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% --------------------
% \rrjtopday{Setembro, 2011}

\separatorpagesimple{HAZ}

\begin{quote}
{\footnotesize

(Em 11/set/2011 fizemos uma reunião na casa da Mariana com o Paulo
Blank pra tentar organizar o que seria a Hazkará pro Smil, que seria
no Midrash, em 26/set/2011, das 18:00 às 20:00hs. Num certo momento eu
quase desisti de participar, mas acabei topando - desde que além de
recitar os trecos incompreensíveis eu também lesse um texto, que eu
ainda iria preparar... Em 24/set eu avisei a todos que o texto que eu
estava preparando ainda estava {\sl muito} longe de ser algo que
pudesse ser usado na cerimônia, que eu não iria nela, e que se
virassem sem mim.)

(O texto abaixo é uma das minhas primeiras experiências em escrever
algo para ser lido em voz alta - a versão escrita dele talvez seja bem
difícil de entender.)

}
\end{quote}

\bsk

Todo mundo lembra do meu pai como uma pessoa marcante. Ele era
engraçado, espirituoso, surpreendente, e frequentemente inconveniente.
Isso certamente tinha a ver com uma estratégia de sobrevivência. O meu
pai sobreviveu ao holocausto, e num certo momento ele era a única
criança do campo. Todos cuidavam dele, todos depositaram as suas
esperanças nele, todos prestavam atenção nele, e, mesmo que à
distância, todos ficavam imaginando o que ele seria depois. Acho que
durante o resto da vida dele quase tudo que ele fazia era uma resposta
a milhares de pessoas. Ele passou a vida inteira respondendo tanto aos
horrores pelos quais ele passou quanto às pessoas que tentaram
protegê-lo dos horrores, deixando ele viver num mundo à parte no
campo. Depois ele viveu em outros mundos à parte - fazendo papel de
gênio.

Ele me educou da melhor forma que ele pôde, mas isso queria dizer
que ele achava que eu tinha que ser forte e brilhante. Ele tinha
expectativas altas e me testava o tempo todo. Ele não sabia o que era
relaxar. Ele tinha medos muito grandes, era defensivo, mordaz,
irônico. Num certo momento eu me toquei de que se eu tinha visto o meu
pai falar ``a sério'' - sem ironia - uma ou duas vezes a cada ano, era
muito.

Eu era fresco e mimado porque eu tinha revistas em quadrinhos e
brinquedos, vivia com os meus pais numa casa grande, a gente tinha
empregados, e eu nunca tinha passado fome. Eu era um burro porque aos
7 anos de idade eu não tinha uma ``linguagem acadêmica''. Eu era
preguiçoso porque eu nunca tinha pego uma caixa de engraxate pra
ganhar o meu próprio dinheiro. Eu era infantil. Esse era o mundo no
qual eu vivia antes dos 10 anos de idade. E eu tinha certeza de que
todo mundo era assim, como eu, e que eu era incompetente porque eu era
medroso e não conseguia nem me livrar dos meus medos nem ter a
confiança que os outros garotos tinham.

Meu pai tinha um mecanismo muito difícil de se lidar. Ele nunca
assumia o que fazia - aliás ele nunca reparava no que fazia. Ele não
tinha um ``eu'' com o qual ele lidasse lucidamente. Ele só lidava com
``verdades'' e com ``lógica''. Quando ele era agressivo ele nunca notava.
E ele sempre tinha razão. Não era ``achava que tinha razão'', porque no
mundo dele não existiam ``achos''. E nós não tínhamos provas científicas
e argumentos irrefutáveis de que ele tinha sido agressivo. Aliás,
quando nós conseguíamos algum e ele entendia ele dizia que não tinha
tido a intenção.

(Eu até hoje tenho medo das pessoas que fazem as coisas sem prestar
atenção e que quando fazem algo ruim ``não tinham a intenção''. Não sei
como reestabelecer um diálogo com elas quando há algum
desentendimento. Me sinto muito mais à vontade com gente assumidamente
cruel - eu frequentemente sei desarmar pessoas cruéis fazendo algo
engraçado, e aí consigo conversar com elas.)

Meu pai foi uma pessoa muito marcante pra mim também. Eu passei a
vida inteira me defendendo dele.

