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\mysection{dividir}{As distinções certas} \mydate{2015aug02} Quando eu era pequeno eu dividia as pessoas entre ``homens'' e ``mulheres'' do jeito óbvio. Quando eu passei a ter muitos conflitos com os ``homens de verdade'' eu passei a dividir as pessoas entre os ``homens'' (que eram péssimos), as ``mulheres'' (que eram boas ou neutras), e as ``pessoas'' (que não seguiam papéis de gênero aprisionantes, e eram {\it bem} melhores). Mas nos últimos anos tudo ficou confuso; às vezes decidir quem era ``homem'' ou ``mulher'' só servia pra tentar encontrar os pronomes certos... eu não conseguia fazer as noções que eram intuitivas pra mim dialogarem com a miríade de rótulos que se usam hoje em dia - e, óbvio, isso tornava a minha transição bem complicada. Eu estava querendo deixar de ``ser'' o quê, pra me tornar o ``quê''? Tem um trecho\footnote{\url{http://anggtwu.net/zamm-13.html\#cleavage}} d'``O Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas'' que me marcou muito, que é sobre encontrar os conceitos certos, que nos permitem fazer as distinções certas, e daí ver as coisas com clareza - sem as confusões de antes - e aí encontrar o melhor modo de agir. O conceito que me parece realmente útil agora, e que todo mundo entende, é o de ``Ômi''. ``Ômis'' e ``humanos'' - ainda não há um termo para o oposto de ``ômi'' em uso corrente, então deixa eu improvisar e usar ``humano'' - têm modos de funcionar completamente diferentes e incompatíveis, e valores e códigos éticos incompatíveis também. Deixa eu citar um texto escrito por um ômi (fontes: aqui\footnote{\url{http://anggtwu.net/2013-assedios.html\#morgenstern}} e aqui\footnote{\url{http://www.facebook.com/flaviom/posts/10200983707944809}}), que eu acho especialmente revelador: \begin{quote} SOBRE AMIZADES E POLÍTICA: Percebi pela Análise Sociográ\-fica das Redes Sociais como que a forma como nós, reacionários direitistas trogloditas conservadores do mal nos tratamos é... legal pra caralho! Um posta uma coisa, outro xinga de corno pelo gosto musical ser uma bosta, chamamos respondemos com considerações sobre as preferências sexuais do primeiro, rola uma zoada com a mãe, aí um terceiro manda beijo irônico, todos mandamos um ao outro tomar no cu e termina sempre com umas indiretas sobre o Morgen escrever demais. Sabe por quê? Porque nós somos amigos pra caralho, porra! E a função social de um amigo é te zoar em público antes que outras pessoas o façam. É por isso que provas são tão difíceis, que o treinamento no Exército é barra pesada e também por isso que inventaram palavrões. Aí você vê o pessoal de esquerda. E é tudo um fru-fru mongo, um teatrinho de lambeções sem ofender a hipersensibilidade alheia, um troca-troca de vaidades que faria a corte de Luiz XIV parecer a Banheira do Gugu. Todo mundo se chama de ``companheiro'' (você precisa chamar seus amigos de ``amigos'', ou só fala: ``Chega aí, bichona''?), todo mundo respeita o gosto musical um do outro (ABSURDO DOS ABSURDOS, isso não pode acontecer nunca entre 2 seres humanos adultos, conscientes e vacinados!!), nunca se vê uma ironia, uma tirada escrota, um cutucação que doeria no ego caso você não tivesse motivo pra ter um, uma piada ofensiva em público, uma inocente virulência preconceituosa com alguma deficiência ou estigma social de alguém por algum motivo... ``Hey, camarada, você saiu muito bonita na foto, embora talvez tenha preferências por outras mulheres e devo respeitar sua opção sexual que você escolheu conscientemente e não devo ter opiniões sobre sua sexualidade''... chama logo de GOSTOSA, seu baiacu! E você percebe que é tudo uma falsidade do caralho, que eles precisam sempre dessa masturbação mútua coletiva só para acreditarem que são MESMO interessantes, já que os membros do mesmo grupinho são também interessantes, conscientes, livres de preconceito, politicamente