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% This file:  (find-angg "LATEX/falta-misandria-f-scr.tex")
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    \newpage
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    \phantom{a}
    \vskip 6.5cm
    #1
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  }


%  ____                       
% / ___|        ___      _ __ 
% \___ \ _____ / __|____| '__|
%  ___) |_____| (_|_____| |   
% |____/       \___|    |_|   
%                             
% «S-c-r» (to ".S-c-r")
\separatorpagesimple{S-C-R}

\newpage\thispagestyle{empty}\phantom{a}
\newpage

\phantom{a}
\vskip 8cm
\par Às vezes a gente precisa se tornar visível
\par pra encontrar as pessoas parecidas com a gente.
\par {\sl Entre em contato!}
\par \msk
\par eduardoochs@gmail.com
\par \url{https://www.facebook.com/eduardo.ochs}
\par \msk
\par Estes seis textos são espécie de anexo ao zine
\par ``Falta Misandria no Movimento Trans''...
\par eles eram parte de uma coisa/leitura/performance
\par que se chamaria ``Sexofóbico como Resposta'',
\par que eu comecei a fazer antes de zine e não terminei.
\par Versão: 2018jun01.
\par \msk
\par \url{http://anggtwu.net/}
\par \url{http://anggtwu.net/gender.html}
\par \url{http://anggtwu.net/falta-misandria-2.html}
\par \url{http://anggtwu.net/falta-misandria-scr.html}
\par \url{http://anggtwu.net/LATEX/falta-misandria-a5.pdf}
\par \url{http://anggtwu.net/LATEX/falta-misandria-scr.pdf}
\bigskip
\par Dica: na versão online - o PDF em A5 - os links funcionam.


\newpage


% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec princesa")
{\bf 1. A princesa}

Deixa eu usar uma imagem. A sua família se muda pra outra cidade, e
você vai pra outra escola. Na sua escola antiga você era só uma
criança introversiva que não se relacionava direito com ninguém. Na
escola nova alguma coisa deu um clique - outra criança te perguntou
alguma coisa e achou as suas respostas interessantes, e em poucos dias
você estava sendo convidado pra festas - na escola antiga você era
esquisito por ser totalmente incompetente pra esportes; e as festas
eram só uma confusão de pessoas barulhentas sendo mais barulhentas
ainda, pessoas correndo pra lá e pra cá bebendo e se sacaneando, todo
mundo querendo que tudo fosse como nas festas de adolescentes dos
filmes americanos - mas na escola nova ser introversivo não é pecado,
você foi adotado por um grupinho que às vezes se reúne pra conversar
por horas, e eles sabem que as pessoas que falam menos são as que às
vezes aparecem com as melhores idéias, e conjuram as melhores imagens
-

Aí um dia - desculpa, tá ficando difícil escrever sem gênero, então
deixa eu usar o feminino - uma das suas melhores amigas te convida pra
uma festa maior, em que vai ter bem mais gente, e onde você não vai
conhecer praticamente ninguém. Você acha essa amiga fascinante, ela
acha você fascinante também, e ela age de forma meio protetora com
você. Vocês duas entram juntas na pela porta da casa enorme cheia de
gente, e naquele momento você é a amiga daquela garota, e você
compartilha um pouco da aura dela, vocês são duas princesas entrando
numa festa numa castelo - e a sua versão anterior, a menina tímida da
outra escola, é só uma memória distante -

Eu vivi muitos anos acreditando que a vida era assim: que eu iria em
algum momento encontrar a festa certa, a em que as pessoas realmente
interessantes estavam, e eu entraria nela como uma princesa, e tudo
funcionaria... minhas qualidades, que eram algo praticamente sem valor
na escola enterior, iriam brilhar como um colar de diamantes através
de um vestido leve e semitransparente; eu seria adotada, e a versão
anterior de mim, que vivia em humilhação e vergonha, se tornaria só
uma memória distante.


%\bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec principe-encantado")
{\bf 2. Príncipe encantado}

Algumas pessoas detestam a expressão ``príncipe encantado'',
porque acham que ``isso não existe''... eu gosto dela.

{\sl O príncipe encantado é alguém que nos salva por mágica.} Tem uma
frase que é: ``qualquer tecnologia suficientemente avançada é
indistinguível de mágica''... qualquer coisa que o príncipe encantado
saiba fazer que esteja muito adiante do que as pessoas do nosso
círculo sabem fazer é, num certo sentido, mágica. Se as pessoas do
nosso círculo chamam o diferente de esquisito e de idiota, chamam o
cara que não canta ninguém de viado e não sabem conversar, então quem
nos entende e nos aceita e conversa com a gente é um príncipe
encantado que nos salva ``por mágica''.

Outra coisa legal da expressão ``príncipe encantado'' é a seguinte: {\sl
  todas as mulheres procuram um príncipe encantado}. Ora, então os
príncipes encantados, que devem ser muito poucos, vão ser disputados a
tapa! Como fazer com que eles nos escolham? O que nós podemos fazer
pra merecê-los, e como fazer com que eles nos avistem no meio da
multidão?...

Pior ainda: e se os príncipes encantados parecerem pessoas comuns,
como nós vamos avistá-los e reconhecê-los? E se eles não estiverem
prontos? Se da mesma forma que nós precisamos ser salvos eles também
precisam ser salvos um pouquinho? Se eles ainda são só príncipes
encantados em potencial? Se eles parecem sapos?...

Como é que nós podemos virar pessoas muito interessantes e capazes de
``mágica'', e nos tornarmos amigos das outras pessoas interessantes e
capazes de ``mágica''?


%\bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec querelle")
{\bf 3. Querelle}

Quando eu tinha 14 anos abriram um cineclube perto da minha casa - o
Cineclube Estação Botafogo. Eles tinham um esquema no qual a gente
podia virar sócio pagando só um pouquinho por mês e aí assistir
quantos filmes quisesse. Eu comecei a passar muitas tardes por semana
lá.

Quando eu tinha uns 15 anos eu assisti Querelle, do Fassbinder, feito
em cima do livro do Jean Genet. Até aquele momento eu nunca tinha
ouvido falar nem de Fassbinder, nem de Genet.

Antes de falar do filme deixa eu explicar umas coisas sobre o mundo no
qual eu vivia. Eu vivia num mundo incrivelmente homofóbico. ``Viado''
era só um xingamento - a gente não conhecia ninguém que fosse
homossexual, e aliás eu tinha todos os indícios de que ninguém da
minha família conhecia alguém que conhecesse alguém que conhecesse
alguém que fosse homossexual - mas a gente passava o tempo todo
fazendo todo o possível pra não ``ser viado'', porque ``ser viado'', mesmo
que fosse durante um instante só, significava cair num abismo social
sem volta, era pior do que ser um leproso e um pária, era a gente
passar a merecer porrada de todo mundo a toda hora, até a gente
desaparecer e apagarem todos os traços (bons) da nossa existência.

Eu sabia que esse mundo super homofóbico era um mundo de mentiras e
medo. A gente vivia em alerta, sempre preparado pra reagir quando a
gente fosse sacaneado pelos colegas - a gente tinha que peitar na hora
a pessoa que nos desafiava e dar uns motivos que mostrassem que a
gente não era viado... e, bom, esses motivos eram improvisados na
hora, então claro que não eram algo nem muito profundo nem muito
verdadeiro...

Vários traços meus eram ``coisas de viado'' - tipo eu ler muito,
detestar atividades físicas, não gostar de ser escroto com os
coleguinhas, e ficar mal quando me sacaneavam - então a minha situação
era bem complicada, não ``ser viado'' me tomava muita energia.

Mas deixa eu voltar pro filme.

Todos os atores do filme são homens super musculosos, e a única
personagem feminina é a Madame, a dona do bordel da cidade em que o
navio do Querelle está ancorado. O Querelle, que é o personagem
principal, é um marinheiro que está sempre testando sua coragem
ultrapassando cada vez mais limites. Ele já vinha cometendo pequenos
crimes, e ele resolve que está na hora de experimentar matar alguém
pela primeira vez. Ele assalta um cara numa rua escura, mata esse cara
a facadas, e logo depois resolve experimentar algo que é um tabu dez
vezes maior que o assassinato.

O bordel da cidade tem uma regra que todo mundo conhece. Quem quiser
transar com a dona do bordel tem que jogar dados com o marido dela,
que é um cara negro enorme. Se o cara ganhar nos dados ele transa com
a dona do bordel, e se ele perder ele tem que dar a bunda pro marido
dela.

O Querelle vai no bordel, diz que quer transar com a Madame, joga
dados com o marido dela, e rouba nos dados - ele roda um dos seus
dados pra ele dar um valor menor, pra {\sl perder} no jogo.

\msk

Assistir Querelle me fez repensar toda a minha noção de coragem... e,
além disso, o filme quase que dava uma fórmula, em dois passos, pra se
a gente quisesse sexo homo: 1) seja incrivelmente corajoso, 2) vá pro
submundo.

Eu até hoje ainda não sei qual seria uma ``fórmula'' correspondente pra
quando a gente sonha em poder deitar a cabeça no colo do nosso melhor
amigo.



%\bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec pitbull")
{\bf 4. O pitbull}

Eu estava voltando pra casa. Era um fim de tarde, hora do rush, e
tanto a rua quanto a calçada estavam lotadas. Nessa época um dos
assuntos mais discutidos, e que sempre aparecia nas manchetes dos
jornais, era o que fazer com os pitbulls. Eles eram os cachorros
preferidos dos ``pitboys'', que eram uns garotos ricos mimados e
vândalos que viviam em academias, e que eram hipermasculinizados e que
sempre que podiam se metiam em brigas. Já tinha tido uma meia dúzia de
casos em que os pitbulls dos pitboys tinham atacado e mutilado, ou até
matado, pessoas, e havia uma campanha em andamento pra tornar pitbulls
ilegais, exigindo que eles fossem todos mortos, ou que pelo menos
proibissem andar com pitbulls na rua ou tê-los em casas que tivessem
crianças.

Então, nesse dia eu estava voltando pra casa, andando por uma calçada
hiperlotada de gente, e eu vi que ao lado de uma banca de jornais
tinha um espaço praticamente vazio - e nesse espaço tinha um garoto e
uma garota, de algo entre 12 e 15 anos, provavelmente irmão e irmã,
conversando casualmente entre si, e entre os dois o cachorro deles: um
pitbull.

``Dois adolescentes com um pitbull''... nessa época isso normalmente
seria algo apavorante, mas os dois tinham um ar tão frágil, eram super
sensíveis, super atentos, e o cachorro deles, um pitbull só um
pouquinho mais velho que um filhote, olhava pra todo mundo com uns
olhões enormes, tristes, doces e carentes, e tentava exprimir, não só
com os olhos mas com o corpo todo, algo como ``ei, ei, por favor, por
favor, vem brincar comigo, eu não vou te fazer mal nenhum!''... e umas
poucas pessoas até faziam contato visual com o cachorro e olhavam ele
nos olhos um instante, mas todo mundo, absolutamente todo mundo,
evitava ele por medo, e então ali, no meio daquele semi-círculo colado
na parede cinza de uma banca de jornais, tinha um cachorrinho doce e
carente fazendo toda a força pra parecer que tinha metade do tamanho
que tinha, e ele sabia que ia ter que ser o mais fofo {\sl possível}
pra que alguém chegasse perto, mas ainda não estava funcionando, ele
teria que ser ainda {\sl muito} mais doce, mais puro, mais sincero...
e ele continuava tentando...

Essa cena - essa imagem - nunca me abandonou. Pra mim isto é
exatamente o que é ser homem - aliás, melhor, {\sl andar dentro}
de um corpo masculino - num país machista. A gente fala sobre {\sl
privilégio masculino}, mas, bom, privilégio masculino quer dizer
principalmente você poder ser estúpido com as pessoas e elas
sempre te desculparem - porque elas sabem que você é um animal
irracional que não sabe se controlar.

Existe um papo de que o que as mulheres procuram e valorizam são os
homens sensíveis. Isto só é verdade até um certo ponto.

Deixa eu voltar pra história do pitbull mais um pouco. A gente tem
esse cachorrinho que está fazendo tudo, absolutamente tudo que pode
pra merecer que algum dia um ``príncipe encantado'' apareça e faça
carinho na cabeça dele por cinco segundos. Mas o que acontece se
vários anos se passam e ninguém se aproxima? Se todo o esforço pra
sinalizar pro mundo o quanto a gente quer ser fofo é em vão? A gente
gastou um tempo praticamente infinito polindo nossos corações,
examinando nossos pensamentos e devaneios, procurando cada coisinha
que poderia parecer um gesto bruto, e tentando curar cada migalha de
brutalidade por trás, e trocá-la por atenção e cuidado...

Então: imagina que os anos se passam e a gente ainda é visto e tratado
por absolutamente todo mundo como um pitbull. Nossa doçura e nossa
esperança se desgastam, e dão lugar à amargura... e todo mundo em
torno da gente diz pra gente, com as melhores intenções, coisas como:
``mas você {\sl é} um pitbull! Aproveite a sua pitbullzice! Se
divirta...''


\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec armadura")

{\bf 5. Armadura}

A coisa mais impressionante que aconteceu quando eu comecei a terapia
hormonal foi quase imediata - eu tomei os remédios, fui dormir, e
acordei diferente. Antes meu tórax era um bloco rígido, como uma
armadura... muitos músculos meus estavam tão rígidos há décadas que
eles não mandavam nenhuma informação pro meu cérebro - eles não
mudavam nunca, não havia nada pra mandar. Quando eu acordei tinha, sei
lá, 20, 50, 100, 200 músculos que era como se eu não tivesse antes, e
que passaram a ter mobilidade e sensibilidade. Era enlouquecedor, mas
era fantástico.

Eu ainda estou tentando pôr direito em palavras porque é que às vezes,
principalmente quando eu tinha cerca de 20 anos, eu cruzava o olhar
com alguém na rua durante um ou dois segundos e o olhar dessa pessoa
me salvava o dia. Olha esta idéia daqui: podia ser que eu sentisse que
com aquela pessoa eu poderia tirar a armadura. Essa pessoa me dava um
vislumbre, e aí eu conseguia imaginar - aliás, planejar - um futuro no
qual eu não precisaria mais viver de armadura...

O que aconteceria se eu afinal conseguisse me aproximar de uma pessoa
dessas e me abrir com ela? Acho que eu explodiria, eu diria
``obrigado'' e ``que alívio'' e que eu procurava algo assim sem
conseguir encontrar, e eu começaria a chorar - mas isso é tão
perigoso, né, porque aí provavelmente a outra pessoa iria me achar um
chato, dependente, descontrolado...

Garimpando nos meus cadernos de anotações eu encontrei esta frase: uma
armadura de espinhos que protege o meu coração.


% \bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec espelho")
{\bf 6. O espelho}

Eu me perguntava a toda hora: ``será que o que eu estou fazendo é {\sl
  de verdade}?'' - e com isso eu tive que procurar algum critério pro
que seria ``de verdade'', até porque eu sempre tive uma vozinha na
minha cabeça dizendo que nada do que eu fazia era verdadeiro o
suficiente ou bom o suficiente, que tudo que eu fazia era ridículo,
que tudo meu tinha defeitos gigantes -

Agora eu acredito que a gente vive uma farsa quando a gente precisa de
cada mais energia pra sustentar o que a gente acredita que é; quando
os nossos pilares de sustentaçao vão ficando cada vez mais frágeis e
há cada vez mais situações e memórias que a gente precisa evitar. A
``verdade'' seria o oposto disso: a gente está ficando mais verdadeiro
quando a gente consegue se comunicar com cada vez mais gente, ouvir as
pessoas melhor e pensar junto com elas, mesmo que a gente tenha mais
dúvidas que certezas; {\sl e quando a gente tem acesso a cada vez mais
  memórias}. Viver uma farsa é ter que bloquear memórias e
pensamentos; ser verdadeiro é não precisar bloquear, mesmo que a gente
precise às vezes atribuir significados e explicações novos para
memórias antigas.

Depois que eu saí do armário eu lembrei de uma memória muito forte da
minha adolescência, que estava enterrada, esquecida. Teve um período
de uns dois anos no qual toda vez que eu via o meu reflexo num espelho
isso estragava o meu dia - então eu andava pela rua com muito cuidado
com pra onde eu olhava, e eu mantinha tapado com papel pardo o espelho
do meu banheiro (eu tinha um banheiro só pra mim lá na casa dos meus
pais).

Acho que quase todas as pessoas trans sempre se viram como alguém do
gênero oposto ao sexo biológico... mas eu não sou assim, porque eu
nunca {\sl me via} direito - eu sempre fazia o possível pra que o meu
aspecto físico fosse algo muito secundário, quase irrelevante.

\msk

Agora, depois que eu comecei o tratamento hormonal, eu consigo olhar
pra mim.



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