Eu me afastei dele - fisicamente - quando pude, mas isso não
resolve tudo. Quando a gente está longe de uma pessoa que é importante
pra gente aquela pessoa continua com a gente - como memórias,
introjetada. Eu tentei me afastar do meu pai tanto fisicamente quanto
emocionalmente. Mas o fantasma dele continuava comigo, me assombrando.
Me atropelando como um trator. Me dizendo coisas pras quais eu
procurava respostas, e não encontrava nenhuma resposta - porque eu
precisava de respostas que ele fosse entender, mas a especialidade
dele era não entender nada.

Deixa eu mudar de direção aqui - porque eu me sinto um adolescente
dizendo essas coisas. Quando a gente é adolescente a culpa de tudo é
dos nossos pais. Eu estava tentando escrever isto que eu tou lendo
agora e eu via que aqui eu me atolava num lamaçal do qual eu não
conseguia sair. Eu queria contar coisas a respeito do meu pai, e não
conseguia fazer isso direito.

O que acontecia entre mim e o meu pai era sutil, na verdade. As
nossas discussões, e o que ele fazia, tinham uma lógica tão estranha,
tão retorcida, que eu não conseguia contar pros outros - era
complicado, eu tentava resumir, montar historinhas, mas não
funcionava. E como eu não sabia contar pros meus amigos as histórias,
aliás não sabia contar elas direito nem pra mim mesmo, eu comecei a
esquecer - aliás, comecei a ``não registrar'': eu me desligava.

% [RULE ----------------------------------------]

\msk

Muito do que a gente faz na vida da gente a gente faz porque está
respondendo os nossos pais - dentro da cabeça da gente a gente está
sempre está um pouco dialogando com eles, com os pontos de vista e
sistemas de referências deles. Quando eu era pequeno eu não queria de
jeito nenhum ficar junto com as crianças que brincavam e jogavam
futebol - eu ficava no meu canto lendo e tentando construir coisas.
Deixa eu ver isso de outro modo agora.

Eu me especializei em afastamentos. É como se a minha frase-chave
fosse: ``eu não quero isso. Eu não quero isso de jeito nenhum''.

Eu gostava das pessoas esquisitas porque elas tinham uma tolerância
maior com histórias estranhas. E os meus pensamentos eram estranhos.
Eu evitava andar com as pessoas que eu chamava de ``normais'' porque
toda vez que eu contava, ou deixava escapar, alguma história pesada
pra uma dessas pessoas ``normais'' eu ouvia: ``mas agora está tudo bem,
não é?'' Eu odiava essa mania de ``tudo bem''.

Quando eu era bem pequeno eu desprezava as pessoas ``normais'' e
``felizes'', porque eu achava que elas ``não sabiam nada''; com uns 10
anos de idade esse meu desprezo já tinha caído por terra. Eu via que
essas pessoas conseguiam brincar, viajar, conversar com gente nova,
etc - elas faziam muita coisa, porque elas não pensavam 10 vezes antes
de fazer cada coisa, como eu.

Durante anos eu tentei montar alguma espécie de ``está tudo bem'' que
fosse resistente o suficiente. Eu queria me misturar com essas pessoas
``normais'', porque eu tinha muito pra aprender com elas. Eu não
aguentava mais ser eu, e eu queria mudar. Mas sempre, em alguma hora,
esse meu ``está tudo bem'', revelava rachaduras, e por trás das
rachaduras algo sinistro, algo contagioso, vergonhoso. Eu era uma
farsa.



% [RULE ----------------------------------------]

\msk

Há uns 5 ou 10 anos aconteceu uma coisa sobre isso. Eu me aproximei da
Daniela, minha irmã por parte de mãe, que não está aqui {\it[Ela disse
    que não iria na cerimônia]}, e descobri que ela SABIA. Ela tinha
passado por coisas parecidas com as minhas, mas ela lembrava de
histórias, e sabia contá-las (às vezes até de modos bem engraçados). A
gente começou a conversar muito um com o outro, e fazer fofocas sobre
o nosso pai/padrasto da Transilvânia. Dito assim parece infantil e de
mau gosto, mas eu tinha que contar, porque isso foi muito
transformador. A gente começou a ter uma linguagem - e só aí eu
comecei a ter memória.