corretos, progressistas, chatos que só um livro do Gabriel Chalita e o cúmulo do progresso humano sem nunca precisar ler sequer as orelhas de Karl Popper. Puta merda, um mundo em que não podemos xingar os próprios amigos?! Fora a linha leste do trem em horário de pico, poucas coisas parecem tanto a definição de inferno quanto esse moralismo ridículo em que cada pensamento impuro precisa ser engolido, silenciado e guardado para se pedir perdão no fim do dia. Sou reaça porque sou legal pra caralho. \end{quote} \bigskip Quando eu fui saindo dos meios masculinos porque eu nem conseguia compactuar\footnote{\url{http://anggtwu.net/historia-de-T.html}} com o que acontecia neles eu não via ``homens'' e ``mulheres'' simplesmente como grupos que lidavam diferente com sexualidade - tipo: quem penetra e quem é penetrado, quem toma a iniciativa e quem não - e com roupas, aparência, enfeites e trejeitos; isso era ínfimo. O que era mais importante pra mim era que eu via ``homens'' e ``mulheres'' como modos diferentes de ver o mundo, com códigos de valores, de ética e de comportamento diferentes e muitas vezes incompatíveis. Por exemplo, praticamente todo mundo vai reconhecer o tipo de babaquice do cara acima como algo tipicamente masculino... né? Certos tipos de comportamento são {\it obrigatórios} ou {\it tolerados} em meios masculinos e {\it inadmissíveis} em meios femininos; outros são o contrário. \mysection{engenheiros}{``Engenheiros''} \mydate{2015aug18} Na geração dos meus pais, principalmente entre galeras como a da minha mãe, a expressão ``cabeça de engenheiro'' era bastante usada, e tinha um significado preciso - um tipo muito específico de arrogância e tacanhez. O meu pai era engenheiro (e ogro\footnote{\url{http://anggtwu.net/haz.html}}), e ele ficava muito puto quando ele via que eu e a minha mãe estavamos usando a expressão ``engenheiros'' na nossa conversa. Ele se metia, dizia que fulano era legal e era engenheiro, beltrano idem, então a gente não podia falar mal de engenheiros, a gente não podia generalizar. Eu levei anos pra conseguir uma primeira resposta razoável pra isso. Eu dizia que o Heidegger e o Günther Grass eram legais e tinham sido nazistas, então ele não podia falar mal dos nazistas, ele não podia generalizar. Tempos depois eu encontrei uma outra resposta muito melhor, e que não era uma provocação. Falar ``OS engenheiros'' e falar ``TODOS os engenheiros'' são coisas completamente diferentes. Se eu digo ``TODOS os engenheiros são do jeito tal'' e a pessoa com quem eu tou falando me dá um exemplo de {\it um} engenheiro que não é desse jeito tal, então pronto, ela ganhou: o que eu estava tentando afirmar não vale mais. Mais se eu digo que ``OS os engenheiros são do jeito tal'' eu estou usando implicitamente a minha noção do que é um engenheiro ``típico'' - que comporta exceções - e tentando ver se ela bate com a do meu interlocutor... \mysection{hombres-y-machos}{Hombres y Machos} \mydate{2015sep03} Tem um livro interessantíssimo, que eu comprei na liquidação da Leonardo da Vinci\footnote{\url{http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-107/anais-da-vida-literaria/cerimonia-do-adeus}}, chamado ``Hombres y Machos - Masculinity and Latino Culture\footnote{\url{http://www.amazon.com/Hombres-Machos-Masculinity-Latino-Culture/dp/0813331978}}''. O autor, Alfredo Mirandé, é um sociólogo/antropólogo/etnólogo que trabalha nos Estados Unidos e é de origem mexicana, e ele começa o livro contando umas histórias da família dele pra introduzir a idéia de que as referências de ``homem de verdade'' no México são diferentes das anglo-saxãs - e, além disso, são diferentes dos {\it estereótipos} que os anglo-saxães têm do que são ``hombres'' e ``machos'' para os latinos. Repara, só nisso já aparecem várias idéias diferentes de ``homem''... e o livro começa com várias histórias - umas da família dele ou de