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\separatorpagesimple{Sobre a performance Xereca Satânik}

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\section{Suspensão}
\mydate{29/maio/2014}

Quando eu comecei a descobrir coisas sobre body modifications em 1993
tudo aquilo parecia impensável. Quando eu fiz os meus primeiros
piercings --- escondidos --- nos anos seguintes, algumas das pessoas que
souberam ficaram MUITO chocadas. Quando eu morei no Canadá em 2002 um
amigo meu me convidou pra um evento que teria suspensões e pullings ---
e as pessoas da platéia lá estavam TÃO atentas que acho que todo mundo
viu o momento em que uma das pessoas com os ganchos saiu da sintonia,
os ganchos começaram a doer de um jeito ruim, e ela teve que pedir pra
parar. Todo mundo saiu de lá alterado --- Montreal é um lugar onde as
pessoas não têm dificuldade de se olhar nos olhos, e dava pra ver
pelos olhares que todo mundo que estava lá ficou muitíssimo mais
atento... acredito que todo mundo tenha conseguido se ver no lugar de
todos os participantes mais ativos --- as pessoas dos ganchos, as que
preparavam e colocavam os ganchos, a turma da assepsia, os que davam
apoio pra que ninguém caísse...

Eu fui um mero espectador, e o meu barato durou uma semana. Lembro da
frase de um amigo meu: ``I feel high without any drugs''.

Rio das Ostras, 2012. Eu resolvi ir na Convenção de Tatuagem que teve
no Parque da Cidade em setembro, e no final dela teve um evento com
suspensões. Várias pessoas se voluntariaram pra serem suspensas por
ganchos, mas era tudo banal --- o que também foi a impressão de vários
amigos meus. Nós ficamos nos perguntando porquê --- era bizarro que algo
que deveria ser tão intenso só causasse apatia, e que nem as próprias
pessoas suspenas estivessem prestando muita atenção.



\section{Xerecas Satânicas}
\mydate{29/maio/2014}

Eu fui parar no espaço da amendoeira quase por acidente naquele dia.
Eu sabia que ia ter uma performance, mas eu não estava dando muita
bola pra ela. Num momento eu disse pra minha amiga com quem eu estava
conversando ``ei, tem umas pessoas peladas, vamos ficar mais perto pra
ver o que vai acontecer?'' Ok, era uma mulher pelada, duas mais ou
menos, e um cara de short, com uma camada de argila na pele, fazendo
percussão em canos de metal no chão, perto de uma fogueira --- até aí
nada de especial. Uma das mulheres semi-peladas começa a batucar,
quase sem noção de ritmo, num latão de lixo daqueles grandes,
cor-de-laranja, com duas rodas, e a cantar uns funks com letras de
protesto --- uns que eu já tinha ouvido em manifestações no Rio, outros,
como um sobre a Aracruz Celulose, que eram novidade.

Eu tinha ouvido algo sobre Anarcofunk. Será que alguns dos performers
eram do Anarcofunk? O que é Anarcofunk? É como se fosse uma banda, com
um número pequeno e fixo de componentes, ou é um coletivo grande, ou o
quê? Será que algumas dessas letras de protesto --- e das que eu ouvia
em protestos no Rio --- tinham sido inventadas por aquelas pessoas que
estavam à minha frente?

Aí a garota pelada pega uma bandeirinha do Brasil de pano, de tipo uns
15$×$20cm, e começa a enfiar dentro da xereca. Dá um trabalho, ela leva
uns 5 mins fazendo isso. Até aí tudo bem, também. Aí ela se deita
sobre duas mesas de bar de plástico colocadas uma do lado da outra. A
amiga dela --- semi-pelada --- ajuda ela a terminar de enfiar. Aí essa
amiga pega agulha e linha e, pelo menos aparentemente, começa a
costurar a xereca da que tá com a bandeira.

Eu tava longe e não dava pra ver direito. Na verdade, como a luz era
muito fraca, a gente quase só conseguia ver um pouquinho mais quando
espocava um flash, ou quando as câmeras lançavam aquela luz mais forte
durante um ou dois segundos que elas usam pra ajustar o foco --- e então
eu comecei a ter uma relação ambivalente com as câmeras, porque um
lado eu ainda tinha a minha relação normal de desprezar as pessoas que
não conseguem estar totalmente presentes nas situações, e aí ficam
tirando fotos (que vão ficar péssimas) pra postar no Facebook, e por
outro lado as luzes das câmeras eram o que permitia a quem estava
longe ver um pouquinho mais... eu comecei a perguntar pra pessoas que
estavam perto de mim o que estava acontecendo, e todo mundo achava que
uma performer estava costurando a outra, mas ninguém tinha certeza
absoluta... e eu não via nada que parecesse com luvas cirúrgicas ou
desinfecção de nenhum tipo, e ISSO começou a me deixar muito agoniado
--- eu pensei, q*ralho, que que são essas pessoas? Todo mundo que eu
conheço de body modifications hoje em dia é obcecado por esterilização
e segurança... que tipo de riscos essas pessoas estão correndo? Que
infecções podem acontecer? Elas pesquisaram e têm praticamente certeza
de que o risco de ter algo difícil de tratar é muito baixo? Ou a
certeza é outra, é a que a da xereca está num daqueles estados
alterados nos quais a imunidade do corpo fica altíssima --- como a de
índios e faquires? Que tipo de cumplicidade existe entre que a que é
costurada e a que costura? Será que se a que está costurando se
desconcentrar a costurada pode perder a concentração também?... e as
pessoas diziam ``nossa, isso deve doer muito'', mas a costurada se
levantou, ficou em pé defronte da fogueira, com um sorriso de orelha a
orelha e uma postura imponente de quem está acostumada a ficar nua em
público, e começou a desfazer parte da costura puxando os fios com as
mãos, tirou a bandeira da xereca, depois segurou-a logo acima da fogo
até que ela começasse a se incendiar, ficou dançando com a bandeira em
chamas um tempão, e só depois tirou o resto dos fios da costura...
depois uma das semi-peladas se deitou na mesa, e a outra começou a
fazer pequenos cortes nela um pouco acima do peito com um bisturi --- e
a que estava sendo cortada começou com uma cara de dor, mas logo
depois estava com um sorriso enorme também, e isso eu estava
assistindo bem de perto, e dessa vez eu fiquei agoniado porque o jeito
de fazer o corte me parecia totalmente sem noção, a que cortava ia e
vinha com a ponta do bisturi várias vezes sobre a mesma linha de leve,
como se estivesse raspando aquela linha... e como eu formo quelóides
com muita facilidade eu sempre tive uma coisa de que cada corte
proposital tem que ser feito com muito cuidado e precisão, não dá pra
errar... agora é que eu tou vendo que nunca me ocorre me imaginar no
lugar de alguém que tenha uma cicatrização mega-boa, e cujas
cicatrizes sempre desaparecem...

Outra coisa importante é como a atitude das pessoas que estavam
assistindo foi mudando. No início era um mero ``uau'' com risinhos;
depois virou algo tipo ``eu não acredito que estou assistindo isso'',
meio de choque, meio de ``nossa, isso vai dar merda'' --- mas por mais que
a performance fosse chocante e até, pra algumas pessoas, talvez
ofensiva, ninguém teve nenhuma atitude de interrompê-la... pelo
contrário, nossa passividade de espectadores foi quebrada --- nós nos
tornávamos cúmplices, nós tínhamos que cuidar da segurança da
performance da mesma forma que ninguém na platéia de um circo
atrapalha um número de corda bamba ou o de um malabarista com facas...
aliás, éramos ainda mais responsáveis ainda do que num circo, porque
era claro que a performance teria repercussões posteriores, e nós
teríamos que defendê-la, e defender o espaço da amendoeira, das
pessoas que nas semanas seguintes poderiam querer punir os
responsáveis e fechar o espaço...

Depois da performance as pessoas ficaram eletrizadas durante horas ---
eu fiquei até as 3 da manhã conversando com várias pessoas e grupinhos
lá perto da amendoeira, e todas as conversas eram fantásticas. Uma
coisa que eu pensei foi: se nós tivermos que defender essa performance
quando der merda depois, uma das coisas que podemos fazer é contar
algumas das conversas que surgiram, e que nunca teriam acontecido sem
a performance.

Logo depois dela eu estava conversando com o Tiago Abs, um amigo meu
que estuda Produção Cultural, sobre o quanto dela a gente achava que
tinha sido improviso, e ele disse que ele tinha se oferecido pra
ajudar fazendo projeções que combinassem com a performance, e o
pessoal do grupo disse pra ele: olha, não dá, nem nós mesmos sabemos
direito o que vai acontecer --- e, bom, eu desconfiava que havia muito
improviso, isso explicaria porque muitas partes eram genuinamente
chatas, a energia baixava, e outras partes tinham uma energia e uma
vida impossível de se ter em coisas ensaiadas... depois eu e o Tiago
tivessemos outra conversa super legal, sobre a componente sexual da
performance --- a dona da xereca ainda passou um tempo andando sem
roupa, e todo mundo do grupo aproveitou que a performance tinha
acabado pra beber muita cerveja no pouquinho tempo em que eles ainda
teriam energia pra isso antes de irem pro hotel... e era legal que
normalmente a gente vê de forma sexual corpos nus, mas a atitude de
todo mundo com a Raíssa era de admiração e proteção, tipo, se qualquer
um desse em cima dela a gente consideraria uma falta de educação
enorme, e daria um puxão de orelha no cara ---



\section{Liberdade com o próprio corpo}
\mydate{31/maio/2014}

Eu vi, nos dias seguintes à performance, várias pessoas dizendo ``cada
um pode fazer o que quiser com o seu corpo''.

Isso não é verdade. Eu conheço vários caras que não podem nem deixar o
cabelo crescer um pouquinho, porque se fizerem isso correm o risco de
serem demitidos do emprego, ficarem mal vistos na igreja ou apanharem
em casa, e sei até de meios nos quais se um cara fizer um gesto errado
de mão os colegas vão sacaneá-lo durante meses, porque consideravam
aquele gesto aviadado.

Se eu fosse um cara que não pode fazer nada de diferente com meu
próprio corpo e eu ouvisse um estudante de produção cultural dizendo
que ``cada um pode fazer o que quiser com o seu corpo'' eu teria inveja
--- e raiva. Eu acharia que o estudante não sabe nada da vida, nunca
teve que trabalhar, é mimado, é sustentado pelos pais.

Eu não sei porque as pessoas ainda dizem ``cada um pode fazer o que
quiser com o seu corpo''. O tempo de verbo está errado. É ofensivo.
``Cada um deveria poder fazer o que quiser com o seu corpo'' seria bem
melhor.

A gente regula não só o que a gente faz com os nossos corpos como os
nossos desejos. A gente se defende dizendo que nunca quis deixar o
cabelo crescer, que nunca quis fazer algo sexualmente estranho, que
quem quer essas coisas é viado, ih, aê, eu não, eu sou macho, porra,
qualé, sai pra lá.

Nesse sentido a performance foi muito ofensiva. As performers queriam
se furar e se cortar, e fizeram isso em público. Nós vimos o momento
inicial de dor, que logo se transformava em prazer e força. Elas
estavam muito além da fase do ``não'', da vergonha, da mentira, da
culpa. A atitude física delas era de sinceridade absoluta. Elas
conquistaram o nosso respeito --- e não era o respeito de quem olha pro
lado e finge que não vê --- nós estávamos junto, e formávamos um círculo
de proteção.

A gente associa cenas sadomasoquistas com situações de tensão sexual
extrema, e com desejos errados --- que precisam ser escondidos. Se
alguém da nossa igreja ou da nossa família soubesse de nossas
fantasias e práticas sadomasoquistas essa pessoa ficaria alarmada e
tentaria nos ``ajudar'' e nos ``curar'' --- talvez até nos delatando para
alguém que ela considerasse mais competente.

``Cada um é livre pra fazer o que quiser com o seu corpo'' --- mas essa
liberdade tem um preço, a gente tem que desistir de determinados
grupos sociais e de determinados trabalhos pra poder exercê-la. Uma
pergunta natural sobre as performers --- como elas podem ser assim? --- se
transforma facilmente num grande ``onde'': onde elas vivem? Em que meios
elas circulam? Elas ainda se relacionam com suas famílias? Como? De
onde vem o dinheiro delas? Em que elas trabalham? O quanto do que elas
ganham é mesada? Como elas se relacionam com o porteiro, com o Seu
Manoel da mercearia, com as pessoas da rua?...

As performers mostraram que não tinham pudor nenhum de fazerem coisas
que seriam absolutamente impensáveis para as pessoas ``normais'', as que
têm famílias ``normais'' e trabalhos ``normais'' e frequentam igrejas
``normais''. As atitudes delas diziam: vocês acreditam que dar vazão a
certos desejos ``errados'' é suicídio social --- vocês seriam expelidos da
família, da igreja, dos trabalhos, dos amigos do clube e do bar, e
morreriam à míngua. Nós não nos importamos a mínima com a sociedade
``normal'', seja a de Rio das Ostras ou a qualquer outro lugar, e
estamos aqui, com uma sinceridade impensável pra quem faz concessões
aos ``normais'', somos íntegras e muito fortes --- e vejam, o
estranhamento inicial já passou, e nós cativamos vocês.

Imagino que seja bizarro ver pessoas que ``merecem ser apedrejadas''
sendo tão apoiadas pela multidão.



\section{Responsabilidade}
\mydate{/jun/2014}

Há uns anos atrás eu ouvi falar de uma instalação na qual um artista
deixava um cachorro amarrado num canto de uma galeria sem comida e sem
água. Os visitantes, e as pessoas que eu ouviram falar da instalação,
fizeram um rebu enorme, e num instante organizaram protestos que
tiveram apoio internacional. Dois dias depois da inauguração o artista
disse: olha, qualquer um de vocês poderia ter trazido água e comida
pro cachorro e acabado com a instalação, mas ninguém fez isso.

Se alguém na performance das xerecas tivesse ficado realmente
incomodado essa pessoa poderia ter protestado na hora... as performers
teriam tido alguma reação --- não sabemos qual -, porque elas estavam
muito atentas ao público. Mas ao invés disso umas pessoas incomodadas
só foram embora, e alguém tirou umas fotos e denunciou depois --- dando
um resumo completamente distorcido do que aconteceu.

No primeiro debate a gente viu que todo mundo que criticava a
performance estava se baseando só em informações fragmentadas e
distorcidas. Havia algum modo ``objetivo'' de mostrar o que a
performance realmente tinha sido? Não! Ela não tinha sido documentada,
e aliás, os performers teriam se comportado de forma bem diferente se
ela estivesse sendo filmada... e tinha pouca luz, e uma filmagem teria
pego 40 minutos de música caótica com umas poucas cenas ``pesadas'' no
meio --- seria algo insuportavelmente chato de assistir. A performance
era infilmável.

No primeiro debate algumas pessoas tentaram criticar quem estava
atacando a performance a partir só das fotos, boatos e reportagens
tendenciosas, dizendo que essas pessoas não estavam lá e não tinham
como saber como tinha sido de verdade. Mas caramba, a gente não pode
estar em todos os lugares ao mesmo tempo, a gente tem que partir de
informações parciais e boatos e a partir disto tentar conseguir mais
informações e se posicionar...

(Continua... Esta é a seção mais importante, então volte depois pra
ler o resto! =))



\section{Mecanismos}
\mydate{/jun/2014}

Há uns meses atrás um comediante americano chamado Andrew Bailey
postou um vídeo incrivelmente corajoso chamado ``Why rape is sincerely
hilarious''. No vídeo ele começa fazendo umas piadas sobre estupro de
um jeito retardado e ofensivo, mas logo ele começa a contar de como
ele foi seduzido por uma mulher mais velha quando tinha 13 anos, e a
gente vai entendendo como por um lado ele devia achar aquilo ótimo ---
porque aquilo era exatamente a fantasia dos colegas adolescentes dele
--- mas por outro lado ele se sentia péssimo e ele nem sabia articular
direito porquê... e ele não conseguia saiar daquela situação, ele
estava preso, como que numa armadilha, e a vida dele foi entrando em
colapso. No fim do vídeo ele diz que ele acha estupro de garotos algo
sinceramente engraçado --- ``porque ele tem que achar'' --- e pela cara
dele, um riso nervoso que no início do vídeo era só idiota mas que
agora no final está cada vez mais à beira do choro --- a gente entende
como essa história pra ele ainda está muito longe de estar superada...

Fazer piada com situações com as quais a gente não consegue lidar é um
mecanismo de defesa bem conhecido. Dizer que a pessoa assaltada ou
espancada ou estuprada estava no lugar errado, ou fez algo pra
provocar, é outro --- a gente está dizendo que aquilo nunca vai
acontecer com a gente, porque ela foi idiota e a gente é mais esperto
que ela.

Vou voltar a este tema dos mecanismos de defesa em breve.

Deixa eu começar a falar sobre arte agora --- e também vou voltar a
``arte'' depois, aos poucos.

\msk

Uma obra de arte boa é uma que a gente olha e gosta. 
Uma obra de arte ótima é uma que faz a gente pensar. 
Uma obra de arte excelente é uma que transforma a gente. 
Uma obra de arte {\sl realmente excelente} é uma que transforma o mundo todo.

\msk

Fazer coisas dá trabalho. Uma vez eu li uma coisa genial sobre isso:
se você vai pintar uma natureza-morta é uma péssima idéia passar só 10
ou 15 minutos arrumando sobre a mesa os objetos que você vai pintar ---
porque aí depois de 10 ou 20 horas trabalhando no seu quadro você vai
estar se arrependendo muito, porque vai estar vendo o tempo todo como
a sua composição de objetos na mesa era sem graça, péssima, até.

Quem viajaria até Rio das Ostras de graça, só com uma ajuda de custo
mínima, pra apresentar uma performance ingênua, mal preparada, e que
as pessoas vão achar só ``boa''? Algumas pessoas fariam isso sim --- mas
eu não consigo me imaginar no lugar delas. E quem faria uma
performance com riscos físicos e até riscos legais, se não tivesse
muita certeza do que está fazendo? Ou só com certezas burras? É
curioso como tanta gente tem ``certeza'' de que os performers da Xereca
Satânik são idiotas --- e, engraçado, pra mim é tão evidente que essa
``certeza'' é um mecanismo de defesa ---



\section{As coisas que não deveriam existir}
\mydate{5/jun/2014}

Em 4/jun/2014 um aluno da Computação do PURO, o Oberdan, publicou um
vídeo que satirizava vários argumentos (fracos) das pessoas que
estavam defendendo a performance. Confesso que num primeiro momento eu
fiquei muito irritado assistindo o vídeo, mas depois vi que era uma
síntese genial, e de tudo que eu já vi atacando a performance o
roteiro dele era a coisa que mais merecia ser relida muitas vezes.
Segue uma transcrição dos diálogos.

\begin{quotation}
\footnotesize

\def\fa{\par --- }
\fa Sim, mas vocês são então alunos da UFF? 
\fa Sim, do PURO. 
\fa (Tosse) Desculpe. 
\fa Somos alunos da UFF-PURO em Rio das Ostras, estávamos tendo um seminário de Corpo \& Resistência... foi realizado durante a semana palestras sobre o assunto... 
\fa Palestra sobre o assunto? 
\fa Sim, palestras, então aproveitamos o dinheiro do CNPq e promovemos a arte ``Xerecas Satâniks'' para protestar contra violência e estupro na cidade. 
\fa Eu tentei entender, levar sério o que eles diziam, mas não fazia o menor sentido. Não dava pra acreditar que era sério que tinha gente apoiando esse vexame. Não pude me conter. 
\fa Então quer dizer que o evento ``Xerekas Satâniks'' foi ``arte'' e tinha como foco protesto? 
\fa Sim, inclusive nós tivemos bolsa do CNPq para realizar o evento. 
\fa Sim, foi um evento sério de cunho artístico. 
\fa (Tosse) Desculpa. 
\fa Como eu ia dizendo, ela costurou a pepequinha porque as meninas da cidade são estupradas, então pensamos: ``se eu costurar a pepequinha as pessoas vão parar de ser estupradas, porque isso é culpa da sociedade capitalista, dos burgueses, dos...'' 
\fa (Ri e se controla) Desculpa. Desculpa, desculpa, sei que é sério. Pois então, vocês acreditam que se costurar pepeca as pessoas da cidade... 
\fa Eu acho que ele não sabe o que é arte. E nem falamos com ele sobre a parte do cerol... 
\fa Perdoe-me a falta de cultura, é que na verdade é um pouco confuso pra mim. Mas este evento visava chocar a sociedade mostrando que a elite intelectual do país é massa de manobra? 
\fa Sim, por isso fizemos de madrugada dentro do espaço da UFF. 
\fa Uhum. 
\fa Porque a UFF é federal. Se quiséssemos mostrar apenas para a população local teríamos feito em uma escola municipal qualquer. 

(O apresentador agora está às gargalhadas e não consegue mais se controlar) 

\fa Não entendo a graça. Tinha tudo pra dar certo: crânio, círculo, gente pelada... foi uma festa como qualquer outra. Minha avó até me deu a agulha... 
\fa ``Elite intelectual! Pff...'' 
\fa Por isso é que o país está assim... lamentável... 
\fa Foi mal, agora é sério. Foi a última vez, não sei o que me deu, mas vamos continuar. Um dos alunos afirmou que o evento cumpriu com a proposta e ao que parece ele veio, está aqui na platéia né, e veio nos falar um pouco da repercussão na mídia... 
\fa Comprada. Faltou dizer que a mídia é comprada. É tudo mentira. 
\fa Sim, chamamos muita atenção positiva para UFF, saímos no G1, na VEJA, todo mundo comenta sobre o evento, tivemos o apoio do CNPq, tá bom ou quer mais? 
\fa Esse burguês safado comedor de McDonnald não deve ler jornal. Fala mais pra ele. Ele tem inveja porque não sabe pensar fora da caixinha. Ele e todo mundo de exatas. Só querem saber de ter um emprego digno, tem até uma empresa na faculdade. 
\fa Lamentável... até oferecem emprego lá dentro. 
\fa Eles são hipócritas. Quando fazem cesariana ninguém reage assim. Porque não pode costurar a pepeca? 
\fa E foi o que aconteceu. Depois disso as pessoas me perguntam: ``você estuda no PURO?'' e a primeira coisa que me passa na cabeça é negar até a morte, mas eu tive uma boa formação, excelentes professores e esse é o legado que ficou pra mim. Além disso acredito que não devemos julgar um nicho de pessoas por outro. 
\fa Espero que os calouros ou os alunos não envolvidos não tenham de pagar pelo que aconteceu e que algo seja feito a respeito.
\end{quotation}

Um argumento recorrente contra a performance é de que ela era ingênua
--- porque era {\sl ineficaz}! Ora, ineficaz é exatamente o que ela
não foi... os performers fizeram coisas que envolviam nudez e um pouco
de dor física --- coisas que demandam uma certa energia --- e a
energia que eles despertaram e moveram com isso, não só na cidade de
Rio das Ostras como em outros lugares, foi colossal! Então temos que
perguntar: será que essa reação foi a que eles queriam? O que eles
queriam, afinal? Eles queriam ``chocar''? Queriam ``protestar pelos
direitos das mulheres''? Ou o quê?

Eles participaram das apresentações do seminário, e poderiam ter
explicado algo. Eles chegaram atrasados --- chegaram no meio da tarde
--- e os organizadores perguntaram se eles gostariam de fazer alguma
fala, apresentar algo, fazer perguntas, e tal. Eles disseram que não,
que preferiam só assistir e ouvir, e assistiram as apresentações muito
atentamente --- e a impressão que o Tiago, que me contou tudo isso,
teve, era de que eles pareciam muito familiares com as discussões
teóricas.

Depois eles se prepararam pra apresentação, que começou bem atrasada.
Segundo os cartazes de divulgação a performance seria às 18:00, mas
eles deixaram pra fazê-la quando já tinha mais gente na festa, lá
pelas 22:00.

Segundo o Tiago as músicas que o DJ estava tocando naquele dia eram
bem diferentes das habituais, e as pessoas que costumavam ir nas
festas no espaço da amendoeira pra socializar casualmente, azarar,
etc, foram embora bem antes da performance. O foco do ambiente era
outro.

Não havia nenhum cartaz na entrada do espaço da amendoeira --- eu ia
falar ``porta'', mas é só ``entrada'' --- como aqueles que avisam que o
filme é proibido pra menores de 18 anos porque tem isso, aquilo e
aquilo outro.

Se houvesse um cartaz desses vários dos argumentos das pessoas que
atacaram a performance depois seriam insustentáveis. Mas não havia. E
os performers sabiam disso. Quanto ao organizadores, eles sabiam que
haveria nudez e que é mais ou menos de praxe que performers não avisam
de antemão o que vão fazer.

Depois da performance os performers conversaram só um pouquinho com
quem estava lá, depois foram embora pro hotel, e de lá, no dia
seguinte, de volta pras suas cidades.

Levou pelo menos uns dois dias pra gente como eu --- e pôxa, eu fui na
performance --- saber que esse grupo tinha sido também o que tinha
feito aquela performance na Marcha das Vadias do Rio que deu um bafafá
enorme. Eles são deliberadamente anônimos, e eles se expõem muito
pouco verbalmente --- eles decidiram não falar quase nada... e isto
faz com que as pessoas sejam obrigadas a supôr o que eles, os
performers, são e pensam --- e aí algumas pessoas acham que eles são
idiotas sem noção, outras, como por exemplo praticamente todo mundo
que foi na festa/performance, acham que eles são brilhantes e sabem
muito bem o que estão fazendo...

Será que eles seriam capazes de escrever porque a performance da
Xereca foi como foi? Isto foi um dos temas interessantíssimos que
apareceu nas conversas pós-performance... Imagine que eles sejam
processados por algo como ``obscenidade'' --- vou usar este termo porque
já ouvi falar de processos famosos contra livros, peças, pinturas,
etc, por obscenidade. Não sei como é a situação no Brasil, mas por
exemplo nos EUA algo é obsceno quando contém certos elementos
proibidos e não tem méritos artísticos evidentes. Então: será que
eles, os membros do grupo de performance, ou sozinhos ou junto com um
grupo que se mobilizaria para apoiá-los, conseguiriam produzir um
livro de 200 páginas explicando de forma brilhante porque eles fizeram
aquela performance daquele jeito, e de forma que esse livro
convencesse muita gente que não a assistiu do valor dela?... pelo
nível das conversas nos dias seguintes, estava evidente que sim --- e
aliás um tema interessantíssimo, que bem poderia ser um capítulo do
livro, é que a construção de uma obra de arte é um processo mais
intuitivo do que racional, porque como cada obra é percebida por
pessoas diferentes de jeitos diferentes as variáveis são tantas que um
processo com bastante espaço para a intuição acaba sendo mais eficaz
que um muito racional... mas muitas vezes é preciso fazer
racionalizações a posteriori para poder comunicar este processo para
outras pessoas.

No modo como eu imaginei os performers do grupo eles decidiram não
falar quase nada, observar como as pessoas da universidade e da cidade
funcionavam, e se aproveitar do fato de que o espaço da amendoeira era
um espaço razoavelmente protegido --- era um espaço acadêmico e eles
tinham sido convidados, então era bem diferente de fazer uma
performance na rua --- e se aproveitaram também de que não havia
nenhum cartaz dizendo algo como ``classificação indicativa: proibido
para menores de 18 anos'', ``contém cenas fortes'', nada assim, e
portanto certas forçações de barra poderiam ter consequências
posteriores para os organizadores e até para o público. E estas
decisões foram meio racionais, meio intuitivas, e meio feitas de
antemão e meio na hora.

Pra muita gente aquela performance, numa universidade pública e num
espaço sem um cartaz de classificação-indicativa-proibido-contém-etc,
não deveria ter existido... mas, repare, coisas como estupro,
violência de gênero ou contra LGBTTs, etc, também não deveria existir,
e isto pra mim foi um dos elementos mais importantes da performance!
Não é nem que eles tenham nos feito ``pensar'' sobre o que a gente faz
contra coisas que não deveriam existir; eles fizeram muito mais do que
isto --- eles fizeram todo mundo revelar como lida com as coisas que
incomodam e não deveriam existir, quais são nossas prioridades, quais
são nossas estratégias, quais os nossos mecanismos de defesa ---

Talvez o termo ``mecanismo de defesa'' seja pequeno pro que eu quero
falar agora, que é algo mais geral, então vou usar só ``mecanismos''.



% 7. Repressão e recalque
% (5/jun/2014)
% 
% (em breve)
% 
% 
% 
% 8. Mecanismos sociais
% (5/jun/2014)
% 
% (em breve)
% 
% 
% 
% 9. Mecanismos de protesto
% (5/jun/2014)
% 
% (em breve)
% 


\bsk
\bsk

(2014jun16: acabei de acrescentar as seções abaixo, que estão muito
incompletas... estou tentando conectar várias idéias-chave ---
apolíneo versus ctônico/dionisíaco, definição de arte, potência,
responsabilidade, uso do próprio corpo, uso de recursos mínimos
(comparar com Duchamp), etc, mas ainda falta muito --- praticamente só
consegui escrever o início de cada seção, que prepararia o terreno
pras idéias mais difíceis que viriam depois...)



\section{Satânica?}

Quando uma vizinha que eu nem conhecia me pediu pra eu caminhar junto
com ela alguns quarteirões quando eu estava indo pra festa/performance
--- porque lá em Rio das Ostras é comum as mulheres terem medo de
assaltos e estupros mesmo quando andam por lugares iluminados --- ela
me contou que tinha ficado assustada com o nome ``Xereca Satânik''... eu
comentei vagamente que já tinha visto festas com nomes muito mais
pesados, mas não quis entrar em detalhes, porque o nome que eu estava
pensando era o de uma das festas anteriores, que era ``É possível ter
prazer anal no Multiuso'', e o flyer tinha uma foto da Sandy...

Pra mim era bem óbvio que os organizadores estavam simplesmente
fazendo experiências de linguagem, tentando encontrar o tom certo
entre o chocante e o engraçado, com umas pitadas de nonsense.

No debate da 6ª feira é que eu vi que várias pessoas --- alunos
religiosos do PURO --- têm uma definição de ``satânico'' e têm ``certeza''
de que aquela é a única. ``Satânico'' pra mim era um termo que tinha
dezenas de significados diferentes, cada um deles incompatível com
quase todos os outros, e eu achava que era assim pra todo mundo...




% \section{Potência}
% 
% No domingo 8/jun/2014 a Vânia, do Serviço Social, postou a carta de
% apoio abaixo na página dela do Facebook. Imagino que o teor da carta
% tenha sido decidido em grupo mas que ela tenha feito a redação final.
% 
% Nota do colegiado do curso de serviço social da UFF de Rio das Ostras:
% 
% BEM-AVENTURADAS SEJAM AS XERECAS SATÂNIKS!
% 
% --- Por propiciar aos docentes e discentes do Curso de Produção
% Cultural, responsáveis pelo evento em questão, a oportunidade de
% refletir sobre o significado e a finalidade social da arte e sobre a
% responsabilidade e consequência de seus conteúdos;
% 
% --- Por lançar à comunidade acadêmica mais um desafio para criar
% alternativas de convívio plural, autônomo e ético, que não se limite à
% defesa axiológica de tais princípios, mas que sejam efetivamente
% capazes de orientar uma prática cotidiana fundada nas conquistas
% humanas essenciais (liberdade, igualdade, alteridade) e em face da
% diversidade de concepções estéticas, morais e políticas, cujo limite
% para sua manifestação seja exclusivamente o campo democrático;
% 
% --- Pela nudez desavergonhada, desmedida, explícita, bizarra que, como
% espelho, desnudou o moralismo, o autoritarismo e o caráter reacionário
% daqueles que banalizam a barbárie cotidiana (desigualdade, desemprego,
% déficit habitacional, violência urbana, violência sexual e de gênero,
% sucateamento da saúde, da educação) e medem a dignidade humana e o
% papel da Universidade exclusivamente pela régua de seu moralismo
% tacanho;
% 
% --- Por nos lembrar que a Universidade Pública é um espaço de todos,
% autônomo, plural e laico e que, por isso, não por apelos moralistas,
% deve pautar suas atividades acadêmicas, culturais e festivas nesses
% princípios e quando, se por ventura, qualquer desses princípios
% estiver ameaçado, cabe à própria comunidade acadêmica, no exercício de
% sua autonomia (conquistada com muita luta) encontrar democraticamente
% os caminhos que levem à recomposição de tais princípios.
% 
% --- Por nos alertar sobre os riscos éticos e políticos de práticas que
% podem favorecer condenações arbitrárias e exemplares (administrativas,
% judiciais, morais) por parte dos poderes instituídos (gestores,
% autoridades policiais, mídia) e que podem servir de justificativa para
% exercer a patrulha ideológica, perseguições e retaliações políticas a
% grupos e pessoas que no cotidiano acadêmico e social questionam as
% decisões antidemocráticas, a falta de transparência e os desmandos
% praticados na Universidade e na sociedade;
% 
% --- Por nos advertir que grande parte da opinião pública, da
% sociedade, das autoridades institucionais e policiais não se interessa
% ou ignora solenemente as mazelas atuais da educação pública, no nosso
% caso, educação superior federal. Nos advertir que só merecemos sua
% atenção quando um episódio pontual pode ser explorado com
% sensacionalismo, sob alegação de ultraje à moralidade, à essência da
% atividade acadêmica, à formação de novos quadros profissionais e ao
% financiamento social de nossa atividade. Pouco importa como e o que
% estamos produzindo em nossos projetos de ensino, pesquisa e extensão.
% Pouco importa em que condições (falta de, na verdade) estamos
% realizando nossas atividades. Há oito anos esperamos pela construção
% de nosso campus Universitário, que prevê obras essenciais para a
% realização de nossas atividades; pela contratação de docentes
% previstos nos projetos acadêmicos de nossos cursos, pela aquisição de
% equipamentos para instalação de laboratórios, por melhorias no
% saneamento básico, na pavimentação e iluminação públicas. Há oito anos
% reivindicamos rondas policiais sistemáticas no entorno do Polo, pela
% incidência de assaltos, roubos e violência sexual que afetam membros
% da comunidade acadêmica, especialmente mulheres. Em 2012 paralisamos
% nossas atividades por 120 dias, na luta por melhores condições de
% trabalho e de ensino. Há oito anos praticamente imploramos a atenção
% da opinião pública, da sociedade e das autoridades públicas sobre as
% condições precárias que assolam nossa realidade. Em dois dias, as
% Xerecas Satâniks conseguiram mais atenção da mídia, da sociedade e das
% autoridades institucionais e policiais do que toda a comunidade
% acadêmica nesses oito anos. O poeta tem razão, ``a nossa dor não sai no
% jornal'';
% 
% POR ISSO, BEM-AVENTURADAS(os) SEJAM AS GENITÁLIAS, OS CORPOS E AS
% MENTES QUE PARA EXERCITAR A CRIAÇÃO, VIVER A DIFERENÇA, A LIBERDADE, A
% IGUALDADE E O DIREITO À EDUCAÇÃO NÃO PRECISEM SER COSTURADAS,
% CENSURADAS, ESTIGMATIZADAS, VIOLENTADAS, REPRIMIDAS, ODIADAS,
% CONDENADAS E CRIMINALIZADAS.



\section{Coisas que enlouquecem}

A minha mãe leu o início deste texto --- as seções 1, 2 e 3 --- há uns
dias atrás e teve um chilique. Vou explicar porquê.

Imagine uma pessoa que um dia experimenta maconha e isso acaba sendo o
início de um processo no qual ela vai perder toda a sua capacidade de
fazer julgamentos acertados e agir moderadamente... ela vai passando
pra drogas mais pesadas, fica cada vez mais viciada --- apesar de ter
um discurso dizendo que não, que ela larga quando quiser --- briga com
todos os amigos, perde o emprego, vende os bens, e um dia ela mata a
mãe o irmão pra roubar dinheiro pra comprar crack, metanfetamina,
heroína e krokodil, e na semana seguinte ela morre na sarjeta.

Agora imagina um processo parecido com um garoto que não controla seus
pensamentos pecaminosos, por puro espírito de porco ele resolve que
não quer ser uma pessoa decente e se casar e consituir família etc,
ele segue o caminho do pecado, vira gay e depois uma travesti
prostituída e drogada, vira a escória da sociedade e morre na sarjeta
que nem o meu personagem anterior.