{\it A Daniela é a minha memória.}

\bsk
\msk

Eu estava escrevendo esse texto e muitas vezes via que eu tinha
escrito algo terrivelmente incômodo, e eu pensava, será que eu devo
deixar isso? E eu sabia que todo mundo iria me odiar, mas alguma coisa
me dizia ``não importa'', ``vou deixar isso aí'', e eu comecei a pensar
sobre esse processo, e descobri -

O meu pai dizia que o Holocausto era tão pior do que qualquer outra
coisa que perto dele qualquer outra atrocidade, passada, presente ou
futura, perdia a importância. E isso era muito opressor, porque queria
dizer que o mundo tinha uma dívida infinita com ele - ele podia fazer
qualquer coisa, podia explodir a qualquer hora, pra descarregar coisas
que aliás ele nem entendia, e ele seria sempre desculpado. E isso
fazia todo o sentido, mas era insuportável.

Eu levei 30 anos pra conseguir lidar abertamente com isso - e foi
da seguinte forma: ``ele tinha um crédito gigantesco por ter passado
pelo que passou. Mas esse crédito não é infinito, e agora, depois de
décadas, ele acabou''. E esse corte era algo bem mais pesado do que
parece - era algo inadmissível, pra todo mundo. Eu me dispunha a ser
considerado um monstro, por ele, pela minha família, pelos amigos
dele, talvez até pelos meus amigos - a gente não se recusa a pagar a
nossa dívida com a família - a dívida de cuidar de quem cuidava da
gente - impunemente. Então eu não pediria mais ajuda a nenhuma dessas
pessoas.

Então essa foi uma das situações na minha vida nas quais eu decidi
sacrificar a minha respeitabilidade, todo um grupo grande de contatos,
toda uma rede social - a rede de proteção que a gente tem por default
quando nasce numa certa classe, com um ou dois dos nossos pais sendo
judeus -

Na verdade eu só fiz isso porque eu tinha muito pouco pra perder.
Pode parecer meio estranho isso da gente se afastar da família ``por
não ter quase nada pra perder'' - e em enterros a

\bsk

Talvez daqui a alguns anos eu tenha alguma memória confortável
dele. Mas por enquanto o que eu tenho é isto.

\newpage

\begin{quote}
\footnotesize

(Aqui as minhas anotações pro que escrever viram palavras soltas e
fragmentos de frases. A palavra recorrente, ``monstro'', e ter que me
acostumar a ser ``monstro''; o que fazer, já que não dá pra parar de
ser visto como monstro -
%
% às vezes não é possível parar de ser visto como monstro
%
solução, a gente é tolerado enquanto a gente é {\sl útil} - uma série
de afastamentos~- aos 25 anos eu desisti de ser aceito no ``mundo dos
homens'', e assumi que eu não conseguia distinguir macheza de
estupidez - desde bem antes disso eu já tinha questões enormes com o
mundo hetero - no meio da década de 90, quando essas coisas ainda não
estavam nada na moda (...) - (Desde os 5 anos) Eu não queria ser
parecido com os homens - Eu achava um pesadelo ser obrigado a ser duro
e sarcástico - Eu não queria tratar os outros como objetos - Eu
preferia ter nascido menina)

\msk

(Depois algumas anotações sobre como terminar a minha fala. Eu queria
forçar as pessoas a pensarem sobre {\bf reação histérica às
  atrocidades} -)

\end{quote}




% [P Monstro; me acostumar a ser monstro; monstro útil]
% 
% [br]
% 
% [BE'
% Afastamentos:
% 
% Aos 25 anos eu desisti de ser aceito no "mundo dos homens", e assumi
% que eu não conseguia distinguir macheza de estupidez.
% 
% Desde bem antes disso eu já tinha questões enormes com o mundo hetero.
% 
% No meio da década de 90, quando essas coisas ainda não estavam nada na
% moda
% 
% (Desde os 5 anos) Eu não queria ser parecido com os homens
% 
% Eu achava um pesadelo ser obrigado a ser duro e sarcástico
% 
% Eu não queria tratar os outros como objetos
% 
% Eu preferia ter nascido menina
% ]
% 
% [#
% Eu evitava andar com as pessoas que eu chamava de "normais" porque
% toda vez que eu contava, ou deixava escapar, alguma história pesada
% pra uma dessas pessoas "normais" eu ouvia: "mas agora está tudo bem,
% não é?"
% ]
% 
% [br]
% 
% [P Reação histérica às atrocidades]
% 
% [RULE ----------------------------------------]


Agora que ele morreu a gente pode pensar sobre tudo isso: sobre as
atrocidades atuais e sobre quem sobrevive a elas; sobre tentar
esconder memórias dolorosas embaixo do tapete pra gente conseguir
fazer cara de que está tudo bem; e sobre o que a gente pode fazer pra
não ser detestado.