conhecidos, outras de filmes e livros de ficção, outras de outros estudos de ciências sociais - das quais ele tira elementos pra tentar caracterizar o que mexicanos de várias classes, idades, lugares, níveis de renda, etc, entendem por {\it hombre} e por {\it macho}; daí ele desenvolve uma metodologia, prepara uma pesquisa, realiza montes de entrevistas, organiza os dados que obteve, e apresenta conclusões. Eu adoraria ter as ferramentas de Ciência Sociais que esse cara tem pra eu poder organizar e contar ``do jeito certo'' muitas coisas que eu vivi e observei sem que me digam que eu estou fazendo generalizações idiotas. Por exemplo, no meio em que eu cresci o modo de falar masculino incluía uma {\it obrigação de ridicularizar} que quando eu comecei a andar com mulheres eu vi que entre elas era bem menor. Um ponto importante: a gente dificilmente vai chegar ao ponto de poder fazer uma pesquisa de campo com muitas entrevistas, como o Mirandé fez, mas a fase anterior, de procurar literatura e coletar elementos em discursos tanto reais quanto ficcionais, a gente pode fazer com pouquíssimos recursos; e tem uma ``fase zero'', que consiste na gente coletar e organizar as idéias e discursos de gênero {\it que já estão na nossa cabeça}, que não exige recurso externo nenhum, e que acho que todo mundo interessado em gênero deveria fazer... e depois que a gente organizou isso com um mínimo de honestidade e cuidado a gente consegue conversar com colegas (mini-pesquisa!) sem ser considerado chato. \mysection{falar-mal}{Falar mal} \mydate{2015nov08} Às vezes falar mal dos outros é um modo da gente ir esclarecendo como a gente não quer ser. Um dos meus assuntos preferidos desde que eu tenho, sei lá, 16 ou 17 anos, era falar mal dos homens (e das pessoas ``normais''\footnote{\url{http://anggtwu.net/haz.html}}) - mas esse assunto correspondia a um problema prático, que era: se a gente não queria ser como os ``homens'' e as ``pessoas normais'', que tinham pontos cegos enormes e eram burras, estúpidas e hipócritas, {\sl qual era a alternativa?} Como a gente podia construir pra gente um modo de funcionar bem melhor? \mysection{puc}{PUC} \mydate{2015nov08} Eu comecei fazendo umas matérias de Matemática na PUC-Rio como ouvinte num tempo em que eu era um outsider total, aí me identifiquei com o curso e com as pessoas, e me transferi pra lá. Depois de alguns anos os meus colegas começaram a ficar amigos de estudantes de Engenharia e a tentar grudar neles absorvendo os seus valores - o que foi um inferno pra mim, porque esse pessoal da Engenharia tinha uma hierarquia social muito rígida, na qual os seus pontos vinham basicamente de 1) você ser popular e descolado e galinhar bem, 2) você ter excelentes notas, 3) você ter o perfil do estagiário perfeito, que vai ser aprovado em todos os processos de seleção e entrevistas. Eu cheguei a namorar uma pessoa desse grupo, a Paula Engenheira... mas quando ela contou pras amigas que gostava de mim ela ouviu coisas como ``Paula, aquele Daniel que você namorava já era o fundo do poço, mas esse Eduardo é pior ainda''. \medskip Todo mundo acha preconceito uma coisa abominável, mas eu vejo um contínuo entre preconceito, que é péssimo, e uma outra coisa que eu chamava de ``preconceito operacional'', que todo mundo faz, e que é humana e ok. O meu ``preconceito operacional'' contra engenheiros funciona da seguinte forma: ``deve ter gente legal no meio deles sim, mas no geral eles nem enxergam as coisas que eu valorizo e lidam com naturalidade com coisas que eu considero intoleráveis. Eu preciso de amigos - mas não vou mais investir nenhuma energia nesse pessoal porque é roubada, vou procurar amigos em outros lugares''. (A minha engenheirofobia é parecida com a minha hetorofobia. Heterofobia ``existe'', mas heterofobia e homofobia são coisas de naturezas muito diferentes.) % Local Variables: % coding: raw-text-unix % End: