas eu gostei do ritmo, e depois de ganhar um disco do U2 de um dos amigos judeus e ver o clip de Boys don't cry, quis tocar bateria. No clip aparecia um menino usando apenas uma caixa e um prato, e foi isso que eu pedi para a Lola. Ela me deu uma caixa de escola de samba, de pendurar no ombro. Aí termina minha carreira de bateirista.

Comprei uma gaita, que era barata e cabia no bolso, e comecei a posar de cavaleiro solitário em cima da minha BMX. Embora tivesse amigos aproximadamente da minha idade (ao menos do meu Q.I.), continuava me sentindo solitário. No colégio, achava os judeus chatos, como todos os outros colegas. Uma garota se interessou por mim (e eu por ela). Mas ela começou a me chamar de "amiguinho", e eu logo comecei a achar ela meio retardada. Eu deixei de sentar perto dela, e logo todos comentavam nossa "separação".

Pus minha caixa de bateria em cima de um apoio de partitura e batia cada vez com mais força nela. Passei a usar o volume máximo. Tive uma amizade breve com um garoto de cabelo comprido, parafinado apenas no alto da cabeça, gordo e agressivo. Nosso ponto em comum: fazer tortura psicológica com uma colega muito feia, na verdade a última da hierarquia feminina. Quando encheu, deixamos de nos falar.

Dei um compacto do Michael Jackson para o Alexandre, e ele ficou histérico. Disse que foi o melhor presente da vida dele. Negue!

Já que eu não gostava de dançar, passei a discotecar as festinhas do meu prédio. O pessoal que freqüentava seriamente essas festas, os mais velhos, ficavam exigindo música lenta. Eu pus então uma música que era lenta, antes de disparar. Era A-ha. O Alexandre me disse, com desprezo, que o A-ha estava fazendo sucesso nos Estados Unidos. E daí?

Mas me enchi rápido do A-ha. Eu gostava de Cure e Smiths. Não dava pra tocar em festa, pois dizia-se que não dava pra dançar, não era rápido nem lento o suficiente. E era depressivo (Yes!).

Mas também era repetitivo. Comprei um disco novo dos Smiths cujas melhores músicas eu já tinha nos outros discos. Idem para U2. Decidi que não escutava mais nenhum desses conjuntos comerciais. Mais um ano, e esses discos sairiam voando pela janela do meu quarto.

 

Hormônios. Que merda. Numa crise hormonal, mandei uma carta anônima para a Rosana escrito algo brega e vazio. Pus embaixo do capacho da casa dela. Quando ela veio me agradecer (arrrrgggghhhh!) já tinha me arrependido amargamente. Fiquei com nojo de mim mesmo. Disse que não sabia de nada, e incriminei o Duda. A carapuça serviu direitinho, e não se falou mais nisso.

 

Rosana chora na frente da Lola dizendo que eu não quis dançar com ela. Sai dessa, garota!

 

Performance. Depois de dublar umas músicas durante uma festinha, eu, Maurício e João destruímos nossas guitarras de isopor ao bom estilo The Who.

Gosma. Todo mundo com gel New Wave no cabelo. E o pior é que a purpurina do New Wave ficava mesmo depois de se lavar. Apareci de chapéu na festa e a irmã do Alexandre pegou da minha cabeça, pôs na dela, dançou a noite inteira e depois foi pra casa. Adeus, herança de família.

Ignorância. No refrão que dizia "Tell me more, tell me more, baby tell me more" todos na festa cantam "Tchany boy, tchany boy, there is tchany boy" erguendo seus punhos.

 

É claro que eu estou dançando sozinho. Mas às vezes é divertido.

 

No colégio, um cara mais velho me pergunta quantas vezes eu me masturbo por dia. Respondo "já perdi a conta". Ele fica surpreso. Eu penso "tenho que providenciar isso logo". "Mas como é que se faz isso?"

 

Num acesso de moralidade, queimo a revista que tem a Xuxa nua e jogo pela janela. Depois me arrependo pra sempre.

 

Num pedaço de papel higiênico que está no armário, posso contar quantas vezes já gozei. Nenhum amigo acha estranho. Também não sei por que a empregada limpa tudo mas deixa o papel higiênico intocado.

 

Um dos amigos judeus pergunta para a namorada se ela já ficou menstruada. É o fim do namoro.

 

2

 

Na ida e na volta do colégio, faço o sinal da cruz em frente à igreja. Depois encho o saco. Prefiro imaginar que da minha mochila sairão duas turbinas e eu voarei desse mundo de merda. Mas por mais que eu pense nisso, nada acontece.

Uns garotos ficam dando peteleco na minha orelha. Não sei quem é. Perco a paciência. Quando virei para bater sério no garoto que estava sentado atrás de mim, ele tenta se proteger com o braço e o seu cotovelo destrói para sempre a harmonia entre meus dentes. Mas pelo menos é uma ferida de batalha. Ou quase. Se eu já era feio, agora fudeu.

 

Eu estou insatisfeito. Eu vivo no inferno. Os outros estão felizes. Os outros conversam em grupinhos, enquanto eu só fico dando voltas esperando o recreio acabar. Eu desprezo eles. Eu não quero mais eles. Eu vou ficar com o coração mau, e desprezar tudo que eles representam. Eles são otários, não sabem o quanto a vida é dura. Otários. Só eu conheço a realidade. Tudo é sujo. Tudo é mau. Tudo é feio.

Voltei pra casa e sintonizei na Fluminense, que era a rádio que supostamente tocaria música punk. Depois de ouvir muita coisa que obviamente não era punk, eles tocaram "Rotina", dos Inocentes, versão acústica. "Acorda cedo para ir trabalhar, tem o relógio de ponto ali a observar. No lar a sua esposa prepara o jantar, chegou a hora do programa começar... A sua esposa lhe convida para o prazer... Até quando ele vai aguentar?" Não era barulhento nem rápido, mas era seco. Só podia ser isso.

Pedi para a Lola me trazer um disco dos Garotos Podres. Confundi Inocentes com Garotos Podres, mas tudo bem, porque ganhei um disco muito mais punk do que esperava. "Papai noel, velho batuta, rejeita os miseráveis! Eu quero matá-lo!" "Não devemos temer -- os que detêm o poder!" "Enquanto você fala... vou fazer cocô!" Era muito para mim. Era absolutamente punk. Na capa, um bebê johnson com a mamadeira; no verso, um bebê etíope desfigurado, chorando de fome. Tudo preto e branco numa péssima impressão. Era eu dando o troco de todo o meu sofrimento. Como o Papillon gritando para o carcereiro:

-- Ainda estou vivo... Canalhas!

Sempre choro nessa parte do filme. O resto não me impressiona tanto.

 

Descobri a coleção inteira do Asterix e do Tintin na biblioteca do colégio. Agora já há algo a fazer no recreio, além de deprimir. A biblioteca era o refúgio de vários colegas que viviam à margem da vida social. Lá me tornei amigo do João Pedro e do Émerson.

O João Pedro era um tipo meio troncudo, sarcástico, que nos recreios alternava a leitura na biblioteca com recitais de funk e techno pop na sua sala. Era incrível a variedade de sons de percussão que podíamos tirar de carteiras, estojos, moedas, canetas e similares.

Já o Émerson era um altão magro e um bobo alegre, que ficava atirando bolinhas de papel no cabelo das meninas que ele achava "gostosas". "Viu aquela menina ali?" Atirava a bolinha. "Muito maneiro, né?"

-- Émerson, deixa de ser retardado!

-- Pode me chamar do que quiser. Isso não significa nada para mim.

 

Depois o Émerson passou para a turma tecnológica, enquanto eu e o João Pedro ficamos na Humanas. Para nós fazia todo o sentido. O Émerson ficou amigo de um cara tão no nível dele, que atendia pelo apelido de Escroto.

-- E aí, Escroto?

-- Oi, Daniel, tudo bem?

Estávamos no terceiro ano do segundo grau, e o os dois retardados continuavam lutando espada, mas não com réguas. Com o tampo das carteiras.

 

Eu e o João Pedro estávamos voltando pra casa, quando encontramos o Escroto na esquina de uma rua, parado embaixo de um sol homicida.

-- O que você está fazendo, Escroto?

-- Tem uma garota muito gostosa que eu vi no colégio, e que depois eu vi passando por aqui uma vez. Eu estou esperando ela passar de novo, para tentar conhecê-la.

-- Porra, Escroto, deixa de ser escroto! Ela podia estar indo na casa de uma amiga e talvez nunca mais passe de novo.

-- Mas talvez ela volte pra fazer outra visita!

 

Eu e o João Pedro estávamos cada vez mais céticos com o futuro da humanidade, representado por tipos como o Émerson e o Escroto. Parados na esquina da casa dele, líamos as manchetes de O POVO, "o jornal que você espreme e sai sangue". Os corpos mutilados nas manchetes eram um alívio: afinal, não era só a gente que se sentia mal neste mundo...

 

Fui me tornando cada vez mais rancoroso. Cada vez despejava mais meu ódio em música barulhenta, visual sujo e agressividade verbal.

Depois de um breve período de experimentação com penteados diversos, decidi eliminar o problema: raspei o cabelo. Eu sempre tive mochilas que eram feias, compradas apenas por serem as mais baratas. OK, também não quero mais mochilas da moda, quero ser pobre. Um saco de plástico é suficiente. Camisas compradas a lote? Ótimo! Posso pintar o símbolo dos meus conjuntos punks, ou seja, caveiras, cérebros arrancados, símbolos anticlericais. Calças herdadas dos primos. Bora torná-las mais refugo do que já são: uns furinhos de nada nos joelhos e não se fala mais nisso. A única vez que eu tive um boné, estava escrito "Müller" nele, e meus colegas de C.A. liam "Muler", mulher.

-- Ah ha ha! Daniel é mulher!

Nunca mais tive coragem de usar boné. Agora comprei um boné camuflado, onde pixei "Beware: death is near" e que uso virado para trás. O boné está um lixo. Oba! E as camisas de flanela que a Lola tanto insistia que eu usasse para não gripar, agora uso na cintura.

Em 1987 não existia isso no Rio. Ou pelo menos não era comum nas escolas de classe média da zona sul. Da lixeira da história para o estrelato: me tornei popular.

-- De que grupo você gosta, Daniel?

-- Dead Kennedys, GBH, Olho Seco.

-- Nunca ouvi falar. E de Sigue-Sigue-Sputnik?

-- Não é punk. É uma merda. Não diz nada. São invenção da mídia para vender pra otários.

-- Mas eu gosto...

-- E daí?

Li 1984. Toda minha formação política está contida naquele livro. Quando voltava do colégio com o João Pedro, num calor terrível, misturado à fumaça dos ônibus e dos esgotos transbordantes, em pleno governo Brizola, tive um insight. Não dava pra ficar pior. Podiam tirar o governo, que não haveria mais caos do que já existia. Mais, boa parte das pessoas temeriam viver no estado de caos sem ter um governo qualquer para confiar, e então procurariam se organizar para poder continuar vivendo.

-- Isso deve ser anarquismo.

O João Pedro concordou. Comecei a formar minha biblioteca anárquica, primeiro com livros novos, depois cada vez mais com sebo.

-- Daniel, você é anarquista?

-- Não, sou Machadista, ou Danielista, o que preferir.

-- Eu estou lendo um livro de um anarquista. Você deve conhecer. Roberto Freire.

-- Nunca ouvi falar. Ele é sindicalista?

-- Não.

-- O que ele faz contra o governo?

-- Ah, não sei...

-- Então não é anarquista, pô!

É da Era Punk esse meu cacoete de falar cinco palavrões para cada três palavras. Poupo os leitores dessa parte da história.

Mas o fato é que a minha imagem de rebelde rendeu. Virei uma espécie de atração turística. Alguns anos depois, uns anarco-punks foram ao shopping Rio Sul fazer panfletagem contra o consumismo na véspera do natal. Todo mundo queria tocar neles. Algo semelhante ocorreu no meu colégio.

Uma colega que depois virou modelo, uma da alta roda, me convidava para suas festas. O colega mais dopado da sala, que quando ia à aula ficava dormindo e babando a mesa, achava que eu tomava heroína. Eu era abstêmio e nunca botei um cigarro na boca. Uma garota tinha ataques de riso todas as vezes que eu abria a boca. Não era sarcasmo não! Uma outra me pediu para fazer um desenho pra ela, acho que se interessou um pouco por mim. Mas eu estava em outro mundo. E não me sentia desejável -- não -- me sentia tão lixo quanto me apresentava. Mas era um lixo que mordia, que exigia respeito, e era no braço.

 

Márcia. Filha de milico, imagine! Se interessou pelo lixo anti-tudo. Não podia ser normal. Liguei pra ela, os encontros sempre ferravam. Até que eu a chamei para um show qualquer na praia, e ela topou. Veio com a irmã, não podia sair de casa sozinha. Só com a irmã ou uma amiga. Mas desistimos do show, levei-a sozinha para casa. Quando estávamos a sós, sentados num banco, tudo vazio, ela emburrou. É claro que eu não tomei nenhuma iniciativa, eu não poderia me mover se não tivesse certeza absoluta, se ela não expressasse claramente que me queria. E ela deixou toda a responsabilidade nas minhas mãos. Ficamos parados até a irmã aparecer, dizendo que não podia entrar em casa sozinha sem levantar suspeitas. Se não fosse isso, ainda estaríamos lá.

Bom, Márcia já era agora, né? Desisti de tentar arrancá-la de casa. E aí encontro ela fazendo vestibular, e ela é mais receptiva do que nunca! Sentados nos degraus da universidade, com milhares de pessoas passando, ela senta-se junto a mim e sorri. O quê, agora?! Com todo esse povo?! Difícil, me dê mais certeza. E aí apareceu o ex-namorado. Fiquei surpreso por ele não ser um altão musculoso, mas um tipo muito semelhante a mim. Mesmo assim, ele foi uma desculpa para eu desistir, por hoje, de pensar em tentar alguma coisa.

Vestibular para outra universidade. Eu sei que ela também está fazendo. Eu vou encontrar com ela! Fiz a prova o mais rápido que pude e fiquei esperando... Em todas as provas. E nada. Estavam pra fechar os portões, quando ela aparece do nada, sorrindo. "Eu estava no ponto de ônibus e te vi." "Você só saiu agora?" "Que isso, já saí há muito tempo. Eu faço as provas em outro campus. É que eu moro aqui perto, já fui em casa, tomei banho e estava saindo de novo." Eu estava fora do ar. Eu queria tanto, tanto e consegui. Marcamos um cinema.

A essa altura eu já estava passado. Já tinha decidido que se ela não facilitasse o meu trabalho, eu ia ficar sarcástico e me divertir com a situação. Antes de começar o filme, ela começou a dizer que essa história de anarquismo é besteira, que eu tinha é que me preocupar com a minha vida. Boa forma de conquistar um cara, essa de criticar suas convicções. Começou o filme. Passei o braço por trás dela, da forma mais tímida que encontrei. Ela parada. Me senti ridículo. Tirei o braço.

No "Poderoso Chefão 3" há a cena em que a filha do Al Pacino é morta na sua frente, e ele faz uma cara de desespero brutal, abre a boca mas não emite nenhum som. Eu não agüentei. Minha gargalhada ecoou no cinema, em meio às lágrimas silenciosas dos outros espectadores. Não imagino o susto que a Márcia tomou. Estou vingado.

 

Política

 

A gosma, sedenta por se reproduzir, sai em busca de toda sorte de matéria para aumentar o seu volume...

 

1

 

Todos os caminhos levam a Roma. Através de um amigo livreiro, conheci um velho anarquista que me pôs em contato com um grupo que estava se formando, com gente da minha idade. Ao mesmo tempo, eu já havia encontrado com o mesmo grupo ao assistir um filme sobre Malatesta, um anarquista, mas o encontro que realmente me levou a procurá-los ocorreu assim:

De tanto falarem no tal Roberto Freire, e depois de haver visto alguma referência a um "Grupo Anarquista Brancaleone", resolvi assistir a uma das suas palestras, que não ocorreu em nenhum subúrbio ou galpão abandonado, mas em Ipanema. O sujeito sentou numa cadeira, em cima do palco, cumprimentou as pessoas e começou a discorrer sobre o anarquismo. Um pouco diferente do anarquismo Machadista, mas até aí tudo bem. Até que ele começou a bater muito forte na tecla de que ele não queria impôr seu ponto de vista para ninguém, que as pessoas tinham que pensar por si mesmas, etc. Eu e o João Pedro já estávamos um pouco de saco cheio, quando uma voz conhecida pede a palavra:

-- Eu estou entendendo que o senhor não quer impôr seu ponto de vista, que prefere que cada um pense por si próprio, certo?

-- Sim, é isso mesmo.

-- Então, sua palestra só será um sucesso, só conseguirá atingir o seu objetivo, se todos nós sairmos daqui discordando do senhor, não é? Se voltarmos para casa sem termos sido influenciados pelo senhor.

A LOLA!!! Cara, eu nem sabia que ela tinha ido na palestra. O fato é que o homem empalideceu, depois enrubesceu e perdeu totalmente a compostura. "Eu achei que ia ser legal vir falar aqui hoje, mas foi uma merda! Vocês não entenderam nada!" Jogou a cadeira no chão. "Vão se fuder!", foi por aí. Virou-se e já estava indo embora, quando uma mulher subiu no palco para pedir satisfações, que ele não podia insultar o público que havia ido ali ceder seu tempo para escutá-lo e depois ir embora assim. Um dos jovens seguidores do Roberto Freire, no meio da confusão que já havia sobre o palco, acertou a cara dela. "Animal! Esse menino tem que ser preso numa jaula! Animal!" De repente vejo a Rosa, uma ex-colega, agora outra seguidora, tentando apaziguar os ânimos: "Você não entende... É que ele é coiote...", enquanto um homem de paletó e gravata gritava, em meio a lágrimas, "Eu concordo com você... Não é nada disso... A gente concorda..."

Enfim, puro caos. Uns caras sentados atrás de nós estavam com um jornal nitidamente anarquista na mão. Pedi para dar uma olhada. Perguntei o que haviam achado da palestra. O mesmo que nós. Peguei a hora e o local das reuniões do seu grupo. Debaixo de chuva e vento, lá estávamos eu e o João Pedro.

 

2

 

Vamos resumir: os anarquistas eram poucos, muito heterogêneos e sua principal atividade era, como sempre, a propaganda. Se reuniam numa sala alugada, para "articular" ou fazer palestras educativas voltadas para o público em geral. Vários jornais, pouca notícia. Meu grupo, que durou pouco, foi, no meu entender, uma caricatura dos outros já existentes. Muita gente muito motivada e querendo fazer tudo ao mesmo tempo. Mas tudo o quê?

Havia dois operários, ligados ao movimento sindical; dois estudantes universitários, um concluindo e um querendo largar a faculdade "para se dedicar à causa"; dois anarco-punks assíduos (mas em teoria havia muitos mais); dois porralocas, um estudante de história muito legal e muito "figura", e um ex-viciado em tudo e ex-sarjeta, também muito legal e um dos mais sensatos do grupo; e eu. Uma arca de Noé, não é mesmo?

Ainda preso às normas da Lola, eu não ia às atividades sindicais, que eram participar de reuniões de sindicato, dar nosso recado e sobreviver ao choque de ideologias, que era a parte que machucava mais. Fui a algumas ações planejadas pelos punks, ou seja, panfletagem em Campo Grande (muito chato e sem resultados imediatos) e panfletagem no shopping center na véspera de natal (uma decepção, viramos atração turística).

Um dos sindicalistas viajou para São Paulo, pago para tocar rebu numa reunião do PCB. Todos concordamos que esse cara não tinha nada a ver conosco, e pusemos ele para fora do grupo. A essa altura eu já achava várias coisas:

a) Que só as ações sindicais renderiam alguma coisa;

b) que estávamos nos comportando como facção do PT, indo a lugares que só gente com idéias políticas vai, e tentando gritar mais alto, ao invés de procurar o chamado "povo";

c) que era imoral eu pagar a minha parte no aluguel da sala, na conta da xerox e nos outros gastos, com o dinheiro da Lola. O anarquismo tem que ser coisa de trabalhador, e não de "sustentado". Eu não trabalhava, portanto me encaixava nessa categoria.

Deixei de freqüentar os anarquistas.

 

3

 

Não me lembro por que, mas alguém teve a idéia de iniciar um fanzine. Acho que foi mais para experimentar a habilidade gráfica dos fundadores, ou seja, do João Pedro, do Marcelo e do Alexandre, todos estudantes de desenho industrial. Eu entrei porque eu adoro fanzine, e por que eu queria experimentar minhas idéias políticas. Um fanzine nada mais é do que uma revista de fundo de quintal, feita de cópias xerox grampeadas. Puro Faça Você Mesmo.

Batizamos a criança com o nome de Palimpsestos. Havia uma explicação brega qualquer para o nome, mas comecei a achar que a resposta "Não sei. Estranho, né?" para a pergunta "O que significa?" tornava o nome mais divertido. Contaminado pelo anarquismo, convenci os outros de que deveríamos deixar qualquer coisa ser publicada, sem seleção, por qualquer um que quisesse escrever sobre qualquer assunto. Se não fosse por isso, acredito que não teríamos material suficiente nem para o primeiro número. Mas essa decisão também selou a sorte do nosso Palimp: não havia um público alvo. Ninguém quer ler qualquer coisa. Não obstante boas matérias, havia um teor absurdo de lixo em cada número da revista. Eu mesmo publiquei uma série de poesias sofríveis, junto com muitos pseudo-poetas. É claro que também houve os verdadeiros.

 

 

Enquanto isso acontecia, umas ex-colegas do Princesa Isabel chamaram eu e o João Pedro para sair. Há muito tempo que não nos víamos, e éramos banstante próximos no colégio. A Fernanda era um tipo engraçado, que ficava trocando alfinetadas com o João Pedro. Já eu fiquei batendo papo com a Cristiane, e foi tão legal que nós acabamos saindo de novo na mesma semana. A sós.

Mas para onde eu vou levar a Cristiane? Cinema é fora de cogitação. A experiência com a Márcia deixou uma certeza, a de que cinema é lugar para ver filmes. Depois de ficarmos ambos hesitando horas no telefone, acabamos indo à lagoa. Já estava escurecendo, e bateu um frio violento. Ou eu comecei a tremer, mas eu achei que era por causa do frio. Realmente batia um vento frio na lagoa, e então fomos procurar outro lugar para bater um papo. Acabamos chegando a uma praça, mas como a tremedeira não passava, a Cristiane teve que me emprestar o casaco. Eu mostrei uma crônica de guerra que eu tinha escrito, na verdade um dos textos dos quais eu mais me orgulho. Se referindo ao herói da história, ela disse "é você!".

Ai, droga, essa garota está procurando encrenca.

Daí pra diante tudo que eu disse virou deixa para ela vazer alguma alusão sexual. Quanto mais eu ficava encabulado mais ela caprichava na pilha errada. Às dez horas ela desistiu, disse que tinha que chegar em casa cedo, por causa dos pais, e se despediu. Eu fiquei ensaiando mil hesitações no caminho para o ponto de ônibus, quando de repende prendi a respiração e disse

-- Cristiane, eu quero te dizer uma coisa.

Ela parou para escutar e eu beijei ela. Ela sorriu, abriu a boca e me engoliu. Voltamos para a praça. Fiquei tenso, sem saber o que ela esperava de mim. O que devo fazer, além de beijar? Conversamos sobre a hesitação que tinha rolado. Foi muito legal. Ah, foda-se, foi maravilhoso. Ela gostava de mim. Até essa época, isso era muito pouco comum. Quando fomos finalmente para o ponto de ônibus, depois de ver que não ia rolar mais nada naquela noite, ficamos abraçados, um olhando pra cara do outro, sorrindo. Foi bom. Foram os meus primeiros dez minutos de felicidade.

 

Deixe-me curtir mais esse momento.

Mais um pouco.

 

"Chasing out the passing visions..." Nessa época eu ficava feliz quando sentia que estava caminhando, ou seja, quando sentia que estava construindo algo ou melhorando minha vida. O caso Márcia foi ruim porque eu estava sempre começando do zero. Quando cheguei em casa, após ter ficado com a Cristiane, fiz questão de sentir que havia rompido uma barreira. Dei um passo e dessa vez não há como retroceder. Já posso falar de homens e mulheres com um mínimo de conhecimento de causa. Não há por que se envergonhar de uma garota. E, ao menos por dez minutos, eu fui querido.

 

Garotas

 

Disse a ela: "Liguei por que me sinto um pastel"

Ela disse: "Não se sinta um pastel"

É, foi isso que ela disse.

Foi isso.

Agora fico pensando no que ela diria

Se eu tivesse dito: "Liguei por que te amo"

 

1

 

E agora? Vou esperar alguns dias e ligar pra ela. Não quero assustá-la grudando demais. Mas não tem jeito. Logo depois da primeira tentativa fracassada de falar com ela, eu comecei a ligar freneticamente para não deixar passar muito tempo e nosso caso ficar pra história. Ela atendeu o telefone uma semana depois, e me chamou pra casa. Eu fui. A questão que estava complicando tudo, e eu já sabia dela desde o começo, é que ela tinha namorado. A explicação é que a Cristiane se sentia muito tentada a ficar comigo, mas era sacanagem com o cara, além dela gostar dele. Ah.

E ela continuava sendo doce comigo. A Cristiane parecia um outdoor do que eu estava perdendo. É claro que eu chorei. Eu estava sentado no chão, com as costas no armário, querendo sumir. Ela veio para perto, e eu, achando que estava para ganhar uma migalha, resolvi me despedir e sair. Se ela me agarrasse agora seria tão bom... A grade do elevador se fechou, e eu desci ao inferno.

 

Dia de sol. Eu estou em casa ouvindo Bela Lugosi's dead, e posso jurar que o refrão diz "I'm dead I'm dead I'm dead".

 

Estou com os dentes sujos, e não me atrevo a tentar beijar a Daniele nesse estado. Perdi a chance pra sempre. Nunca mais deixei de escovar os dentes.

 

Dia de sol. E eu me divirto ouvindo PIL e lendo quadrinhos europeus.

 

Mas se eu ficar aqui parado, eu tô fudido!

 

Dia de sol. E eu estou correndo alucinadamente em volta da lagoa. Quanto mais sofrimento, mais macho eu sou. O Lulu Santos me acompanha de bicicleta.

-- O que significa esse símbolo aí na sua camisa?

-- A-teu!

-- Legal! Realmente existe no Brasil uma religiosidade equivocada que atrapalha todo o processo de desenvolvimento. Onde você conseguiu essa camisa?

-- Eu-fiz!

-- Ficou muito bom. Se desse para você fazer uma para mim, eu adoraria.

-- Não-dá!

 

Que merda. Correr não aumenta a massa muscular, e é muito chato. Vou nadar na praia. Pegar onda é coisa de playboy. Vou ficar com o povo pulando da pedra do Arpoador. Estou me afogando em frente ao pontal de Copacabana, e uns pescadores começam a gritar.

-- Ih, olha o maluco nadando perto da pedra! Sai daí maluco!

Como eu gostaria de atender à sugestão dos pescadores. Mas se eu pudesse sair da correnteza, eu não estaria me afogando! Vi um surfista.

-- Me ajuda a sair daqui, que eu estou me afogando!

-- Desculpa, mas a prancha não é minha...

Quem está interessado na prancha?! Eu estou me afogando!!! O fato é que eu consegui sair da correnteza por pura teimosia de continuar nadando, e quando esgotei todas minhas forças, pude boiar até a praia.

Desmaiado de barriga para cima, me sentia uma baleia encalhada. Deixei o sol tocar minha cara. Pude sentir todas as sensações: O cheiro de peixe do posto 6, as minhocas na areia, o sol fritando minha pele, o cor de abóbora das minhas pálpebras fechadas... e estava vivo. Sou muito macho.

 

Começa a rolar algo entre eu e a Fabiana. Eu não dirijo. Vemos uma peça, vamos a um restaurante, e eu esperando um sinal de que posso atacar. Ela me leva em casa. Eu a surpreendo com um beijo inesperado. Ela fica parada, sem se mexer. Nem olhou para mim. Penso: "Três segundos para ter uma idéia brilhante. Um. Dois. Três."

-- Boa noite.

Saí do carro, entrei no prédio, sentei no chão do elevador, bati com a cabeça na parede, mas sem drama. Eu estava preparado para um tapa. Não para isso.

E agora, o que eu faço? Nenhum dos meus amigos jamais me deu um conselho válido sobre como agir com mulheres. Só há uma solução: Cristiane.

 

2

 

Eu não tenho habilidade pra essas coisas. A Cristiane adorou eu ter ligado pra ela, a gente falou de mil abobrinhas, e aí, quando senti que tinha quebrado gelo suficiente, mandei a bomba. Expliquei a história e pedi conselho.

A voz dela murchou um pouco, ficou encabulada, mas deu uns conselhos legais. Talvez eu tivesse apenas surpreendido ela, e não houvesse nenhum ressentimento. O melhor era ligar para a Fabiana e perguntar.

Mole, não é? Não é. O namoro da Cristiane tinha acabado e ela estava sozinha. Ambos tentamos desligar o telefone mil vezes, e a principal razão para isso era que eu tinha que ligar para a Fabiana! Mas, e daí? A Cristiane sempre ferra tudo, e eu não consigo odiar ela.

Momentaneamente, o problema Fabiana tinha ido para os espaço. E a Cristiane ficou tão melancólica quando falamos da outra... Será que ela ainda me quer? Eu quero ela!

Mas aí eu liguei para a Fabiana no dia seguinte, combinamos ir ver uma outra peça, e nada foi dito sobre o incidente exceto "Você ficou chateada comigo?" "Não". A Cristiane tinha pedido para eu dar notícias após conversar com a Fabiana. Fazendo isso, tive mais certeza ainda de que a Cristiane ME QUERIA. A Fabiana furou o programa que havíamos combinado, e eu joguei tudo pro alto. Liguei para a Cristiane e chamei ela para sair. Fomos ao mirante do Leblon. Depois levei ela de volta para casa. Sem clima, sem iniciativa, sem nada. Comecei a me sentir um babaca. Abri a boca e pus a culpa de eu não ter tomado nenhuma iniciativa, embora quisesse, por ainda estar pensando na Fabiana.

Que porra havia na minha cabeça quando eu disse isso?!! Você pode imaginar a reação da garota. Ficou fúnebre. Disse que não é errado querer duas pessoas ao mesmo tempo, que isso acontece toda hora. Não pude nem tentar consertar. Ela me levou ao ponto de ônibus para o ônibus da volta, com os olhos vermelhos. Disse que era sono. No ponto, a irmã dela e um cara, os dois se agarrando. Mais empata foda impossível. Era de madrugada, muito de madrugada. O ônibus não passava. Cristiane e a irmã voltaram para casa. Tive que levar o outro sujeito a pé para Copacabana, pois ele era argentino e não sabia o caminho. Só depois voltei para casa.

Dormi o dia inteiro, acordei para jantar e dormi de novo. A culpa de ter machucado tanto a Cristiane me torturava, e a saída para isso era dormir. Na noite do dia em que acordei, pedi arrego: liguei para a Cristiane e combinei de nos encontrarmos cedo, na praia. Tinha decidido ficar com ela de vez.

Cheguei meia hora antes do combinado. Duas horas depois, nem sinal de Cristiane. Eu já estava saindo um pouco do clima romântico, quando percebi que alguém estava sorrindo pra mim. Uma mulher trotando na ciclovia, com walkman e óculos escuros. Será uma amiga da Lola? Não... NÃO!!! A FABIANA!!!

-- Oi, Fabiana. o que você está fazendo a esta hora na praia?!!!

-- O sol está muito forte, daí eu corro mais cedo para não me queimar. E você, vai entrar na água?

-- Eu estou esperando uma garota.

-- Ah...

 

Da mesma forma que apareceu, a Fabiana sumiu, sabe-se lá pensando o que. É, agora fudeu. Amasso a minha camisa e jogo longe. Não estou triste, pelo menos não estou apenas triste. Estou à beira de um ataque de riso. Fudeu tudo! A Cristiane não vem, e a Fabiana eu próprio dispensei. Muito bem, Daniel!

 

Quando a Cristiane apareceu (ela apareceu, finalmente), eu já tinha desistido. Agora eu queria relaxar de toda a tensão que aquela história tinha me trazido, e acabar de destruir tudo, ao invés de ficar mal-remendando o que pudesse. Tentei um beijo, ela desviou. Agora você vai ver. Contei que tinha encontrado com a outra. Ela ficou incomodada, não gostou de logo após isso eu ter querido beijá-la. Eu estava totalmente fora do clima. Passamos às abobrinhas. Um fotógrafo pediu para que nos sentássemos mais próximos, para que ele fizesse uma foto que evocasse o clima romântico do Rio. Eu adorei a idéia, a Cristiane ficou absolutamente encabulada. Quanto mais ela se sentia mal, mais eu me sentia vingado.

 

Sexo

 

Ninguém se preocupa comigo.

Não na intensidade que eu queria.

 

1

 

Saí de novo com a Cristiane. Não me lembro quanto tempo depois. Eu já dirigia. Fomos à praia da Barra, conversamos, voltamos pro carro. Não havia clima, tudo apontava para nós ficarmos. Assim a coisa complica. Quando passamos por um motel, ela falou "vamos?" com cinismo. "Quer que eu dê a ré?" Ela se arrependeu. Eu insisti.

 

Não pise nos meus calos, menina, que eles estão gangrenando.

 

Ela disse que não queria ser a primeira mulher com quem eu transasse, pois é sempre complicado da primeira vez. Ela queria que fosse legal.

 

Tá, então eu vou ali na esquina, transo com qualquer uma e depois volto pra você, né? Vi que tinha um problema insolúvel. Eu não queria qualquer uma.

 

Afinal, pedi um beijo. Assim, do nada? É. Provei um pouco de indiferença. É igual a transar sem afeto. É asqueiroso.

 

Depois disso, decidi não reincidir. Não procurei mais a Cristiane. É pena.

 

No primeiro de maio, fui encontrar os anarquistas. Eles estavam, como sempre, fazendo uma protesto num lugar onde não passava muita gente. Os punks me chamaram para o aniversário de um deles, o Papelão. Bruno me aconselhou a passar em casa e comer antes de ir. "Falo isso por experiência própria". Tá.

O apartamento dos punks era muito grande e muito arruinado. De móveis, havia a mesa do som, uma máquina de lavar quebrada, um fogão e uma geladeira. Só havia um colchonete, no quarto de empregadas, transformado em "Quarto da luz vermelha". O chão cheio de escarros. A música não era punk, mas MPB, a qual os caras dançavam da forma mais bizarra possível, tendo ataques de riso. Enquanto eu conversava com um punk, sentado na máquina de lavar, entrou um deles com uma garota de uns doze anos. Daí a pouco veio o Radical, mamando a segunda garrafa de caninha da noite, perguntando pelo Morto. "Está aí no quartinho, dormindo". Depois vejo um terceiro punk saindo do quarto com ainda outra garota.

Ou seja, havia dois casais transando no quartinho, enquanto o Morto dormia.

Apareceu o Morto. "Morto, por que te chamam de Morto?" "É por que eu tenho o sono muito pesado, e não adianta nem me sacudir, nem bater na minha cara, nem jogar água, que eu não acordo."

Só havia uma punk na festa, uma paulista acabadaça, com uma corrente ligando o brinco ao piercing no nariz, e com os seios tão caídos que entravam pelas calças. As outras garotas eram "minas", ou seja, andavam com os punks mais não adotavam seu estilo de vida.

Quando chegou a hora de dormir, tive dificuldade em achar um espaço no chão que não estivesse escarrado. Achei. O Estácio passou nu pelo corredor, com uma mina. O Radical, que havia perdido boa parte da festa vomitando, desabou em cima de mim. Eu empurrei ele pro lado e tentei continuar dormindo. Ele ficou horas se contorcendo. Não dava pra dormir.

Me levantei e fiquei procurando um outro lugar. Não havia. O chão estava coberto de escarros e punks. De repente, o Radical começou a soltar fortes sons de vômito e arrotar, seguidos de um silêncio absoluto. Ele morreu!, pensei. Fiquei parado, sem saber se chamava um punk, correndo o risco de passar vexame, ou deixava o cara morrer. Fiquei petrificado, num canto, por muito tempo. Afinal, a mina que havia passado acompanhada do Estácio nu entrou no quarto.

-- Você está acordado? Vem pro quartinho comigo. Lá tem um colchonete pra gente dormir.

-- Valeu, mas eu prefiro ficar aqui pensando numas coisas.

-- Vem! Eu não vou te atacar não.

Fomos para o quartinho. Era realmente mínimo. Num canto, o Morto jazia contra a parede.

-- Mas assim você não vai dormir direito. Tira o boot.

-- Não precisa, assim eu estou bem.

-- Eu não vou roubar seu boot não, garoto!

Tirei o boot.

-- Afrouxa o cinto.

-- Não.

-- Do que você tem medo?

-- Eu não estou com medo. Só não quero afrouxar o cinto.

Afrouxei o cinto. Eu não estava com sono nenhum. Ela percebeu, e começamos a conversar. Ela veio com um papo de que ela parecia ser dura por fora, mas que por dentro era diferente, que para mim soou como "por dentro sou quente e molhadinha". Comecei a tremer, e dessa vez sabia que não era frio.

-- Você está tremendo?

-- É frio.

Todos os meus hormônios ficaram malucos, dizendo "Vai! Vai! Vai!". Mas eu tinha uma boa desculpa para não ir. À tarde, quando estava com os anarquistas, um ativista gay me ofereceu umas camisinhas. Eu recusei, eu ficaria morrendo de vergonha de usar uma camisinha que viesse num pacote cor de rosa, cheio de referências ao movimento gay.

-- O quê, você transa sem camisinha?!

-- Não, não é isso...

-- Você é celibatário?!!!

-- Não! Mas eu prefiro usar as minhas próprias camisinhas.

Essa resposta não colou muito, mas ele me deixou em paz. Agora estou um pouco arrependido, e certamente não me levantaria para ir ao quarto onde ele está dormindo, para pedir algumas. Na verdade, talvez o problema não seja as camisinhas. É que eu estou bastante enojado com essa história dos punks transarem sem afeto.

Nunca vi um punk beijar uma mina, ou uma punk. Mas vejo eles irem e voltarem do quartinho. E isso se torna mais estranho ainda ao lembrar que os punks levam o respeito às necessidades dos outros ao cúmulo.

Quando eu estava sentado na máquina de lavar, o ativista homossexual veio azarar o punk que estava conversando comigo. Foi histericamente engraçado ver como era difícil para o punk explicar para o gay que ele não curtia homossexualismo, sem ser preconceituoso. Ele simplesmente não conseguia um argumento racional para não querer ficar com o gay. E isso deixava ele muito mais constrangido do que a cantada em si.

Quando eu cheguei no apartamento dos punks, a primeira coisa que me disseram foi "Está vendo essa porta trancada? Tem uma mina grávida dormindo aí dentro. Nada de conversar ou fazer barulho aqui perto." O chão estava todo escarrado, mas no corredor reinava o silêncio.

Todas as minas obtinham o mesmo respeito. Mas não havia afeto. E bom, eu tenho necessidade de afeto, e não estava rolando.

 

Mas eu não disse que não tinha camisinha. Eu apenas fiquei petrificado, enquanto ela fazia seu monólogo, falando do trabalho, dos seus filhos, da vida dura que levava... Por fim, disse que eu era legal, que era diferente dos outros, tinha sentimentos, e que tudo bem que não rolasse hoje, a gente podia se ver outro dia. Dormimos. Ao amanhecer, fiquei um pouco ciumento ao ver ela agarrada ao Morto. Mas ele continuava na mesma posição na qual o encontramos.

 

2

 

Devo ter algum problema. Por que eu não transei com a mina? Nunca mais saí de casa sem estar armado de uma camisinha. É claro que o problema não era a camisinha, mas sim sexo sem afeto. Só que ser virgem nessa idade, quando a idade que julgava "normal" para ter transado era 16 anos, me deixava deprimido. Fixei 23 anos como a data limite para perder o cabaço. Se não conseguisse até lá, engolia o orgulho e pagava uma prostituta.

O que me deixava triste, claro, não era falta de sexo. Isso me deixava inquieto. A grande barra era não ter alguém que realmente gostasse de mim. Por vezes pensava que seria muito mais fácil ter uma amiga, com quem pudesse conversar, com quem pudesse dividir todas minhas dúvidas, de quem recebesse algum afeto, mesmo sem nada sexual ou físico. Mas ao me aproximar disso, eu sempre metia os pés pelas mãos e acabava misturando tudo. Eu tinha muito medo de ser rejeitado.

 

Com a data limite nos 23 anos, eu não tinha tempo a perder. A opção puteiro não me atraía nem um pouco. Seria a derrota. Resolvi começar a selecionar quais garotas valeriam a pena, com base numa lista de atributos. Por exemplo, não ter muita ligação com outras meninas. Eu acreditava que as mulheres funcionavam em rede, e que se eu fracassasse com uma, isso se tornaria público. Eu nunca mais poderia me aproximar de ninguém. Também resolvi estreitar relações com mais de uma ao mesmo tempo, para aumentar as chances de sucesso. O que não quer dizer, claro, que eu pretendia chifrar ninguém.

A Mônica me pareceu uma das opções. Mas ela foi absolutamente seca todas as vezes que tentei me aproximar.

Saí com a Luciana. Não parava de falar abobrinhas. Fomos ver uma peça horrível, e eu fiquei entediado.

Fui ao congresso mundial de psiquiatria. Da PUC, só a Mônica e a Fabiana tinham ido. A Mônica tinha uma conversa mais interessante, opiniões mais parecidas. Embora ainda me sentisse atraído pela Fabiana, eu e a Mônica acabamos virando colegas.

No semestre seguinte, eu já era monitor de psicologia experimental, e a Mônica minha aluna. As aulas eram um completo caos. Eu morria de medo de ser autoritário, violando meus princípios anárquicos, e ainda não sabia como dar aula atraindo a atenção dos alunos. No meio da confusão, só a Mônica e o Vítor pareciam interessados. Mas eu não pretendia agarrar o Vítor.

Na aula de dinâmica de grupo, havia um exercício em que devíamos dar uma moeda grande para a pessoa de quem mais gostássemos, e uma pequena para a segunda mais querida. Todas as vezes que fizemos isso, a minha maior moeda foi para a Mônica, e a maior dela veio para mim. Era essa a confirmação que eu tanto queria.

 

3

 

Começamos a nos comunicar em cifras. Tocávamos recados velados, simulando cinismo, como "Você sabe que você mora de pijamas no meu coração". Um dia, tentei dar um beijo nela, e ela se esquivou. Fiquei morrendo de raiva. Qual é a dela? Vai voltar atrás? Vai ficar com medo? Ah, vai tomar!

Abri o jogo. Disse que não entendia como ela podia ao mesmo tempo se mostrar interessada, e na hora do "vamos ver", mudar de idéia. Ela negou que estivesse gostando de mim, disse que éramos amigos apenas.

Não rola, garota.

Deixei de procurar ela. Cumprimentava ela, claro. Mas nas aulas, com o canto do olho, podia sentir ela olhando para mim, procurando minha cumplicidade. Mas eu não vou olhar. Eu estou me corroendo de raiva.

Depois fiquei apenas desiludido. Voltei a estudar com ela, e quando ela me mandava uma frase com duplo sentido, eu devolvia:

-- O que você quer dizer com isso? Ou dá ou desce, menina.

Talvez não usasse exatamente essas palavras, mas era duro. Ela voltava atrás. Quando insinuava que eu devia tentar de novo, eu metralhava:

-- Já tentei e me dei mal. Agora é sua vez.

E, num belo dia, ela me agarrou.

 

Em alguns meses, em um esquema de aproximação lenta e gradual, ela me levou a um motel. Talvez o processo tenha se iniciado quando resolvi passar de um beijo na boca para o seu seio. Ela disse que ficou enjoada. Eu parei. Alguns dias depois, tentei de novo. Em algum momento, isso se tornou normal, e aí pudemos passar ao próximo passo.

Devo ter passado uns 45 minutos tentando gozar, e nada. Ela conseguiu várias vezes. Quando desisti, ela teve um piti histérico, disse que tinha nojo de mim, coisas do gênero. Queria terminar. A caminho de casa, ela perguntou com quantas eu já havia transado. "Só você", respondi. Ela teve um ataque de riso. "Você era virgem? Ah, ah ah!" Muito engraçado. "Mas você nunca me disse!"

-- Se você soubesse, tinha transado comigo?

-- Não.

-- Viu?

-- É, acho que você fez bem.

O papel de virgem arrombada não colou. O virgem ali era eu. A vítima inocente era eu, e não ela. A Mônica ficou menos tensa, deixou de se sentir piranha, e depois de um período de abstinência nós voltamos com a corda toda.

 

E eu consegui gozar, que fique claro!

 

Passou um ano. Viramos o casal perfeito. Vivíamos em simbiose. Ambos éramos monitores de psicologia experimental. Fazíamos as mesmas matérias. Vivíamos grudados. Mas algo que houvera nos dez minutos de felicidade, não havia no nosso namoro. E eu queria aquilo.

Na sua casa de campo, havia um cachorro. Dado que o cachorro podia fazer o que quisesse, comer do nosso prato enquanto jantávamos, babar em cima, latir, tomar nosso lugar no sofá, e outras tantas coisas, considero que ele estava no topo da hierarquia social da casa. Já eu não podia nem revelar meu namoro com a Mônica, que era sigiloso em presença da família. A mãe, que na hierarquia estava logo abaixo do cachorro, não gostava muito de mim.

Eu estava sentado no sofá, quando o cachorro, um bicho enorme, se deitou em cima de mim, obviamente para eu sair e deixar o lugar para ele. Na presença de todos, eu me levantei e sentei em cima do cachorro. Ele deu uns ganidos de desconforto, não de dor, e saiu com a auto-estima arranhada. Ninguém na sala proferiu uma palavra. Naquele momento, eu tinha me posto acima de todos os presentes. Eu havia tomado o poder da casa. O mal-estar pesou.

 

Comecei a exigir minha legitimação como namorado. A Mônica disse que eu destruía a auto-estima dela.

 

Eu não era um igual.

 

Amigos

 

Quero uma pessoa triste para conversar. Todos estão dormindo, confusos em suas próprias preocupações... Bom, eu também, com a diferença de que eu tenho só uma e não estou confuso. Estou arrasado. Alguém fugiu com o tempero, e agora tenho que empurrar alguma gororoba cinza garganta abaixo.

 

1

 

Havia um grupo de estudantes da PUC, de vários cursos, que estavam organizando o chamado "coloquinho". Toda sexta-feira, um aluno dava uma palestra sobre um tema interessante ou polêmico da sua área. Gostei das que assisti, e resolvi dar uma, chamada "A mente observável". Polêmico. A palestra começou às quatro, e às nove tivemos que sair da sala e ir discutir no baixo Gávea. A Mônica foi assistir, não tomou parte na discussão e, visivelmente incomodada com o sucesso do meu coloquinho, se despediu e foi embora.

Havia uma garota especialmente interessada, que participou o tempo todo. Aliás, a maior parte das pessoas que estavam presentes me impressionaram muito com a rapidez com que apreendiam os conceitos que eu lançava e logo os discutiam com total domínio. Sem a menor rigidez mental. Ninguém ocultava seu interesse. Me senti acolhido.

Ao observar o comportamento dessa garota, vi que não estava satisfeito com a Mônica. Eu não queria mais estar com ela. Eu queria estar ali, com gente que me tratava de igual para igual, e que se mostrava razoável, ao invés de estar sempre na defensiva. A Mônica parecia incomodada com o fato de eu estar aparecendo mais que ela. Estava incomodada com o meu sucesso. Eu não quero alguém assim. Eu quero alguém que compartilhe o sucesso comigo.

Eu estava conversando com a Mônica no telefone, de fato brigando, e ela disse que "essas brigas estão baixando a minha auto-estima" e "que se continuar assim, a gente vai acabar terminando". Congelei. Já havia terminado. Parei de argumentar. Na cama, parei de me grudar nela enquanto dormia. Depois de uma semana, ela pediu tímidamente para deitar sobre meu peito. "Sinta-se à vontade". Não me mexi um milímetro para aumentar seu conforto. A Mônica não mais existia.

Quando ela deixou de se fazer de durona, e me perguntou o que estava acontecendo, eu disse "acabou, né?"

 

2

 

Encontrei meu lugar entre os freqüentadores do coloquinho, mais especificamente entre os chamados "homóis". Segundo o Maurício, era assim que os atenienses de alta classe se chamavam. Significa "os iguais". Como esse nome tinha sido inventado originalmente para designar um grupo de colegas que se conheceram no ciclo básico da engenharia, e que mais tarde fizeram matemática, havia um número finito e imutável de homóis. Mas como o grupo de amigos acabou crescendo, foi inventada uma classe correlata, os "isomóis", ou "iguais aos iguais". Era nessa categoria que eu me encaixava. Finalmente, encontrei meus iguais.

 

Como o nome "homóis" era freqüentemente interpretado por pessoas ignorantes como alusão a homossexualismo, o Maurício acabou mudando a designação para "heteróis" ou "os diferentes", que dá na mesma.

 

Agora estou sem a Mônica, e novamente sem referencial. Mas, diferente do que costumava ocorrer até agora, conheço várias pessoas com as quais me identifico, e num só grupo, várias mulheres interessantes. E não me julgo mais um intocável. Estou bem mais confiante.

 

Pergunto à Mônica se ela já ficou com alguém, desde que nos separamos. Ela diz que sim, mas que não quis nada de sério, só uns beijinhos. Dou a maior força para ela continuar. Ela não gosta da minha atitude. Paciência...

 

3

 

A auto-confiança já era. Não se vendem garotas em feira livre. Passei a tarde inteira juntando coragem para tomar uma iniciativa, e lá para as dez horas passei a mão nos cabelos da Dani.

-- Eu não gosto que passem a mão no meu cabelo!

-- Tá bom, tá bom!

Enfim uma resposta direta. Dani passa à categoria de mulher desejada.

 

Estou dançando com a Luciana. Olho pra cima e lá estão o Luís e a Dani, numa varanda, olhando pra gente. Assim não rola!

(Tem que rolar, tem que rolar...) Me aproximo da Luciana. Ela recua. Eu emendo uma coreografia.

 

É verdade que eu acho a Dani, ou a amiga dela, que está conversando com o Décio, ou a amiga da amiga, ou até a Ana Paula, que não consegue parar de rir, mais interessantes do que a Luciana. Mas e daí?

 

Ligo para a Patrícia. "Estamos indo ver o Carmina Burana na praia." Ela e o noivo. Mas também uma amiga, ok, vamos ver se ela é legal. "Todos os homens que eu já conheci foram cafajestes". Derramei o molho na toalha da mãe dela. "Daniel, até agora você estava em fase de testes. Depois do que fez, saiba que você foi reprovado." Eu, hein?

 

Dani liga enfurecida, "Eu quero saber se é verdade que você disse para o João que era a vez dele tentar algo comigo!" Ele tinha me dito que achava a Dani interessante, e eu disse que não havia conseguido nada com ela. Portanto, não ficaria magoado pelo João tentar algo com a Dani, embora ainda gostasse dela. Dani se explica, diz que não está numa fase boa. Eu deixo claro que sou apaixonado por ela. Dani passa à categoria de melhor amiga.

 

Estou no na praia do Arpoador, e de repente ouço o tema dos Trapalhões, em versão barulhenta, ecoando na areia. É lindo. Descubro que a banda de um amigo, e várias outras bandas de barulho, vão tocar à noite.

É noite, e eu estou absolutamente visualizado, falando com todo mundo que reconheço, e me sentindo em casa. Há uma punk agitando no meio da massa de adolescentes raivosos. Quando vem o intervalo entre uma banda e outra, falo com ela.

-- Pô, legal você agitando junto dos meninos. É raro ver uma garota no meio da porrada.

-- ???

Silêncio. Diz ela, olhando para a minha camisa:

-- Você ouve Big Black?

-- Adoro Big Black. Você também gosta?

-- Ouço tudo que é techno.

-- Techno? Que banda?

Começou o barulho de novo. Não consegui escutar mais nada que ela dizia. Sugeri que nós fôssemos para um lugar onde fosse possível conversar, mas ela me deixou e foi para o seu grupo.

 

Eu tinha passado o show inteiro juntando coragem para falar com ela.

 

Amanheci atirado no chão ouvindo Diamanda Galás. "When any man hath an issue out of his flesh, because of his issue he is unclean. Every bed where he lie, it is unclean, and everything where he sitted, unclean. And who so ever touch the bed shall be unclean. And he that sitted where he sat, shall be unclean. And he that touches the flesh of the unclean becomes unclean. Becomes unclean!"

 

É um pesadelo.

 

Olhei no espelho. A terapeuta pediu para que eu descrevesse a imagem refletida, como se fosse outra pessoa. Ele está sujo há dias, o cabelo não é penteado há dias, e ele não troca a roupa nem faz a barba há dias. Ele está escondido atrás da barba. Parece que está acuado. "Você gostaria de ajudá-lo?" Me dê uma chance e eu encho ele de porrada. Eu o odeio. Ele está acuado, mas se alguém se aproximar, ele morde. É um imbecil. Eu o odeio.

 

"There are no more tickets to the funeral"

 

Fui à praia. Deitei na areia. Chorei amargamente.

 

Na casa do Pedro, a Bárbara some com o Zé, dentro do lavabo. Eu estou arrasado. Eu e o Eduardo entramos na pilha de derramar todas as bebidas da casa. Dentro em pouco eu caio em cima da mesinha, rolo para o chão, tenho um ataque de riso que perdura por vários minutos. Eu não consigo me levantar sozinho. Eu peço ajuda para ir ao banheiro vomitar. TODOS da festa se revezam em me ajudar a ficar com a cabeça na privada. Eu caio no chão do banheiro e vomito em cima de mim. Quando melhoro um pouco, durmo na cama do Pedro, e mais tarde, Eduardo, Maurício, Bárbara? Zé? Pedro? me levam de táxi para casa. Eu me declaro apaixonado por eles todos. Ao invés de me taxarem de chato da festa, todos estavam preocupados, tentando me ajudar.

 

Fui à casa do Eduardo em Teresópolis. Dormi o tempo todo.

 

Fui ver um filme com o Eduardo, que fica dizendo que vai levar também uma amiga muito legal, diferente das outras mulheres, que além de tudo pinta as unhas com tinta de caneta bic. Ao chegar no cinema, encontramos com uma menina alta, com os olhos extremamente expressivos, aparentemente pouco à vontade em estar com a gente. Achei ela linda, e provavelmente fora de alcance. Ela tinha uma amiga fútil a tiracolo. Fiquei muito surpreso ao saber que a amiga legal do Eduardo era a fútil, e que a Paula, a que tinha atraído a minha atenção, não havia despertado interesse nele. Após a sessão, na mesa do bar, não consigo travar conversa com a Paula. Me sinto deslocado dentro de minha capa de chuva, não tenho papo, estou com sono, enquanto outro cara domina a conversa falando de motos e chá de cogumelo. Logo desisto, e vou embora. Não sou do mundo de vocês.

 

Convenci o Eduardo a viajar para Rio Claro, sob a promessa de protegê-lo da sua ex-quase namorada eterna, Marta. Muito legal no primeiro dia, Marta teve um ataque de paranóia. Ao voltarmos para o Rio, perdemos o ônibus, e então eu sugiro "por que não voltamos de trem?" "Eu sonho em pegar um trem de carga desde criança". Nos escondemos, e quando o trem passou, nós experimentamos um pouco de onipotência. Vales, pontes, florestas, penhascos, vistos de um vagão raso, sem teto e sem paredes, à luz da lua e ao som ensurdecedor dos trilhos, sentindo a brisa fresca da madrugada e comendo chocolate natural...

 

Estou longe de tudo que me faz sentir derrotado.

 

Não é descritível.

 

Passamos por um funcionário da ferrovia, e ele não tentou parar o trem. Apenas acenou com a mão, sorrindo.

 

Voltamos cobertos de fuligem e lama, num ônibus cheio de turistas perfumados. Foi ótimo.

 

Ao chegar no Rio, não consegui dividir nada da viagem com ninguém, nem com o Eduardo. O sentimento que eu experimentei nada tinha a ver com o meu cotidiano. Liguei para a Dani.

-- E aí, o que você tem feito?

-- Fui clandestino num trem de carga.

-- Ah, legal, e que mais você tem feito de bom?

 

Eu, Eduardo, Carol, Paula e Amanda em volta da mesa. No meio do jogo da verdade, Carol pergunta se alguém está a fim de beijar alguém na mesa. Todos levantam a mão. Ninguém toma a iniciativa.

 

Fomos a Teresópolis de novo. Eu estava me sentindo "normal". Aí a mãe do Eduardo botou pra tocar um disco melancólico, do Madredeus. Fiquei perplexo. Eu não estava tão bem assim. Mas o que me deixa tão melancólico?

 

Me tornei um amigo próximo de outra Amanda, uma colega do laboratório. De repente, talvez devido a problemas domésticos, Amanda se torna relapsa. Chamo a atenção dela. Procuro ser compreensivo, digo que se o trabalho está pesado, ela pode passar a responsabilidade de tomar conta do biotério para outra pessoa. Quando as coisas melhorarem em casa, ela reassume. Ela não aceita, e continua relapsa. Volto a chamar sua atenção, e ela corta nossa amizade.

 

Estou deprimido. Sinto que sempre acabo destruindo minhas amizades. A Dani, que estava também meio passada comigo, me chama a atenção. Eu choro. Ela esquece a nossa briga e me conforta. Dani passa à categoria de "Gente que conserta".

 

Paula

 

Reste encore un peu

Avec moi

Reste ancore un peu

Dans mon lit

Je suis si bien

Contre toi

Reste encore un peu

Ne t'en va pas

 

Como é que se diz "eu te amo" sem soar brega?

 

1

 

Estou de cama há uma semana. A nostalgia me assola. Desde que comecei a ouvir outros tipos de música, fora punk, meu disco da Suzanne Vega me faz sentir uma nostalgia intensíssima. Eu sei que o que quero para viver está de alguma forma descrito ali. Mas como decifrá-lo?

Decidi recordar a minha vida. Se a emoção que o disco me traduz existe, então eu devo ter sentido ela em algum momento da vida, por mais curto que tenha sido. Eu preciso saber se a minha esperança é vã ou não.

Pensando com o teclado, recordei dois momentos. Dez minutos de felicidade plena, com a Cristiane, e um momento da infância. Eu estava brincando com a irmã de uma colega do primário, e as crianças começaram a dizer que a gente ia se casar. Eu olhei para a garota, e ela topava. Continuamos brincando. Eu me senti querido.

Então existe. OK. O que eu quero é isso mesmo. E é mais simples do que eu imaginava. Eu sempre idealizei, longe, inalcançável, um amor legal rolando entre eu e uma garota, diferente de como eu me sinto, feio, escroto, sozinho. Chega de idealizar. Eu vou me transformar nesse cara legal dos meus sonhos, e aí só vai ficar faltando a garota. Ótimo. Metade do caminho está andado.

 

2

 

Minha vida se tornou agradável. Surpreendente como foi fácil. Às duas horas da manhã, eu, Eduardo e Carol praticamos Tai-Chi na praça, com intervalos para andar de skate. Eu estava conversando com uma colega pelo telefone, e ao ver que o papo estava rendendo, disse "por que você não vem aqui pra casa continuar isso?" "Vai ter uma reunião de amigos daqui a pouco".

 

Cruzei com a Paula, indo a um churrasco roubada. "Vamos combinar de fazer alguma coisa juntos". Meses antes, eu passei uma época tentando sair com ela, sem sucesso. Finalmente, cheguei à conclusão de que ela estava sendo gentil, mas não queria nada comigo, e parei de ligar. Mas dessa vez, foi ela que tomou a iniciativa de me chamar pra sair. Ela pareceu tão feliz em me encontrar...

 

Estou eu, a Paula e o Eduardo em minha casa. Eu estou concentradíssimo procurando ser interessante para a Paula. O Eduardo parece ter percebido isso, e ao invés de disputá-la comigo, vai saindo do papo, o que me surpreende muito. Já nessa época eu sabia que estava enfrentando ele. Logo depois da reunião na casa da Amanda, quando a Carol perguntou se alguém queria beijar alguém e todo mundo ficou inibido, eu perguntei pro Eduardo quem ele queria beijar. Ele respondeu que não ia falar, porque eu tomaria vantagem da situação e no final não diria quem eu queria, e ele ficaria em desvantagem. Eu me ofereci para falar primeiro: eu queria a Paula. Ele disse então que não queria ninguém em especial, que queria a todos como um grupo, porque o clima estava muito legal.

 

Eu não esperava isso do Eduardo. Até esse momento ele era o meu melhor amigo e confidente. Entretanto, eu soube ler as entrelinhas. Ele respondeu à minha pergunta.

 

Eu estava na PUC, e o Eduardo combinou passar na casa da Paula pra pegar ela antes do show do Ramones. Impossível combinar com ele de nós nos encontramos antes, ele simplesmente não queria. "Então lá dentro." Pra que tentar? Fiquei circulando que nem um doido, e num dos lados do salão havia uma rampa com portas de emergência, e vários casais agarrados/reclinados. Puta merda, eu vou encontrar os dois juntos, e vai ser o inferno.

 

Mas no dia seguinte, o Eduardo estava relamando que o show não tinha sido legal, que não tinha nada a ver me procurar, que apesar disso tinha me procurado e eu não estava no lugar combinado, e logo logo ele já havia taxado a Paula de pessoa desinteressante.

 

Agora ele está discutindo política com a minha mãe, enquanto eu e a Paula trocamos olhares. Quem está sendo desinteressante agora, minino?

 

Nos sentamos no chão, em frente ao palco, e tenho a impressão de que poderia tocar a Paula, e ela deixaria, mas falta coragem. Ela diz que vai pegar uns flyers e me chama para ir com ela, depois a gente fica morrendo de rir dessa coisa de convidar alguém pra pegar flyers. Indo para o Fundição, o Eduardo vai sumindo até que resolve ir estudar num bar da Lapa. Nada mais conveniente, não? Eu e os outros acabamos num bar em frente a galeria Alaska. Conversa vem, conversa vai, Paula entediada, quer ir para casa. Deixo Ana beatriz primeiro. Paula volta a conversar, animadíssima. Eu também não tenho a menor pressa de me despedir.

-- Não é melhor estacionar o carro, pra gente conversar?

-- Não, se a gente estacionar, o assunto acaba.

-- Do jeito que estamos conversando, duvido.

Paramos. Saímos do carro. A abobrinha durou até umas cinco horas da manhã. Eu tremia. Estava calor. Agora sei que não é frio. A voz dela também está trêmula, e quanto mais trêmula, mais inventa assunto. E ela não vai embora. Pode rolar hoje.

 

Mas também posso preferir não arriscar, e daí? Ficar dá tanto trabalho, e a minha vida está tão tranqüila... Eu não preciso de mais essa preocupação.

 

-- Já está tarde, os meus pais vão brigar se acharem que eu não dormi em casa.

Ensaiei algumas hesitações. Paula ficou mais um pouco.

-- Agora é sério, tenho que ir...

-- Paula...

-- Hum?

-- Me dá um beijo?

-- Dou!

 

Aí ferrou, né? Tive que beijar ela. Ela disse, depois de alguns minutos:

-- Por que isso agora?

-- Sei lá, mil coisas...

"Por que isso agora"? Como assim? Droga, é a primeira vez que um beijo não define nada. Ela não virou estátua, não repeliu, não foi indiferente como o último da Cristiane, mas também não definiu nada, como no beijo da Mônica. "Por que isso agora"? Não sei!

-- Está tarde. Outro dia a gente continua isso.

Agora eu estou perplexo. Tão perplexo, que quando a gente voltou a se encontrar, pedi um beijo de novo. "Você não tem que ficar pedindo toda hora", e me beijou. Ah, bom.

 

Entramos no carro. Eu estou dando a partida, e ela põe a mão na minha nuca, e começa a fazer carinho. Eu olhei pra ela, surpreendido. Aquele gesto, tão terno e tão gratuito...

 

Era a definição que eu esperava.

 

Mais que isso. Foi o primeiro gesto de amor gratuito que eu recebi.

 

3

 

Para onde? Cinema? Não, vamos para algum lugar diferente. Tem um restaurante em Botafogo cujo maître é a cara do Pingüim do Batman.

-- Yes, roubada!

Estamos em frente do restaurante, tentando descobrir se é ali mesmo, quando o maître pula na nossa frente, como se fosse o mordomo Igor.

-- É aqui mesmo, Cantina Bolonhesa, vamos entrando! Eu vou ser obrigado a fazer uma pergunta... Fumante ou não fumante?

-- Não fumante.

-- AAAAAHHHHH!!!!! Muito bem, sigam-me, estamos passando pelo setor azul (é onde ficam os fumantes...) AQUI!!!! CHEGAMOS!!! Podem se sentar! Fiquem à vontade! Daqui a pouco já volto, viu?

Deu as costas e foi embora. Nós contendo o ataque de riso. Começamos a nos agarrar. Daqui a pouco...

-- Posso atrapalhar agora??

-- Tudo bem.

-- O que vocês vão querer??

-- Tem pizza de champinhon?

O maître esconde a cara entre as mãos, numa atitude de pura vergonha.

-- Ah, não, deixamos o senhor sem jeito...

-- Que tal... ESTA pizza de palmito, hein?

-- Tudo bem...

-- ÓTIMO!!! PIZZA DE PALMITO!!! É PRA JÁ!!!

Sumiu. Vem outro garçon, e acende a vela que está escorrida sobre a garrafa da nossa mesa. As paredes estão cobertas de mofo e quadros mofados. A luz é bem pouca. Um garçom vem diretamente à nossa mesa, e quando chega nela vira bruscamente, e segue seu trajeto até o banheiro. Volta fazendo o mesmo caminho, com viradas bruscas, como se fosse um daqueles bonecos de relógio que andam sobre trilhos. O maître faz o mesmo caminho tortuoso para entrar no banheiro. Volta nos mesmos trilhos. Ficamos aguardando os garçons, vindo de direções opostas, baterem um na cabeça do outro com martelos, darem meia volta e se esconderem de novo.

Um velho português ao nosso lado parece querer seduzir uma menina muito mais nova, com um papo tipo "Cadê a moral e os bons costumes?!!!". Uma mulher lê um livro em voz alta para um casal. Começamos a imaginar que todos os freqüentadores do local eram membros de uma seita qualquer, e que à meia noite seríamos o prato principal. Tenho que convencer o maître a não botar álcool no meu suco de tomate. Isso dura minutos.

 

Paula aperta a minha coxa e, quase mordendo o meu pescoço, pergunta pra onde a gente vai depois do restaurante. "Não estou com a menor pressa de te levar pra casa". Mas o clima de tesão não resistiu à chegada ao motel. Enquanto eu estou vasculhando o frigobar, a Paula se tranca no banheiro. Quando resolve sair, está de bermuda e camiseta, e meio abatida, pouco à vontade. Começo a examinar a parede mofada, e começamos a inventar razões absurdas para o mofo na parede. Nos beijamos. Mas temos que ir pra cama. E tenho que deixar a camisinha à mão. E tenho que continuar a mexer na Paula, pra não perder o clima. Broxo. Broxo de novo. Tudo bem, a gente fica só junto se curtindo, não precisa transar.

Não, não vou desistir. Vou fazer a Paula se apaixonar por mim, e é hoje. Reviro os olhos, me concentro e, calmo mas determinado, começo a sentir a pele da Paula com todo o meu corpo, decidido usar toda a energia que eu tivesse disponível naquele instante para dar-lhe prazer. Surpreendentemente, a Paula tenta pegar minha cabeça e me puxar pra cima, pra me beijar. "Relaxa". Ela parece ter pressa pra terminar, e eu quero prolongar o seu prazer o máximo. De repente, sinto a falta da camisinha. Agora já era, não vou interromper o que comecei. Quando terminamos, Paula pergunta sobre a camisinha. "Não sei, uma hora estava lá, na outra sumiu. Não está dentro de você?" Eu tinha certeza que tinha socado tudo lá dentro, sei lá como. "Não".

 

Nunca encontramos a bendita.

 

Dia seguinte, estou num churrasco roubada com a Dani. Ela sente falta do seu caso atual. Eu sinto falta da Paula. Muita falta. Não chamei ela para não grudar demais, e agora estou me remoendo de remorso.

-- Eu queria ser difícil, mas eu não tenho vocação pra isso! Eu sou fácil!

Cheguei em casa, e ela tinha deixado um recado na secretária, dizendo "Tá, já vi que você não é um homem fácil. Agora liga pra mim."

-- Liguei pra você o dia inteiro. Onde você foi?

-- Eu estava tentando dar uma de difícil, mas já fui punido. Eu me arrependi. Eu quero ser fácil pra você. Mas aí não adianta ser unilateral. Você tem que ser fácil também.

-- Eu topo!

 

Ficamos fáceis um para o outro. Fomos no Fashion Mall ver um filme, mas saímos nos dois primeiros minutos. O filme desviava a nossa atenção um do outro. Ficamos se gostando.

-- No que você está pensando?

-- Nada...

-- Ah, diz!

-- Eu queria saber dizer "Eu te amo" sem soar brega.

-- Já disse!

O segurança adverte que a gente "não pode ficar deitado no banco não." Nós nos levantamos, e quando o cara vai embora, a gente deita e fica se agarrando de novo.

 

1-2-97

4

 

Paula não estava tão feliz assim, entretanto. Eu reparei, perguntei, mas ela estava opaca como quando a beijei. Não conseguia mais sentir o que ela estava pensando. Ao deixá-la em casa, ela terminou comigo.

 

-- Mas por que isso? Eu sei que você me ama, eu sinto isso!

-- Quanto maior a altura, maior o tombo. Eu vou pular fora enquanto ainda está baixinho.

(Isso me lembra o delegado do Almoço Nu, com a cabeça enfiada na lata de lixo após um pico de coca: "Se manda ou eu te dou um tiro. Encontrei um bom esconderijo")

-- Não chora, querido!

-- É claro que eu vou chorar. Se você terminasse comigo por que não estava curtindo, tudo bem, normal. Mas gostando de mim, eu não posso concordar com isso. Você está errada.

 

-- Pedro, eu estou mal. Posso passar por aí?

-- Claro, claro, pode vir. Você está chorando?

Eram umas quatro da madrugada.

 

-- As mulheres não agem com lógica. Que coisa absurda! É óbvio que ela está agindo contra os seus próprios interesses. (Pedro sempre acha que tudo pode ser reduzido à lógica)

Viramos a noite, e o dia também. Não queria ir pra casa. A gente nem tinha assunto, o Pedro no computador e eu olhado pro teto.

 

Uns dois dias depois, pelo telefone.

-- Como você está?

-- O que é que você acha? Péssimo. E você?

-- Sinto saudades.

 

Uma semana depois, ou quase isso.

-- Você quer vir aqui em casa?

-- Tudo bem.

Uns 15 minutos depois, ela sendo simpática e hipócrita, e eu jogado por cima da cama dela sem disfarçar que estava achando aquilo tudo uma palhaçada.

-- Bora ver um filme?

-- Olha, Paula, se você me chamou aqui pra me tratar como amiguinho, eu já estou indo embora. Estou de saco cheio dessa história toda.

-- Não, fica. Me dá um beijo.

 

-- Me desculpa? Eu estava com medo.

-- Tá, mas não repete.

-- Você tá estranho.

-- É que eu tô machucado. Mas tudo bem, é só você cuidar de mim que passa.

-- Eu cuido de você.

 

5

 

MUUUUUITO gripado, e a Dani veio me visitar. Ao saber que a Dani estava lá em casa, a Paula resolve aparecer. A Dani fica impressionada com a beleza da Paula, que ela nunca tinha visto. Acho que ela não esperava que eu arrumasse alguém tão bonita pra mim. Dani faz sua saída estratégica pela direita. Mostro a música do Vangelis que tem o clima que eu queria que rolasse com uma menina. Conto como queria poder me sentir como o Peter Pan quando sentava na "Poltrona de se gostar" junto com a Wendy, que nem papai e mamãe. Paula diz que a música parece o fundo musical da floresta encantada. E que sonhou que transava com o Peter Pan quando tinha 11 anos. E gostou.

E aí ela pulou pra minha cadeira-de-rodinhas-de-se-gostar. Como eu estava doente, a gente ficou um tempão viajando um no corpo do outro, com o som do Rêve rolando. Mó transa de Peter Pan e Wendy.

 

É claro que eu não vou descrever o resto por enquanto. Um dia eu te conto.

 

O que importa é que, podia ser no início ou no final -- não importava! -- a gente começava a sorrir MUITO um para o outro, e eu reconhecia nela A mulher. A mulher da minha vida. E eu ficava com os olhos cheios de lágrimas. Deve ter sido numa dessas vezes que eu, pela primeira vez, encanei de chamar alguém de querida.

 

E como era gostoso.

 

Vindo de uma sessão de Tai-Chi na Lagoa, olhava para todas as meninas que passavam, e ao compará-las com a Paula (incrível) não senti aquela sensação de que a grama do vizinho é sempre mais verde. A Paula dava de mil a zero.

Ou então vinha de bicicleta com uma cara de bobo alegre dizendo muito pilhado para mim mesmo "Eu amo a Paula", quando passei por um grupo de meninas cantando "Dança dandandança dança dança do gorila" e uma delas disse "Ih, olha o cara tá rindo à toa!", e eu fiquei hiper orgulhoso.

 

Um dia, sonhei que eu e a Paula estávamos juntos. Um padre, tendo um ataque de ansiedade, vem com uma conversa de que a gente precisa ser salvo do fogo do inferno porque estamos transando demais. Aí ele pega nossas mãos e diz que a gente tem que rezar. A gente começa:

-- Pai nosso que...

-- AMÉM! E eu os declaro marido e mulher.

Eu e a Paula surpresos, sem entender nada. O padre explica que tinha que fazer tudo rápido antes que fosse tarde demais, e se algum dia a gente começasse a transar menos ou parasse de se ver podia chamar ele que ele desmanchava o casamento, aquilo tudo era uma medida de exceção para preservar nossas almas tão ameaçadas.

Eu contei o sonho pra Paula. Ela me perguntou se eu queria casar com ela. Topei na hora.

 

Começo a ficar paranóico com a possibilidade da Paula deixar de me achar interessante. Todo meu tempo livre é devotado a achar coisas legais e diferentes pra gente fazer. Depois de ver um filme japonês sobre comida (Tampopo: os brutos também comem spaghetti), descubro o mais tradicional restaurante japonês do Rio, um sobrado no centro, totalmente escondido e despretensioso. A comida é ótima, e a música, nas palavras da Paula, parece "Sertanejo japonês". Compramos um casaco pra ela no arsenal da marinha, muito barato, e voltamos sentados no chão do ônibus, nos agarrando.

Ou então nos mandamos pra Tanque, um subúrbio do subúrbio, ver um show punk. Bar encruzilhada. O bar ficava num canto do galpão, e mais parecia uma barricada. Peguei um guaraná, e por cima da multidão, agitei a latinha pro cara do bar, do outro lado, ver. Ele faz sinal de "um". Arremesso uma moeda de um real, e a bebida está paga. O grupo canta o refrão, "Porrada / porrada / porrada na cabeça!!!". Começa uma briga, e a música para: "Ô, vamos ficar na moral, valeu? Na moral, valeu?" Todo munda senta no chão. Parece um maternal. A música termina. "Ei, não terminou ainda não!", grita um moleque. A música continua, ainda mais alto: "PORRADA / PORRADA / PORRADA NA CABEÇA!!! ... Ô!!!" Voltamos de madrugada, dormindo no banco de trás do ônibus.

 

Eduardo sendo grosseiro comigo e com a Paula. "Eu não sei como é que a gente foi brigar por tão pouco". Tão pouco era a Paula, o amor da minha vida. É claro que eu não estava curtindo nem um pouco cruzar com o Eduardo.

 

Cada vez temos menos tempo pra ficar juntos. Ou é mais vontade de ficar do que o tempo permite? Passei a semana sem poder transar com a Paula, e hoje é o aniversário da Dani. Ou vou pra casa da Dani, ou encontro a Paula. E nem vai dar tempo pra fazer muita coisa além de transar com ela.

 

Hummm... Paula é mais importante.

 

Decido comprar uma câmera de fotografar mecânica, de verdade, pra tirar fotos da Paula. Peço informações ao João Pedro sobre qual comprar, já que não entendia nada sobre o tema. Ele me recomenda uma Pentax usada. Eu compro uma nova. Eu quero a perfeição, quero retratar a Paula o mais fielmente possível, e fico imaginando como ela vai ficar em preto e branco. Os pais viajam, e ela vem dormir comigo pela primeira vez, uma noite inteira juntos. Pela manhã, ficamos se gostando deitados na rede, e faço tranças no cabelo dela. Nunca a tinha visto tão feliz. Meu primeiro filme em preto e branco tem a Paula de tranças, vestindo uma camiseta minha, com a expressão mais linda de ternura ao olhar pra mim.

 

E logo depois cora e baixa a cabeça, sorrindo.

E logo eu já não posso mais ficar um centímetro distante de sua pele.

 

Estava andando pelo Shopping da Gávea com a Dani, e a gente vê um abajur genial, que tinha um cata-vento que rodava com o ar quente que saía da lâmpada e projetava figuras numa tela de papel vegetal enquanto rodava. Resolvi fazer um para a Paula. Dani diz que se eu não fizer outro para ela, ela liga pra Paula e conta tudo. Eu prometo fazer um para ela também.

Deu um trabalho do cão, mas eu fiz, nos curtos intervalos entre o trabalho e os encontros com a Paula. Um dia, ela entra no meu quarto, e vê a geringonça funcionando. "É seu".

 

Escrevo no meu diário:

"Portanto, ordem do dia (e de todos os dias): Fazer a Paula feliz.

 

Cada vez mais feliz, até rebentar.

 

E aí eu costuro de novo, e ela vai ficar com uma cicatriz linda!

 

Ih, ri ri ri!"

 

Mas não tinha nem tempo, nem motivação pra repetir a façanha do abajur para a Dani. Ela não estava muito legal, sozinha, e ficou MUITO magoada. Também prometi um gato, mas ao tentar pegar um na rua, tive dó. Ao contar pra ela, piorei ainda mais as coisas. Ela não quis mais ser minha amiga. Qualquer um que teve uma amiga na infância, sabe que isso é a pior coisa do mundo, e para evitar isso um menino de 8 anos é capaz até de brincar de casinha.

 

Cada vez mais afastado do Eduardo, e mais próximo do Pedro. Estamos num aniversário, e rola um beijo a três com a Paula e o Pedro, na frente do Eduardo. A gente morrendo de rir, mas eu fiquei preocupado quando o Bran QUASE sugeriu um beijo a quatro. Peraí, não tou a fim de socializar a Paula tanto assim não.

 

Eu e a Paula se agarrando na casa do Pedro. "Eu não queria dizer isso pra vocês, mas vocês são muito gostosos". Eu comecei a ficar com medo da Paula estar curtindo mais a mão do Pedro, e depois a língua dele no seu clitóris, do que os meus carinhos nos seus seios. Não curti nem um pouco o beijo que dei nele. Eles perguntaram se eu não estava curtindo, que eu tinha ficado estranho. Sugeriram parar. Eu disse que rolava experimentar, e se eu não curtisse, não rolava de novo. Dentro em pouco, eu tinha me auto-excluído da situação, e assistia a mulher da minha vida sendo comida (e gostando de ser comida) por outro cara.

 

Paula estranha e ausente, opaca de novo, cínica. Ao encostá-la na parede, ela desembucha. "Eu gostei, eu quero que role de novo". "Com o Pedro?" "É". Explico mil teorias sobre viver juntos, sobre investir muito em uma só pessoa e não pouco em várias, que isso é o que dá mais satisfação, e não largo do osso até que ela topa. É claro que eu ameacei terminar.

 

"Não, é óbvio que é muito mais importante a nossa amizade do que comer uma garota". Mas é claro que os sentimentos da Paula eram muito mais importantes para mim do que os do Pedro. Era bem mais preferível para mim que fosse a PAULA que não quisesse transar.

 

Com tudo nesse estado, tive que ir viver em Ribeirão Preto pra fazer o estágio e a prova do mestrado. No ônibus, chorei até dormir. A Paula cada vez mais fria, menos pessoal. Eu ligava TODO dia, morrendo de saudades, mas isso cada vez parecia me satisfazer menos, do jeito que as coisas iam. Um dia, terminamos por 24 horas, pelo telefone. Era insustentável. Ficava imaginando a Paula chorando, e isso me cortava o coração. Eu tinha resolvido terminar por ciúmes, claro, ela tinha voltado a me dizer que se rolasse, ia transar com outro, e junto com sua ausência afetiva, tudo apontava pra esse desfecho.

Dias após a prova, o ano letivo terminou, e ela veio me visitar. Demoramos pra nos beijar, pois ficamos abraçados, chorando, bem na porta do ônibus, sem dar a mínima pro mundo. De presente, dei pra ela um colar feito de linha comum, com um dos botões do meu casaco de neve, uma alusão ao Peter Pan. Ela ficou tão contente! Tínhamos um quarto só para nós, em verdade uma casa, que eu tinha arrumado e aprovisionado com dias de antecedência. Ficamos uns dois dias sem sair de cima, sem ver a luz do sol. Quando acalmamos, resolvi procurar a linha do trem e algum lugar para subir num vagão de carga.

 

Entramos na estação, está tudo escuro, e começa a chover muito mesmo. Está tudo alagado, e nós ainda estamos nos escondendo dos funcionários da ferrovia atrás de um barranquinho. Paula senta numa poça e começa a receber exu, num ataque de riso absolutamente satânico. Nem reconheço mais ela.

Horas para encontrar um vagão aberto no meio de centenas fechados. O casaco da Paula completamente ensopado, um frio do caralho. Ela tremendo, mas bancando a durona. Eu preocupado em manter ela quente. Dei pra ela meu casaco, que estava seco por dentro, e fiquei abraçando ela por dentro e massageando pra esquentar. Depois que passou o terror, dormimos em cima do casaco, abraçados.

Acordei, e ela estava na porta, olhando o sol nascer. Fiquei ali, observando ela contra a luz. Os vagões vermelhos contrastavam com o mato verde que crescia entre os trilhos. Era lindo.

Abracei-a por trás. Ela me abraçou, dizendo "Ah, querido".

 

De volta pra casa, fedíamos a açúcar fermentado. Um horror.

 

E aí eu recebo a notícia: passei em quarto lugar pro mestrado. Só há um problema: o programa só está oferecendo três bolsas. Pirei. Fomos ver o Milton Nascimento, mas eu não consigo curtir. A Paula apaixonada, e eu amedrontado. Em casa, estou tão fora de mim que só me lembro da Paula chorando, pedindo pra me abraçar, e eu em pânico dizendo pra ela não se aproximar, que todo mundo é inimigo e eu não posso contar com ninguém. Depois passou.

 

Graeff sugere fazer um projeto e enviar pra Fapesp. Ninguém tinha me avisado que era tão simples.

 

6

 

Eu quero grudar na Paula. Ela oferece resistência. Eu quero, algum dia, ter um filho com ela. Ela acha um absurdo botar mais um no inferno. Fico transtornadíssimo, porque eu QUERO um filho, eu sinto saudades dele, mesmo antes dele ter nascido. Eu quero um filho que vai ser uma mistura de mim próprio com a pessoa que amo. Paula acha a imagem linda, mas está fora. Vendo como o desejo, diz, entre lágrimas, que vai compreender se algum dia eu trocar ela por alguém que tope ter um filho. Acabo abrindo mão dele, pois não vale a pena se não for com ela. Mas o sentimento que fica é de que o matei.

 

Cada vez sinto mais falta da Paula. O tempo que a gente passa junto já não é suficiente. Quero passar o máximo de tempo possível junto dela. Quero estar com ela aonde ela for, nas reuniões de família, nos almoços roubada. Claro que eu fico meio sobrando, mas fui eu que escolhi.

 

Paula vai para a Europa passar um mês. Eu morro. Volto a ver Pedro e Eduardo. Na minha casa, estou deprimido, deito a cabeça no colo do Eduardo, meio que pedindo carinho. O Eduardo fica incomodadíssimo, diz que me odeia porque eu sei pedir ajuda e ele não. Quando saio com os amigos, não consigo participar de nenhuma conversa, porque eu só tenho a Paula na cabeça, e todo mundo já está de saco cheio.

 

Dani me sugere escrever minhas memórias, para passar o tempo. Ao chegar ao episódio da ficada com a Cristiane, percebo que já faziam cinco anos que não tinha notícias dela, e resolvo ligar. "Se lembra de mim?" "Claro que sim, seu bobo! Eu tenho precisado tanto falar com você, amigo, mas você sumiu!" Sugeri nos encontrarmos, e tive que convencê-la. Ela tinha medo, após tudo que havia acontecido. Ao ir para o Parque Lage, hesitava. Minha vida estava tão resolvida, com meu namoro com a Paula, e agora ia desencavar a Cristiane pra ferrar tudo. Eu sabia a intensidade dos sentimentos que a Cristiane provocava em mim. Bastava vê-la, e as mãos formigavam, o coração batia...

Tudo isso aconteceu, mas soubemos como lidar com isso. Com algum medo, conversamos sobre como tínhamos nos tratado nas últimas vezes em que nos havíamos visto, verificamos os erros e nos perdoamos mutuamente. Nos abraçamos. "Você é muito importante pra mim".

Cristiane tinha medo de me ver de novo. "Eu estou namorando, e não quero me envolver". "Eu também não quero estragar o meu namoro com a Paula. Mas nós podemos ser amigos, e nos curtir sem ter que ficar. Sua presença já me dá prazer suficiente". Ela topou tentar.

 

Paula volta, e conta que passou a viagem toda com vontade de chorar, de saudade.

 

Em Ribeirão, acordo todo dia antes das cinco pra ligar pro meu amor na hora de menor tarifa telefônica. É uma das épocas mais felizes. Estou hiper orgulhoso da gente estar bem um com o outro e suportando a distância numa boa. Em alguns momentos, ao caminhar ao sol, eu fico até eufórico, pois eu encontrei a mulher da minha vida, e nada vai ser capaz de nos separar.

 

Enquanto isso, Paula experimenta ecstasy e curte horrores. Fico preocupado, peço pra ela não tomar mais até descobrir se o negócio vicia ou faz mal. Não descubro nenhuma evidência direta disso, mas descubro que o negócio age em receptores de dopamina (o mesmo lugar onde age a coca). Peço pra ela não tomar mais, e é claro, enfrento resistência. Ela tinha tomado uma vez, tinha curtido MUITO, não estava nem aí pra qualquer efeito nocivo, e em uma semana tinha entrado numa puta depressão, puro efeito da coisa. O ecstasy realmente parecia com coca. De volta pro Rio, choro e explico mil vezes a minha teoria sobre viver juntos ser incompatível com não cuidar da própria saúde. Terminamos por 24 horas.

O Pedro resolve experimentar e vai pra Febre. A gente sai no encalço dele, já sabendo que a Febre vai estar uma merda e ele deve estar numa puta bad trip. Pagamos o ingresso só pra tirar ele de lá e levá-lo para a praia, esperar passar o efeito. Ele se derrete. "Estava horrível, mas agora vocês me salvaram, meus amigos!" Abraços para todos. Saindo de lá, esbarramos com a Helena e outra garota, acabadíssimas. "Você tomou um Ê? Ai, ele é a única pessoa feliz no mundo... Ah, dá um pra gente! A gente precisa Taaaaaanto... Não tem mais? Nem na sua casa?" Pareciam duas almas penadas. Depois dessa, a Paula ficou um pouco mais amedrontada com o tal do Ê. Tomando um coco, eu e a Paula preocupados com o Pedro e o Eduardo morrendo de rir. "Pedro, temos que contar pra você a última novidade: terminamos". "Vocês não podem fazer isso comigo!!! Vocês são o meu modelo de casal perfeito!"Mas é claro que no dia seguinte a gente voltou.

 

Louco pra curar o nosso amor, comprei umas contas de madeira e aluguei a Nete e o João Pedro pra me ajudarem a fazer um colar colorido pra Paula. Mais uma semana de trabalho árduo, como quando fiz o abajur. Descubro que está passando "Je t'aime... Moi non plus" no cinema, e lá vamos nós. A Paula adorou o filme, ficamos no maior clima, e quando acabou, eu dei o colar. Não transamos, e nem foi necessário. Foi uma noite perfeita.

 

É madrugada, e Paula dorme envolvida em meus braços. Após ficar observando fascinado seu rosto e tentar me conter durante muito tempo, eu não agüento a pressão e lhe dou um beijinho bem de leve, quase me arrependendo de atrapalhar seu sono. Aí me vem uma alegria, uma paixão tão grande que eu fico com os olhos cheios d'água e começo a dar vários beijinhos vagarosamente, bem de leve, por todo seu rosto. Paula, bem devagar também, começa a retribuir também, dizendo "querido" baixinho e me abraçando, fazendo carinho no meu rosto.

 

Adoeci. Quase na hora de apresentar meu primeiro relatório da Fapesp, e sem dados. Sinto que vou perder a bolsa. Umas duas semanas de cama, a gripe foi embora, mas continuo me sentindo fraco demais para trabalhar. A Paula planeja viajar para a casa de um cara que quer comer ela, e está bastante empolgada. Peço pra ela vir me visitar, mas ela não está a fim. A Dani vem me visitar, e quem você pensa que aparece lá em casa? A Paula!

Resolvo ir para Ribeirão de mala feita e tentar conseguir dados por lá, e a Paula foi também, pois logo depois ela pegava um avião pra passar cinco meses nos Estados Unidos. Enquanto eu curtia um climinha de casal, ela estava meio séria. Sou mandado de volta para o Rio, e voltamos juntos. No caminho, ela diz que não me ama mais, e que talvez isso seja razão para terminar. Tento convencê-la de que a gente pode procurar o problema e consertar, fico desesperado, mas ela não me consola, pelo contrário, ela está mais fria do que um desconhecido. Ao chegar no Rio, me enfurno no laboratório e não vejo ela até o dia da sua partida. Ao mesmo tempo que não quer terminar, Paula também não demonstra tristeza ao se despedir. Quando eu ia para Ribeirão, era uma choradeira. Agora, todos os outros casais estão chorando, e ela está muito mais solícita com os outros do que comigo. Percebo que é absurdo confiar na fidelidade da Paula por cinco meses, a milhares de quilômetros de distância, com ela em dúvida se me ama ou não. Mando um e-mail terminando o nosso namoro.

 

Isteitis

 

How did we get this far appart

We used to be so close together

How did we get this far appart

I thought this love would last forever

 

1

 

Paula me responde desesperada. Diz que passa o dia inteiro chorando e se lembrando de como era bom quando a gente estava junto. Eu mesmo tinha hesitado muito antes de mandar o e-mail, e logo após mandá-lo, já havia me arrependido. Voltamos. Os meus mails eram muito maiores, mas ambos nos correspondíamos quase diariamente. Eu verificava mais de uma vez por dia se ela já tinha me escrito. Esporadicamente, ela também me mandava recados pelo pager. Tudo isso ajudava a suportar a sua ausência.

Mas aí ela falava de um tio que ela conheceu, e de como eles tinham se divertido em uma festa aí, e de uma reunião que a Carol tinha dado num hotel com bacias quentes pras pessoas ficarem dentro, e se eu conheço a Paula, ela não é de perder oportunidades. Sabendo que se ainda não rolou, vai rolar, eu sugiro que um permita o outro de ficar com outras pessoas. Ela não topa, de maneira nenhuma, e fica insultadíssima. Eu não consigo dormir mais direito, fico me contorcendo de ciúmes, imaginando o que a Paula pode estar fazendo. E sei muito bem que deve estar sendo muito legal, talvez melhor do que comigo, pois a Paula curte muito mais aventura do que feijão com arroz. Mando uma fita com o tema do "Je t'aime... Moi non plus". Ela diz que foi muita maldade, que não parava de chorar.

Mas depois veio a calmaria. Começa a parte difícil do ano letivo, e ela não tem mais tempo nem pra festas nem pra me mandar muitos e-mails. Fico amigo da Cíntia, vamos fazer programas culturais legais e climinha, e eu explico a ela a minha forma de lidar com a paixão. Quando estou sozinho, é claro que eu quero ficar com a menina, mas quando eu estou namorando, posso viver o mesmo sentimento intensamente apenas curtindo a sua presença, como uma amiga. A Paula fica magoada, diz que dói ouvir isso, mas tudo bem, já que a gente combinou contar tudo um para o outro. Ela está se correspondendo freqüentemente com o Eduardo, e percebo que talvez tudo o que eu estou deixando de saber sobre os isteitis vá para ele. Sinto que estou ficando em segundo plano.

 

Não tenho animais para usar no laboratório, o orientador é ausente, e temo perder a bolsa. Resolvo abandonar o mestrado. Passo uma semana tirando fotos, pensando em investir nessa profissão. Gasto todo o dinheiro que tinha poupado durante o ano com equipamento fotográfico. Depois vejo que estou sendo covarde, e volto ao laboratório impondo minhas condições de trabalho. Mais uma vitória proletária. Mas a Paula não gostou nada de eu ter gastado o nosso dinheiro.

 

Paula resolve ficar mais uns 15 dias nos isteitis, após o ano letivo, para viajar um pouco. Eu estou apertadíssimo com o trabalho no laboratório, mas quero vê-la o mais cedo possível. Todas as colegas que foram com a Paula estão namorando americanos, e já faz muito que não consideram os seus namorados brasileiros. Eu não quero me juntar a eles. Ela me chama pra passar esse tempo com ela, faço as malas e em tempo record eu estou em São Francisco.

 

2

 

No ponto de táxi, ou melhor, perua, uma garota interessante, meio bicho-grilo, meio trilhas, me sugere rachar a corrida até Berkeley. O papo é hiper legal, e ela me convida para uma cerveja. Não, eu bem que estava a fim, mas eu combinei me encontrar com a Paula, e não quero deixar ela esperando.

Quem esperando? Não há ninguém me esperando. Eu aluguei o quarto, esperei, e nada. Aí resolvi ligar para o Brasil, pra dizer que tinha chegado bem. Estou deixando um recado para o pager da minha mãe, quando alguém me abraça por trás. É a Paula. Mas há algo estranho, não é um abraço terno, é forçado. Eu também não pude deixar o telefone antes de terminar o recado, e aí foi hiper estranho. De volta pro hotel, ela queria transar, mesmo com a gente se estranhando. Sem conversa, sem vaselina, assim na lata. Odiei. Não tinha clima nem para beijo de língua, e eu tive que meter nela. Argh, nojo.

Depois fomos para o alojamento dela, fazer suas malas antes de nos mudarmos para o hotel. Ela corria de um quarto para o outro, acertando mil coisas com os amigos, fazendo fofocas, sem me apresentar a ninguém. Na verdade, ela me largou no quarto, e ficava sem graça quando eu aparecia me oferecendo para ser apresentado. Cansadíssimo com a viagem do dia anterior, apaguei em cima da sua cama. Ouvi ela entrando no quarto, se vestindo e saindo. Pensei "ela vai voltar e me acordar para sair". Não voltou. Não me lembro se chorei, mas enfiei forte a minha cabeça no colchão, tipo "isso não pode estar acontecendo". Fiquei lá um tempão. Aí, horas depois, ela voltou, pegou um casaco pesado e foi embora de novo. Me decidi, e saí correndo pelas escadas, tentando achar a saída. Consegui alcançá-la na rua.

 

-- Você ia me deixar sozinho?

-- Mas você estava dormindo.

-- Não seja cínica. O que está rolando? Por que você está me tratando assim? Não se trata assim nem a um amigo!

Meia hora encostando ela na parede, e ela morrendo de pressa para se desvencilhar de mim e ir encontrar os seus amigos no lugar marcado, antes que eles fossem embora.

-- Não te amo mais.

-- Você está a fim de outro cara?

-- Estou.

-- Você já ficou com ele?

-- Não.

-- Você vai tentar esta noite?

-- Vou. Olha, você está me atrasando, depois a gente conversa.

 

Branco. Acho que voltei para o alojamento, e até entrei numa conversa legal com uns caras que também estavam morando lá. Estavam falando de relações amorosas, e eu contando tudo que tinha rolado e dizendo que não entendia mais nada. Eu estava no meio de lugar nenhum, sem ninguém que eu conhecesse num raio de mais de mil quilômetros. Eu não tinha nem pra onde voltar. Em verdade, eu mal sabia onde era o hotel. Fiquei olhando para a máquina fotográfica que eu havia acabado de comprar, mas que não servia para nada, era apenas mais peso na minha bagagem. Eu havia desejado tanto aquela máquina, e agora que a tinha comprado, ela era apenas peso morto.

 

A proposta da Paula era a seguinte: a gente ia dividir o hotel durante o tempo que restava da viagem, pois era mais seguro e econômico, mas ela queria distância de mim durante o dia. Ela não sugeriu nada para eu fazer durante o dia. Eu não sabia nem a direção do centro da cidade, não conhecia ninguém, tinha ido lá apenas para ficar com ela. Não deixamos de transar nenhuma noite, eu acabava topando, mas não era muito legal não.

Houve uma noite em que ela me convidou para ir a uma reunião com os amigos. Eu fiquei tentando me introsar (sem sucesso), e ela me beijou na frente do cara que ela queria. Eu estava totalmente fora do grupo, magoado, não podia competir. Aí ela começou a disputar o cara. Fui para a escada de incêndio, me sentei com a cabeça entre as mãos e fiquei me perguntando o que eu estava fazendo ali. Só voltei pra perguntar pra ela se ela ia ficar com o cara. Ela disse que queria. Eu não estava a fim de assistir. Voltei pra casa, e comecei a me tocar que eu tinha que dar um jeito de me divertir sozinho.

 

De manhã, juntei minhas tralhas rumo a algum hotel. Não agüentava mais a companhia dolorosa da Paula. Não só não encontrei um lugar, como também me senti vulnerável, no meio da rua com um saco do exército que pesava mais que eu, falando mal e com sotaque. Paula me encontrou assim, parado em frente a um cruzamento, e pediu para que voltasse, chorando. Voltei.

Mas já estava abandonando a inércia. Descobri o lugar onde rolavam os shows punks, o Gilman. O pouco que eu compreendia das letras das músicas me fazia rolar de rir. Tudo muito organizado, as pessoas batiam palmas, poucos pogavam, mó contradição. Mas eu me senti bem mais em casa ali. No dia seguinte voltei, e conheci um russo que me prometeu uma fita com gravações de bandas punks fazendo covers de heavy metal. Um escárnio.

A essa altura, eu já estava bem mais local. Claro, pra estragar tudo, a Paula decide que não tem mais nada para fazer em Berkeley e a gente vai para São Francisco. Tudo é difícil com a bagagem dela. Ela recebe um mail de um italiano que ela conhecia, e fica toda feliz. Não quer me deixar ver. Depois de ler, me mostra. Ele diz que, mesmo adorando o corpo dela, não dá pra ficar por que ele está pensando na namorada dele, que está para chegar. Ela conta que queria ficar com ele, mas ele não topou. Mas por que não me mostrou antes? Macaco aqui entendeu.

Fomos comer comida maluca em Chinatown. O prato: Eight Precious Ingredients. Conseguimos identificar três deles. Do resto, não dava pra saber nem se era animal, mineral ou vegetal. Horas de prazer intenso na livraria City Lights, em uma loja /museu de coisas estranhas, no café Vesuvio, onde eu fui sem ela, e também na Epicenter Zone, a loja de discos punks, e no bairro gay, comprando um cinto punk cheio de espinhos, encontrado no meio de acessórios anais. A Paula triste o dia inteiro, e quando eu tento consolá-la, perguntando se tudo isso era por causa do italiano ou do americano, ela tem um ataque histérico e sai do restaurante. Eu fico assistindo à cena. "Não dá pra entender, melhor desencanar e ir fazer os meus próprios programas." Passei a tarde inteira lendo Turguêniev no Vesuvio, mó climinha, e quando volto para o hotel, lá está ela estirada na cama.

Com um pouco de conversa, ela diz que achava que me amava de novo, mas tinha estragado tudo. As minhas esperanças mais doídas e sufocadas tinham se concretizado. Dou um crédito pra ela e topo voltar. Bons dias passados em São Francisco. Alugamos um carro e vamos a Diablo Moutains, e ao pôr do sol estamos sobre uma colina, eu com a cabeça no colo dela, a avistar campos verdejantes. Voltando, fazemos escala em Berkeley pra pegar a fita do russo meu amigo, e escutamos ela no carro. A Paula com uma puta má vontade de ouvir a fita, o que ela queria era escutar a dela, que ela já escutou mil vezes. Emburra. Puta merda.

Pegando o avião para Nova Iorque, ela quer botar metade da sua bagagem na minha, e quando eu peço para botar a minha espada de Tai-Chi-Chuan junto da sua bicicleta, ela tem um ataque, pois ela não é obrigada a fazer isso e a bicicleta é dela. Eu só observando. Várias horas esperando o Zé chegar em casa, no corredor do prédio, zero graus, e a Paula não quer mais conversar sobre o que está rolando com ela. Subimos no terraço do edifício, começamos a transar (afinal, estamos em Nova Iorque), mas ouvimos o Zé chegando. Nem uma palavra à noite. Não transamos. Nem uma palavra no avião, voltando para o Brasil. É, parece que ela não quer nada. Deixo sua bagagem em casa e adeus, amor.

 

3

 

Incrível como as coisas acontecem rápido. Incrível como o tempo demora a passar quando as coisas acontecem rápido. Cada vez que eu falava com a Paula, ela já tinha transado com mais um ou dois caras, mas ainda queria voltar. É sério, sem brincadeira. Não sei bem a ordem, mas sei (por que ela me contou) do tio que ela transava antes de ficar comigo, depois o cara que queria comer ela antes de ir para os isteitis, depois o Eduardo, depois o Pedro. Isso em um mês apenas. Eu dizia que esperava ao menos um pouco de recato, se ela queria ficar comigo. Tipo mostrar um pouco de esforço pra me ter de volta.

Saquei que não ia ter nenhuma chance de recuperar o meu amor-próprio se eu não aumentasse o meu próprio placar de transas. A Bárbara não topou, mas sugeriu fingir que tinha rolado. OK, melhor que nada. E aí o Pedro, falando comigo no telefone, diz que acha que eu não devo levar a sério o que aconteceu nos Estados Unidos, que o que importa é que a Paula me ama e eu amo ela, e que com o italiano era apenas sexo.

 

Mantive a calma, terminei a conversa e desliguei o telefone. Eu nunca chorei isso. Ninguém chora de terror. Afoguei meus urros de dor no travesseiro.

 

O inferno.

 

É claro que não tinha sido só o italiano, mas agora que o negócio era público, eu queria ir até o fundo da podridão pra ver até onde eu pude me enganar. Liguei para a Paula, e fiquei encostando ela na parede, enquanto ela dizia que estava com sono. Às quatro da manhã joguei verde: sugeri que havia algo que eu não havia contado pra ela sobre o que rolou comigo enquanto ela estava nos Estados Unidos. Ela ficou amargamente surpresa. Quando disse que só contaria após ela falar a verdade, ela cedeu, e contou tudo com detalhes, incluindo posições, sobre o cara do início da viagem e também sobre o tal italiano. Aliás, com esse último não tinha sido só sexo. Mas é verdade, ele deu o fora nela por causa da chegada da namorada, o que explicou ela estar deprimida lá em São Francisco.

 

-- Mas pra quê querer saber disso, pra ficar depois se masturbando pensando nela com os outros caras?

Sílvia sabe tudo.

 

Meu coração parou. Com a voz grave, revelei o meu ardil, e mostrei a ela como a coisa mais bonita que havia acontecido para mim em toda a minha vida havia sido destruída pelo seu descaso. Paula se desesperou, pediu perdão, aquilo tinha sido um erro. Ela finalmente sentiu que eu estava falando sério, e que ia me perder pra sempre, sem retorno. Tarde demais.

 

Sunny

 

Jus't can't take it

Don't you say it

I Can't take it

 

Fuck me down now

Love me down now

Run around now

 

Now I hit the ground and just look at the world around

Everything is alright when you're down...

 

Everything I say is going wrong

 

1

 

Meti a cara no trabalho, dormia pouco ao chegar do laboratório e mais um pouco ao chegar de madrugada em casa. Nunca tinha freqüentado tanto as festas. Fiz amizade com o Gustavo, que tinha se fudido com a namorada mais ou menos na mesma época que eu. Lá estávamos nós, dois bêbados com dor de cotovelo babando para todas as menininhas que passavam à nossa frente. Uma figurinha loira, cópia xerox do anjinho da Turma da Mônica, vem falar comigo, animadíssima. Demorei pra reconhecer, mas era a Sunny. Eu tinha visto ela um dia na casa do Eduardo, e ela ficava o tempo todo calada, eu falava com ela e ela não respondia (estranhíssimo). Aí, quando eu saí andando de bicicleta, ela grita lá de trás

-- Lindo!

Linda é ela.

 

-- O Eduardo andou falando mal de você, mas ele é um babaca com essas coisas. Acho você legal pra cacete. Aliás, a Paula é uma boba, você vai ver, logo logo ela vai querer voltar pra você.

Aí uma outra menina mais ou menos do tamanho dela, de cabelo preto, passa e leva ela pra uma mesa de concreto, onde elas ficam se agarrando na maior selvageria. Eu e o Gustavo começamos a comentar, e eu digo que estou tão louco que poderia ficar com as duas numa boa. A Sunny ri da idéia, não dá a menor moral. Pergunta se é ela que eu quero ou se as duas. Fico sem graça, digo que é mais ela. Elas voltam a se agarrar.

Gustavo pega um flyer e faz um boneco de pau duro, e manda para a menina de cabelo preto. Ela agradece com um beijo na boca, e volta a agarrar a Sunny. Resolvemos procurar diversão em outro lugar da festa.

De repende a Sunny passa correndo e me puxa para a pista de dança, começa a esfregar seu corpo no meu, mas depois de umas duas ou três músicas resolve me puxar de volta enquanto procura a sua amiga, que está com a maconha. A menina está desesperada. Enquanto prepara o baseado, a outra menina pede para um cara segurar a maconha. É o segurança do DJ. O DJ é filho do secrétário de segurança, logo, o segurança é um PM no horário de folga. Ele diz que não vai devolver a maconha, e ganha um tapa na cara. O caos. A menina é expulsa da festa, mas se recusa a pagar. O cara ameaça prendê-la, e ela ameaça agredir fisicamente ele se tentar. Sunny está abaladíssima, e os amigos a confortam (?). Sunny vai embora.

Mas a noite ainda não acabou. Uma menina começa a dançar comigo, puxa papo, pede uma cerveja. "Você está me explorando, mas tudo bem, eu topo." "Nossa, eu estou fazendo papel de criança, né? Desculpe, eu pago a próxima." Papo bem interessante, a menina cita anarquismo, mas quando eu sugiro um beijo ela diz que veio sozinha porque brigou com o namorado, mesmo assim não é razão pra sacanear ele assim. Valeu, colega, agora você me deixou mal (ou bem?). Disse que achava hiper correto, e que curti. Ganhou uma carona pra casa, e eu mais uma história falsa de ficada + sexo pra contar pra Paula.

Três dias depois tinha show de bandas punks femininas em Niterói. Não consegui falar com o Gustavo, e fui sozinho. Primeira tarefa: reconhecer as redondezas em busca de cantinhos onde possa rolar sexo. Segunda tarefa: achar conhecidos. Dei de cara com a ex do Gustavo. Muito gentil, meio rancorosa ainda, sem a menor idéia que eu havia me tornado amigo dele. Depois o Gustavo aparece, e fico quicando entre um e outro. Lá pelas tantas, uma banda boa: a vocalista, mó brotinho, canta fumando, totalmente apática, como se já tivesse se decidido por suicídio. Dou de cara com a Sunny. Fico tentando um papo, com pouco sucesso. Sunny vira-se e diz na lata "Porra, Daniel, o que é que você está querendo afinal?!!" "Ficar com você, pô! Aliás, desde o outro dia." "É, mas eu acho que não vai dar não." "OK."

Dei meia volta e abri caminho até o outro extremo do palco, morrendo de vergonha. Chegando lá, dou de cara com a Sunny de novo (Lembra do Droopy? Olá, Joe!). "Porra, não adianta nem fugir que a gente se encontra de novo, hein?" "Parece que não".

 

Acordei às 11 horas, e já havia um recado na secretária eletrônica: "Daniel, aqui é a Sunny, liga pra mim que eu tenho uma coisa pra te dar." Palavra. A irmã deu o endereço e disse pra eu ir pra lá, que ela tinha saído pra comprar um cigarro. Era virando a esquina da minha casa. Me vesti e fui, né?

Sunny queria ficar fazendo carinhos, mas não beijar. Aos poucos, convenci ela. Quando comecei a mexer na sua vagina, ela enrijeceu. Eu parei. Ela diz, surpresa: "Como você notou que eu não estava a fim?" e depois disso, ficou discorrendo sobre como eu era sensível e tal. Acabou deixando, mas não gozou. Disse que era frígida, que não gozava transando, mas curtia os meus carinhos. Fiquei sem saber se aquilo contava como transa ou não, que nem quando eu transei com a Mônica pela primeira vez.

Continuamos nos vendo, e eu não tinha tanto tesão por ela quanto pela Paula. Na verdade, não tanto quanto pela Paula ANTES da viagem para os isteitis, porque depois de me encontrar com ela lá, não tinha tanto tesão nem pela própria. Empatava. Empatava tanto, que algumas vezes vi a Paula e acabei transando com ela também. Para a Paula, dizia que a amava, mas queria correr atrás do prejuízo, pra gente ficar de igual pra igual. Pra Sunny, dizia que não tinha conseguido me desfazer totalmente dos sentimentos que eu tinha pela Paula, mas que queria acabar com isso, e o caminho era gastá-los pelo uso.

Qual era a versão verdadeira? Não fazia a menor idéia!

A Paula tinha ciúmes. A Sunny me dizia que eu devia voltar para a Paula porque eu a amava, e que no final ia dar tudo certo.

-- E aí vai ser legal, a gente vai transar de vez em quando e você vai me contar o que está acontecendo!

-- Peraí! Se eu algum dia voltar para a Paula, eu vou ser fiel a ela, menina. Não tem essa de "transar de vez em quando".

 

Terminei com a Sunny. Resolvi que era absurdo ficar transando com ela sem estar apaixonado, eu devia é buscar alguém de quem eu realmente gostasse.

Senti falta da Paula. Fomos ver o Titanic. Sem graça, né? Mas fomos ver na Cinelândia, num dos últimos cinemas com telão dos anos cinqüenta. Foi MUITO legal. Disse pra ela que, se ela me esperasse um pouco, eu voltava, mas ela tinha que segurar sua própria onda, e não se envolver com mais ninguém. Ela topou. Disse que achava errado o que tinha feito, e que depois de ter me dito o que aconteceu nos isteitis, é que sentiu como eu era importante pra ela. Bonito, né?

 

É, mas o babaca aqui se sentiu otário (todo corno se sente otário), e telefonou pra ela dizendo que não tinha mais certeza de que queria voltar. Encontro com ela numa reunião na casa do Pedro, eu de um lado da mesa e ela do outro, com o Eduardo mexendo nos seus cabelos e me olhando desafiadoramente.

Bato na casa da Sunny, e ela me recebe com um beijo na boca, enquanto um cara está de saída (e daí?). Às vezes ela não queria, mas as vezes queria. Normal. Genial. Fantástico! A gente fazia as coisas quando tinha vontade. Não havia cobrança, nem acordo. Impossível qualquer tipo de desentendimento. Nunca consegui que ela gozasse transando, mas esse não é o único jeito de dar prazer a uma mulher, felizmente. Aliás, ela estava me curtindo MUITO ultimamente, mesmo sem gozar. O Gustavo abre a porta de seu quarto pela manhã, mas eu e a Sunny estamos ocupando a cama, e há duas camisinhas usadas no chão. "Não tem grilo não, eu vou pro quarto dos meus pais".

Ia ter que trabalhar durante o Carnaval, e a Paula tinha combinado ir com o Eduardo para Teresópolis. Disse que voltaria logo, e aí a gente ia poder passar um tempo dormindo juntos antes de eu voltar para Ribeirão, e quem sabe isso poderia ajudar a consertar alguma coisa. Ela estava ansiosa para fazer as pazes. Disse pra Sunny que a Paula não merecia o meu perdão, mas que o tinha assim mesmo. Eu amava ela.

-- Fico feliz com isso. Se ela, mesmo sem merecer, pode ser perdoada, então talvez eu também possa.

Não era à toa que era tão fácil conviver com a Sunny. Ela também tinha suas feridas do passado, e um bocado de experiência no assunto.

Sunny passou todo o Carnaval comigo no laboratório. Enquanto eu trabalhava, ela lia, dormia, ouvia música. Às vezes até dava pra curtir o finalzinho do dia juntos, fazendo alguma coisa legal como subir a trilha da Pedra da Gávea, ou tirar fotos dela pelada em cima de uma árvore do Jardim Botânico. A Paula só voltou alguns dias depois do feriado, apaixonada pelo Eduardo.

 

Mundinho Particular

 

This is the happy house

We're happy here, in the happy house

 

1

 

Agora tive que ir morar em Ribeirão, definitivamente. Fabrício, um colega de pensão, estava morando numa república, o Mundinho Particular, e fui morar com ele. Estava me sentindo -- não sei -- parece que a minha máquina de sentir está avariada. Logo antes do carnaval tinha vindo para Ribeirão, e havia ficado um tempo. Conheci a Clarissa, uma menina legal, que me achou parecido com o protagonista do "Apanhador no campo de centeio". Achei ela interessante, alguém com quem poderia compartilhar meus sentimentos cabeça. Também conheci a Fá, uma menina irrequieta, que gostava ainda mais de nonsense do que eu. Haveria uma festa na república no dia seguinte à minha volta pro Rio, e a Fá queria me convencer a ficar. "Não posso, tenho trabalho a fazer no Rio".

Ao voltar do Rio, tendo perdido a Paula definitivamente para o Eduardo, já não estava considerando nenhuma das meninas que havia conhecido. Estava com o coração mau, sem saber direito o que esperar de uma relação com uma menina. A Fá parecia estar realmente esperando algo legal de mim, e eu não podia suportar a idéia de correr o risco de novo. Sexo com muitas meninas diferentes era a minha única ambição. E a sinceridade da Fá me dava medo de usá-la e depois magoá-la. Eu não queria fazer com ela o que eu sentia que haviam feito comigo. Mas como fazê-la perder seu interesse?

À tarde, estava indo para a USP, e a Fá me chamou na sacada, e me pediu um beijo. Dei, mas saí correndo para a USP, ignorando sua vontade de ficar comigo. À noite havia festa na república das meninas, e eu enchi a cara de vinho o mais que eu pude. Durante todo o namoro com a Paula tinha evitado qualquer quantidade de álcool, para não embotar meus sentidos quando estava com ela, mas agora tudo o que eu mais queria era não sentir essa ferida. Poderia dançar com a Fá, mas fiquei com a Kátia Kiss, uma mestranda, mais no meu nível (pensei), e também bonita. Depois de embebedar ela também, Kátia grita no meu ouvido que eu sou o cara mais louco da festa. Respondo que aceito um beijo, e o recebo com prazer. Acho que daí por diante estraguei a festa de várias pessoas: a da Fá, a do Fabrício (que também estava disputando a Kátia), a da Kátia (colei ela na parede e chupei seus intestinos pela boca, quase sem consciência do que estava fazendo, dado a gradação sangüínea do meu álcool)... E a minha. A Kátia foi embora, ignorando minha sugestão de ir para a minha república (onde foi parar minha discrição?); a Fá sumiu, e a Má veio me dar uma puta bronca (a Má já havia se tornado minha amiga e confidente desde antes do carnaval); o Fabrício foi embora dormir estendido na sala, e com ele o resto da festa. Fiquei chutando ele, excitadíssimo com minha bebedeira e a zona que havia se criado na minha cabeça após os últimos acontecimentos. Ele só queria dormir.

Eu dormia, como todo mundo da república, onde caísse. Na cobra, uma almofada cilíndrica de oito metros de comprimento por um de diâmetro, em qualquer outra almofada, ou revezando com o João no colchão dele. Eu dormia de noite e ele durante o dia. O Fabrício era o único que possuía cama, mas sem fronha. A Heidi, uma austríaca, e seu namorado português, tinham um quarto só pra eles, mas sem porta. Ela havia grudado uns papéis crepon pra servir de porta, mas o vento mantinha eles permanentemente levantados. A outra austríaca, a Irmi, tinha um quarto só pra ela também, mas com porta. Outras pessoas dormiam diariamente na república, mas não eram moradores, nem permaneciam mais do que uma noite de cada vez. Iam caindo conforme o sono viesse chegando.

Um dos freqüentadores mais assíduos era o Marcelo. Eu demorei pra entender que ele não estava realmente morando no Mundinho, mas vivia num pingue-pongue entre a república e a casa da sua namorada. Um dia ele me levou lá: ela dividia um apartamento com a Clarissa, mas isso também não ficou claro pra mim logo de saída, já que sempre que ia lá também encontrava a Viviane, a Karen, a Luísa, e mais um monte de garotas e alguns meninos. Marcelo vem à sala e me diz que as meninas estão me esperando no quarto. Eu pergunto o que é, e ele diz que o que elas querem é suruba, e é pra eu aproveitar. Quando chego lá, elas confirmam. Eu, meio sem saber por onde começar com quatro meninas na minha frente, me deito no chão. "OK, sou todo seu". As meninas tiram minha camisa, puxam minha calça e têm um ataque de riso ao ver minha cueca de bolinha rosa. Acabou o clima. Tento puxar a Luísa, mas ela diz que não pode, que tem namorada. Óbvio que rolava com a Clarissa, mas sei lá onde está a cabeça do Daniel. Ou onde está seu coração.

Quase me esqueço da Má.

-- A Fá ficou muito mal, sabia?

-- Má, eu não tinha nenhum compromisso com ela. O beijo foi um negócio superficial, eu não pretendia nada com ela.

-- Eu sei, e ela também sabe, mas ela está mal assim mesmo, e isso está deixando ela ainda mais confusa. Ela também só queria dar uns beijos. Só que vocês estavam iniciando uma amizade muito legal, e se você não tentar falar com ela, talvez você não salve nem isso.

 

2

 

-- Oi, Fá.

-- Oi, Dani.

-- Quer vir aqui?

-- Quero.

Contei toda a história da Paula, e que não estava legal comigo mesmo, então não rolava criar vínculo com ninguém. Fosse outro momento...

-- Essa Paula deve ser uma escrota.

Fá falou também das dificuldades pelas quais estava passando, e tivemos uma tarde agradável sentados na porta da rua. Rolaram alguns beijos, mas ela estava fria. Eu abortei nosso começo direito. Fá queria ir à piscina, e era domingo anoitecendo, mas não havia problema. Aprenda a regra geral: toda cerca tem um buraco. Invadimos a piscina da USP, e nadamos eu pelado, e ela de calcinha. Nos beijamos. Quase não via seu corpo no escuro, mas o sentia. Entretanto, não sabia o que sentir. Ficou frio. Fomos vestir a camisa, e comecei a fazer carinho nos seus seios, muito timidamente. Ela fria. Pedi pra que ela avisasse se se sentisse insultada. Ela não entendeu nada. Duas lanternas na minha cara, e os seguranças nos puseram pra fora da piscina. A caminho de casa, a Fá ainda não acreditava que eles apenas tivessem nos pedido para sair, ao invés de fazer um B.O. ou prender a gente. Rindo, pediu pra ir pra casa dela. Não rolaram mais beijos.

Clá está sentada na cama, e eu deitado no chão. Me sinto tão à vontade em sua casa. Por isso mesmo, não tento nada. Talvez um dia eu esteja melhor de cabeça, e essa espera adicione algo positivo à nossa relação.

Klaus andou testando uma receita que eu trouxe, de um alucinógeno à base de casca de banana assada. Uma decepção. Não contente com o baseado não ter batido, ele fez um concentrado cor de petróleo e tomou dois copos e meio. Nada. No aniversário da Heidi, fizemos macarrão ao molho branco. Só que com a anilina que eu comprei, o molho ficou cinza escuro. Macarrão ao molho de concreto! A bebida era limonada punk, ou seja, caipirinha com anilina preta. Ninguém reconhecia as comidas pela aparência, e tudo isso só adicionava ao clima de loucura reinante. Denis trouxe o Mickey, um loucão que nunca voltou de uma viagem de LSD. Marcelo ficava gritando pela casa. Jorge, um africano de Guiné Bissau, tocava violão e todos se deliciavam com seu bom humor. A trilha sonora? Future Sound of London e Prodigy.

Numa dessas, resolvo fumar um junto com a galera. Ri um pouco, mas na manhã seguinte lá estava eu olhando pro teto, louco pra levantar da cama e acordar. Dali a dois dias, consegui juntar energia suficiente pra ir à USP. Não, fumar não é comigo mesmo!

Comento com a Heidi que queria uma namorada. Heidi responde: "Quem procura não acha!"

Pergunto pro Fabrício o que ele faz quando tem uma coceira que não consegue coçar. "Tento me convencer de que ela não é importante".

Na semana anterior, a frase mais dita na casa era "Aqui só tem louco!". Nesta semana, o hit é "Ih, desencana". É a resposta para todas as perguntas, a panacéia para todos os problemas.

 

3

 

Paula manda um mail. Bem comprido, e num tom que nunca tinha ouvido antes. Nele havia também a letra de uma música, algo comum nas minhas cartas, mas não nas dela. No mail, Paula mostrava arrependimento, resignação, pedia perdão e nutria esperanças de que voltássemos a nos encontrar num futuro distante. Alguns dias antes, ao falar com ela no telefone, ela tinha mencionado essa carta, mas disse que o que ela tinha escrito não tinha mais a ver. Pedi que mandasse assim mesmo. Ou seja, a dúvida persistiu. A minha resposta foi pior ainda. Nela, eu mostrava quanto medo eu tinha da Paula, e a impossibilidade de eu voltar a acreditar nela. Eu bem que queria, mas era impossível. Somando-se a isso, eu me sentia uma outra pessoa, e se nós voltássemos a nos encontrar, eu seria bem diferente. Falando no telefone, ela respondeu, magoada: "eu quero que seja como antes".

Talvez a única coisa que não consegui negar era que ainda amava ela. Mas o confessava muito a contragosto. Paula, por sua vez, não gostava de mencioná-lo, mas também o insinuava.

O tom do meu mail-resposta foi agressivo e irônico. Me incomodou isso, pois ao mesmo tempo que temia a Paula, eu também não queria abrir mão dela. Mandei um outro mail, dessa vez teorizando sobre as razões pra ela ter me traido e mentido pra mim, e oferecendo uma possível absolvição. Paula respondeu o primeiro se defendendo. Nos mails seguintes, voltei a ser irônico e agressivo, e comecei a pedir respostas categóricas sobre se ela ainda pensava como quando me escreveu o primeiro. Paula parou de responder, e eu parei de escrever.

Nesse meio tempo, o Eduardo me mandou um mail reclamando de eu não citá-lo na minha correspondência com a Paula. Não bastando o soco no estômago que significava ele ter lido a minha correspondência para a Paula e ele ter me lembrado que a vida sexual dela continuava sem mim (voltei a ter pesadelos com isso), ele falava algumas verdades sobre a minha forma errada de me relacionar com ela. Eu não estava tentando enxergá-la, e sim saber se ela queria ou não encaixar no meu modelo de mulher perfeita. Apaguei o mail na hora. Depois que o susto passou, me arrependi de não tê-lo guardado, e respondi ao que me lembrava:

 

"É verdade, não costumo te mencionar mesmo. Afinal de contas, minha relação com você foi muito diferente da que eu tive com a Paula, né? Eu nunca te amei..."

 

Eduardo me respondeu indignado, argumentando que eu tinha amado ele sim, e só se eu inventasse uma definição muito pobre de amor isso poderia ser considerado verdade. Voltou a dizer que eu tinha amado errado a Paula, sugerindo que ele fazia isso melhor, e que ao o ter respondido sucintamente eu confirmava o que ele havia dito, e desejando "mais sorte da próxima vez". Isso doeu. No pós-escrito, dizia que iria me ignorar quando o procurasse, se referindo a algumas tentativas de reconciliação, da minha parte, que haviam acontecido enquanto a Paula estava em Berkeley. Entretanto, a essa altura, ele já havia começado a revelar seus flancos através da escrita, e foi por aí que eu contra-ataquei: seguindo a mesma linha de raciocínio que ele, sugeri que ele havia reduzido o conceito de amor ao criticar o meu pela Paula. Ao meu possível interesse, disse que o cara a quem ele se referia tinha ido dar uma voltinha, e à resposta suscinta, que não estava com saco pra ficar batendo chifre. O tom foi o mais irônico e superficial possível. Eu sabia que ele era um adversário temível no campo das idéias, mas se tornava um mongolóide ao ser ignorado.

 

Dito e feito. Depois de algum tempo, mais tranqüilo e me sentindo capaz de segurar o touro, respondi seriamente sua carta. Além de perguntar se o gato tinha comido sua língua, sugeri que ele, mesmo alardeando que não se importava com a Paula transar com outros caras, sentia ciúmes, e isso tinha ficado claro quando eu transei com ela logo antes do carnaval. Quase terminaram. Ou seja, ele agia da mesma forma que eu havia agido, só que era hipócrita. Eu, por outro lado, estava disposto a receber o que ela quisesse me dar, sem exigir. Ou seja, eu não falava sobre ele nos mails porque pra mim tanto fazia ele estar namorando a Paula ou não. Se ela quisesse transar comigo, o papo seria entre eu e ela, e ele estaria de fora.

 

Não respondeu. Ufa!

 

Meus termos com a Paula também tinham melhorado. Comecei a mandar regularmente trechos das minhas reflexões e conclusões diárias. Basicamente me tornei um hedonista, ou seja, o que importava eram os sentimentos. Se a Paula havia me magoado, era por que os sentimentos dela por mim já não eram tão fortes, e tudo bem.

 

Paula mandou um mail curto, dizendo que sentia saudades e que tinha gostado dos mails que eu havia mandado. Paramos de nos corresponder.

 

4

 

A essa altura o Jândi, o cara que havia inventado a cobra (a almofada de 8 metros) havia voltado a morar na república. Estávamos na casa da Clarissa, e ele já estava agarrando a Natalia há algum tempo na sala. Eu e a Clá no quarto, eu sentado em cima da cama e ela bem em frente, sentada no chão. Nos beijamos, mas ela não quis transar. No outro dia ela já tinha voltado com a namorada, e no seguinte nós estávamos nos agarrando de novo. E daí? A Célia também não era fiel à Clá...

Óbvio que ninguém estava satisfeito, nesse clima de confusão, mas ninguém via muita alternativa.

Aí o Jândi trocou a Natalia pela Vi, e eu comecei a não curtir ser o segundo na vida sexual da Clá. A primeira ser a Célia, uma mulher, não fazia muita diferença na minha cabeça, mas o problema é que eu queria um namoro. A Natalia mal, fomos dar uma volta com ela de carro. Alguém tinha dito que haveria uma festa junina num bairro meio fora da cidade, mas só haviam algumas pessoas em volta de uma fogueira. Natalia deprimida, eu dando atenção a ela e a Clá com ciúmes, se sentindo a última do planeta, prestes a ser traída por duas pessoas diferentes simultaneamente. Eu não podia deixar de me sentir identificado com a Natalia, já que eu também estava curando uma dor de cotovelo das boas. Mas aí um amigo da Ná apareceu, e eu fui atrás da Clá, que tinha ido embora sozinha pra um terreno baldio olhar a lua e se sentir mal em paz. Transamos no meio do mato. Além de ter sido uma das transas mais complicadas da minha vida, a Clá estava inquieta, e quando gozou ficou me dando pontapés pra me tirar de cima. Me magoei. De volta pra sua casa, eu com sono, chovendo lá fora, resolvi ficar. Dormi morrendo de frio, deitado no tapete. Não aceitei o convite pra dormir na cama da Clá. Estava com nojo do que tinha feito.

 

Vi dá uma festa em casa, e vou junto com o Jândi. Lá encontro Lu, Carol e me esqueci do nome da outra. A mesma turma tinha ido um dia ao Mundinho, e visto minhas fotos. Nauele dia, a Carol tinha se sentado mais longe do que as outras, e permaneceu calada a maior parte do tempo. A Lu me saiu a mais simpática. A que esqueci o nome me deu a impressão de estar dando mole. Mas provavelmente não estava, porque todas as outras vezes que a encontrei ela estava acompanhada.

Houve um forró, e a Carol me ensinou a dançar. Aí quando ela me largou e foi dançar com o namorado (?), eu tirei a Irmi, que dançava forró como uma austríaca. O Fabrício não conseguia conter o riso, parecia que ia morrer. No forró seguinte, dancei mais ainda com a Carol, e muito melhor. Ela disse que tinha adorado minhas fotos, e que tinha ficado acanhada de dizer. Cada vez que a encontrava mais gostava dela, e sentia que rolava clima. Também dancei com a Lu, que parecia estar dando mole. Jândi também teve essa impressão, ao dançar com ela. Mas aí quando procurei a Carol, ela estava aos beijos com um cara que provavelmente era o namorado dela. Estranho é que ele nunca estava com o nosso grupo, o que me deixava em dúvida se era namorado mesmo.

Mas aí chegou a festa na casa da Vi. Não foi propriamente uma festa, mas uma reunião. Alugamos um filme, e eu realmente esperava poder compartilhar um clima e ficar com a Carol. Mas aí ela foi embora, e a outra também, e o resto de nós dormiu em frente à televisão. Depois do som de beijos do Jândi e da Vi cessarem, a Lu pegou minha mão e a puxou sobre o corpo dela. Isso, é claro, depois de haver uma ralação mútua, que é difícil dizer quem começou. Do umbigo pra cima, rolou tudo, e da melhor qualidade.

No dia seguinte, fomos a mais um forró, que acontecia pela manhã na USP. A Carol também foi, e embora não tenha negado os beijos da Lu, eu os evitei o mais que pude sem ser grosseiro. Dancei com a Lu, a Vi e a Carol, mas foi com a última que tive mais prazer em dançar.

A Lu não quis mais ficar comigo, por causa do namorado (de cuja existência só tomei conhecimento depois). Entretanto, um dia ela me perguntou se eu estava dando mole pra Carol lá no forró, e eu respondi que sim. Ela ficou chocada. Não esperava uma resposta direta.

Jândi terminou com a Vi também, por que a Luciana, a sua namorada, veio de São Paulo nos visitar. Quando ela foi embora, fomos pra São Joaquim, fazendo escala na casa do namorado da Lu.

-- Eu acabei de tomar um ácido, mas não fez efeito.

-- Então é por isso que você está assim?

O Jândi me apresentou pra uma garota que estava dando mole (sem dúvidas), e depois fomos nós e mais uma outra jogar sinuca. A primeira ficou com o Jândi, que não perde tanto tempo quanto eu. A segunda ficou dando mole pra mim, mas antes de ficar com ela eu tinha primeiro que convencer a mim mesmo que isso valia a pena. Fomos pra casa da mina do Jândi. Enquanto eles transavam num dos quartos, eu fiquei conversando com a outra na cozinha, o papo cada vez mais chato. Tentando me envolver por meio da conversa, estava cada vez mais desinteressado pela menina. Aí eu pensei: eu vou dar boa noite pra ela e dormir?

A menina me engoliu. O modo direto e sem sentimentos da gente se agarrar não me agradou, embora a performance de ambos, de um ponto de vista técnico, tenha sido acima da média. O corpo dela era realmente perfeito, e eu não fiquei inibido. Nem ela. Gozei. E daí?

Não via a hora de acordar e fugir dali pra me limpar e nunca mais voltar. No carro, o Jândi contou ter passado pela mesma sensação. "Dá vontade de limpar o pau com uma vassoura".

 

Paula terminou com o Eduardo. Voz péssima. Disse pra ela vir me visitar. Ela não quis. "Você não me curte mais?"

Resolvi tirar ela da cabeça. De novo.

 

5

 

Chegou o dia da tão esperada Festa Alienígena. Passamos a tarde toda cobrindo as janelas com caixas de ovo, pra barrar o som. Era pra rolar um bazar durante a tarde, mas em lugar disso a tribo dos rastas abriu a festa com reggae. Depois, chegou a Ju com um monte de gelatinas feitas com cachaça ao invés de água, e o pessoal começou a levantar do chão. Juntamos tudo da casa no quarto do Fabrício e do João, trancamos. No quarto do Jândi e do Marcelo era a pista de dança com estrobo. Som: Techno. Meu quarto tinha cobertores na janela e na porta, escuridão total. Se escutavam as vozes, mas ninguém via nem o vulto das pessoas. Mó barato. No banheiro, o bar, e a cerveja era gelada na bacia. No andar térreo (cozinha), pista de dança. Som: Techno. Todo mundo com o cabelo pintado de rosa.

Aí começou a chegar o povo: um cara vestido de ET (nunca descobrimos quem era), muita gente desconhecida, duas irmãs que eu chamei numa loja de discos usados, skatistas, góticos, tribos em geral. A gelatina começou a bater, e a realidade começou a sumir. Ju não sabia mais onde estava a bandeja com gelatina, que há pouco estava em suas mãos. Eu comecei a dançar me esfregando na parede, me sentindo uma mandala viva. Conversei com uma das irmãs, mas logo parei, achando que nossa relação prescindia de palavras. Lá estava eu, olhando ela de diversos ângulos, e ela acompanhando meu olhar. Quando tentava um beijo, ela desviava, e eu começava tudo de novo, olha daqui, olha dali... Foi embora, e eu atrás, dizendo "não sai de perto de mim, você é a única conexão entre eu e a realidade!". Vavá, nossa drag queen, se refugia no banheiro (bar), porque todos passam a mão no seu bumbum, meninos e meninas. Mais tarde, ele acende a luz do quarto escuro, e há um casal indo às vias de fato em cima de nossa almofada da Mônica. Eu tenho ataques recorrentes de riso. Fá diz pra eu dançar. "Mas eu estou dançando!" A torneira da cozinha arrebenta da parede, ninguém sabe como, e o jato d'água molha todos que estão dançando. Eu caio de cima da geladeira dentro de um balaio cheio de garrafas e latas vazias, fico esperneando com as pernas pra fora, e acabo virando e saindo, enquanto todos os que estão no quintal olham, estupefatos. Dias depois, quando conto a história para a Má, ela responde "claro que eu me lembro, eu caí junto! Eu estava conversando com um moço, aí você veio e me empurrou, e nós dois caímos dentro do balaio. Foi ridículo." Podem ter sido duas vezes. Ju passa por mim esporadicamente, e eu digo: "Ju, eu quero que o efeito passe", e ela diz "Não, Dani, você vai curtir muito", e eu fico feliz. Digo a mesma coisa para o Denis e ele diz "Agora relaxa e espera passar" e eu fico paranóico. Fabrício grita para mim "Bizarro!" ao me ver dançando. Vomito em cima do Denis. Vou para o banheiro (bar), que já está vazio, e entro no chuveiro sem tirar a roupa, sentindo a água purificadora sobre o meu corpo. A Marinona vem e diz pra eu tirar a roupa, e que vai pegar uma toalha e um cobertor pra eu não sentir frio. Eu tiro a roupa e me enrolo no cobertor, mas não consigo dormir no meu colchão, pois está tudo girando. Quando desisto de dormir, vou para o quintal, e já é de manhã, e a diretoria está toda lá, comendo pão. Mordo um pedaço, mas não consigo engolir, cuspo na mão (posso querer depois). As migalhas ficam andando em volta do pão sem parar, como formigas. Me sinto ao mesmo tempo o primeiro homem das cavernas, nu envolto no cobertor de lã marrom, e um recém nascido, ressucitado.

Durante toda a festa, senti muito a falta da Paula. Liguei pra ela, pra contar. Atendeu a irmã. "Flávia, estou viajando!" "Ah, é? Onde você está?"

Vavá diz que eu beijei um amigo dele, depois caí no chão morrendo de rir. Fabrício disse que eu me masturbei em público. A casa é um mar de latinhas, e o odor de cerveja choca e suor é insuportável. Não há água, por que a caixa d'água esvaziou através da torneira quebrada. Não há luz, queimaram todas. Não há comida, ninguém comprou e hoje é domingo.

 

Ju sugeriu eu ir curar a ressaca em algum lugar calmo, tipo parque nacional. Era pra onde eu queria ir, mas a saudade da Paula tinha aparecido forte, e eu entendi que tinha que revê-la, pra saber se ainda havia algo entre nós ou quebrar o encanto. Fui para o Rio, marquei um encontro com o Maurício e disse pra Paula, que confirmou sua presença. No lugar dela foi o Eduardo. OK, entendi. Mais cedo, havia deixado recados na casa da Sunny e da Cristiane. No dia seguinte, vi a última no Centro, e passamos uma tarde agradável. Ela me disse que gostava muito de mim, que aparecia de vez em quando trazendo novidades e experiências pelas quais ela nunca passaria. Meu bip tocou e era a Sunny: "Venha me ver rápido!"

Ela estava morando em Santa Teresa, e como ela não tinha me informado a mudança antes, eu tinha perdido contato. Cheguei tarde da noite, dia úmido, chuvoso. Nos abraçamos. Ela estava ansiosa pra saber as novidades, e contou as dela. Ficou surpresa ao saber que eu desconfiava que ela tinha namorado com o Gustavo, e mais ainda ao saber que não me importava com isso. Tivemos uma puta noite de paixão. De manhã ela ficou paranóica, e não queria mais saber de beijo ou carinho. Após ver minhas mulheres e levar o toco de cada uma delas a seu modo, voltei pra Ribeirão, arrumei malas e companhia, e partimos eu, João e Jândi rumo à Caatinga.

 

Eu sempre tive uma puta vontade de conhecer a Caatinga, mas sempre morei no Rio, que é virtualmente longe de tudo. Cercado de serra, estado pequeno, cidade auto-suficiente. Três horas de viagem é muito pra um carioca. Entretanto, a essa altura do campeonato, já tinha ido a São Paulo várias vezes nos fins de semana, cinco horas de viagem, estrada reta. Não parecia uma viagem. Era como ir a um subúrbio, caso estivesse no Rio e sem carro. Ou até mais fácil. E não tinha uma mamãe pra dizer que é perigoso. Na verdade, estava cagando pro perigo, eu queria aventura, eu queria ultrapassar o horizonte. Eu tinha carro e dinheiro pra gasolina. Por que não?

 

Saímos de Ribeirão após o almoço, paramos de tarde pra tomar banho num riacho perto de Furnas, e só paramos às quatro horas da manhã depois de Teófilo Otoni, porque não havia ninguém descansado o bastante pra continuar. Às sete continuamos. Paramos no almoço já no vale do Jequitinhonha, e eu vi a Caatinga. Os outros entraram no rio São João, mas eu achei a água barrenta, e desconfiei que tudo o que uma vaca magra que vimos cagasse, ia direto pro rio. Na verdade, Caatinga não era mais do que arbustos secos emaranhados e espinhudos. E um sol de lascar. E ninguém por perto, só a estrada, o riacho, o mato seco e o sol de lascar. Compreendi que minha viagem tinha chegado ao seu objetivo, e rumamos para o oeste. Jândi perguntava em todos os postos de estrada onde poderíamos ver algo bonito. Os nativos se insultavam.

-- É só sair aí fora e ver. Só tem sol e seca.

Mas isso foi antes. Indo pra Salinas, na estrada recém asfaltada, não havia nem postos de estrada. Ao entardecer, o sol estava quase se pondo atrás do primeiro morro pedregoso que víamos desde a manhã. "Vamos acampar em cima do morro? Amanhã a gente vê o nascer do sol e continua a viagem."

Logo que começamos, anoiteceu. Só havia uma lanterna, o chão era de pedras como lâminas, projetadas para cima. Não havia chão liso. Entre as lâminas, caatinga e cactus. No escuro, ia tateando onde me segurar. "Ah, isso é cactus." E largava. Eu e o João achando perigoso continuar, mas sem querer deixar o Jândi seguir sozinho. Era melhor ver ele cair do penhasco do que ficar esperando dias sem saber o que tinha acontecido. No final, eu consegui tirar o mato que crescia entre duas pedras, e dormir numa espécie de berço. Os outros se amarraram numa pedra que era lisa, mas se inclinava para um penhasco. De manhã terminamos a escalada, e voltamos. Havia um caminho fácil que teríamos visto, caso estivesse claro quando subimos.

Em Pirapora, tomamos banho no São Francisco. Na Serra da Canastra, montei a barraca do lado de fora do muro do parque, e antes de dormir fomos visitados por dois lobos curiosos. Todo o dia o cano de descarga do Gurgel soltava, e o Jândi dava uma amarrada de volta com arame. Na reta final pra Ribeirão, ele não fechou o capô direito, e a coisa abriu com o vento, quebrando a janela dianteira. Eu e o João já não agüentávamos mais a rabujisse dele. Depois de passar a viagem inteira botando defeito na minha direção, ele queria nos convencer a deixar ele em São Joaquim. Após ver que seus argumentos não estavam nos convencendo, ele sugere que o deixemos em Franca, para pegar uma carona. Foi um alívio. Deixamo-lo antes que mudasse de idéia. Com o vento frio entrando pela frente, rasgamos um lençol para fazer dois cachecóis. Me sentia o próprio Dick Vigarista, com o pano voando pela janela. Os policiais rodoviários assistiam à nossa passagem boquiabertos. O carro roncava como um caminhão, o motor à vista, sem janela e com dois caras de óculos escuros e cachecol na direção, morrendo de rir. Não podia ser verdade, né?

 

6

 

Preocupado com a possibilidade do carro quebrar durante a viagem, eu havia feito uma revisão geral antes de pô-lo na estrada. De volta para o conserto, o mecânico desabafa: "Eu sou que nem veterinário." Eu não entendi. Ele continuou: "Eu sou que nem veterinário. Adoro carro. Odeio dono."

Já conhecendo nossas festas e antevendo as proporções da festa Alienígena, dona Maria, a mãe de aluguel de todos nós, resolveu se aposentar. Marcelo trouxe outra empregada. Quando eu aparecia na cozinha para tomar café da manhã, cumprimentava ela, que respondia com dois olhos arregalados e silêncio. O medo era evidente.

Fui pro Rio ver o Kraftwerk. Após o show, fui pra casa da Sunny. Ela colocou um colchonete no chão pra eu dormir. Tá, saquei.

Comigo pouco interessado em vagabundas, minha vida sexual desapareceu. Em lugar disso, trabalho. Até acompanhava os meninos nas festas, mas só isso, e cada vez menos. Um dia, eu, Clá e as meninas estávamos na mesa de um bar, e Clá pergunta se "minha noite virou". No dia anterior, eu tinha passado um bom tempo conversando com uma menina que estava dando mole. "Eu não sou que nem vocês, eu sou bonzinho." "Mas se ela queria e você não ficou com ela, você não foi bonzinho." "Não me interessa ela, eu fui bonzinho comigo mesmo." As meninas ficaram tão chocadas que mudaram de assunto, e me excluíram da conversa.

Conseguimos umas vitrolas, e começamos a comprar discos de vinil usados. Logo já tinha uma discoteca suficiente pra botar rock dos anos 80 uma noite inteira. Mas no dia da festa, ninguém entendeu o som. Em cima, techno. Em baixo, eu botando som para mim mesmo. Vários discos sumiram. Entendi que tinha esgotado tudo o que queria fazer e aprender na república. Quando amanheceu, o Oséias me convidou pra ver a Sinfônica de ribeirão, que ia tocar às 10 da manhã. Sem ter dormido ainda, fomos. O esforço recompensou. A orquestra tocou a "Pastoral" de Beethoven, e a felicidade que aquela música descrevia era muito mais completa do que o "rir um da cara do outro" que constituía a maior parte dos bons momentos do Mundinho. Realmente, eu não tinha mais nada pra fazer na república, e nem queria enfrentar as conseqüências de mais uma festa, ou seja, sujeira e falta de luz. Dessa vez a água não acabou.

Volta