Outra história: dois caras brigam. Um deles numa hora desiste de
controlar a raiva --- ou não consegue controlá-la --- e mata o outro.

As três histórias acimas são sobre personagens que cedem a tentações e
isto é o início de uma decadência sem volta.

A gente está o tempo inteiro lidando com ``tentações''. O quão próximos
nós podemos ser dos nossos coleguinhas maconheiros? Será que eu olhei
de um jeito errado pra mulher do próximo? Devemos aconselhar nossos
amiguinhos que estão indo pras baladas erradas, vão ficar mal falados
e assim nunca vão conseguir casamentos decentes?

Acho que a pergunta fundamental por baixo de tudo isto é: se
experimentarmos uma certa coisa ``perigosa'', se cedermos a uma
determinada tentação, será que aquilo vai nos enlouquecer?...

Digamos que você tenha duas opções:

\begin{tabular}{l}
Opção 1 \\
A sua família sente orgulho de você \\
Você tem os melhores empregos \\
Você tem a aceitação da sua religião \\
Você tem total aceitação da sociedade \\
E você pode andar na rua sem ninguém te olhar torto. \\
\end{tabular}

\begin{tabular}{l}
Opção 2 \\
Você é expulso de casa. \\
Você perde o seu emprego. \\
A sociedade te despreza. \\
A sua religião diz que você é uma abominação. \\
E ainda você pode apanhar na rua, simplesmente por existir. \\
\end{tabular}

Você escolheria a opção 2? 

Não? 

Então porque você acha que alguém escolheria?

\msk

Digamos que você esteja com tanta raiva de uma pessoa que você fica
imaginando matá-la. É óbvio que o desejo de matar alguém é pra ser
reprimido, e isto é comum, e é fácil conversar sobre isto com amigos,
as pessoas entendem, perguntam mais, contam histórias delas, dão
conselhos, fazem piadas...

Agora digamos que você esteja a fim de uma pessoa do mesmo sexo;
antigamente era igualmente óbvio que este desejo devia ser reprimido
--- aliás, era óbvio também que você não podia nem sequer contá-lo
pros amigos, por até ter um desejo destes era grave --- mas hoje dia
isto é bem menos óbvio.



% \section{Laica e plural}
% 
% Na 3ª 3/jun/2014 eu reencontrei na rua um cara que eu não via há um
% tempão. Ele também se chama Eduardo, e nós faziamos Tai-Chi juntos
% numa aula que acabou porque o professor resolveu viajar. Eu num
% instante comecei a falar empolgadíssimo sobre a Xereca Satânik, e ele
% se abriu e começou a contar várias histórias fortíssimas da vida dele
% das quais eu nem desconfiava.
% 
% A gente estava na Cinelândia, na porta de um templo da Igreja
% Universal do Reino de Deus, entre um protesto que parecia estar perto
% da hora marcada pra acontecer e uma linha de pelo menos uns 50
% policiais do Choque a postos. Ficamos tentando conversar apesar do
% barulho dos helicópteros. Ele me contou que quando ele era adolescente
% ele tinha pernas deformadas e muito fracas e quase não andava. Ele foi
% parar na Igreja Universal sei lá como, mas completamente cético. Não
% tenho como resumir aqui o que ele contou que foi acontecendo com ele
% --- mas uma frase dele especialmente luminosa não me sai da cabeça:
% ``Deus me deu pernas novas''.
% 
% Ele me convidou pra eu assistir uma sessão de descarrego --- como
% observador cético. Bastava eu ir numa IURD, dizer que eu era amigo do
% obreiro Eduardo tal, que tinha me convidado pra assistir, que aí eu
% seria super bem vindo pra só olhar sem precisar participar de nada.
% Ele disse que o pessoal da IURD até gosta quando pessoas céticas vão.
% 
% Eu disse que eu não era cético, eu tinha certeza do poder daquilo, que
% eu tava bem interessado e que eu gostaria de ir sim quando desse, mas
% que nas próximas semanas ou meses eu provavelmente ainda estaria super
% ocupado com as minhas coisas de salvar o mundo, teria que ser depois.
% E perguntei se pessoas que não são céticas, mas que dificilmente irão
% se converter, também são bem vindas como observadores. Expliquei que
% eu sou religioso também, que tenho a certeza e a sensação clara de
% estar no mundo com uma missão, mas que alguns dos meus princípios são
% diferentes dos que eu percebo na Universal... e pra mim o princípio
% mais básico é responsabilidade --- não me basta ver que algo tem um
% poder avassalador e faz milagres pra dizer que aquilo ``é'' verdade (e
% que portanto o resto não é --- tipo ``chuta que é macumba'', etc). Pra
% mim a gente é sempre responsável por em quem a gente decidiu
% acreditar.
% 
% Contei que a religião do meu pai era a Ciência, e que ele desprezava e
% ridicularizava tudo que não lhe parecesse científico e racional, e que
% até eu ter uns 10 anos de idade eu tentava ser como ele --- depois eu
% vi como aquilo era falho. Contei de como eu fui ``salvo'' por pequenos
% elementos que eu catei em vários lugares diferentes e que ajudaram a
% me transformar --- e sou grato a eles, e aí hoje em dia acho que a
% gente é responsável por encontrar modos de fazer os vários caminhos
% dialogarem, e que atitudes como
% chuta-que-é-macumba-isso-é-mentira-é-coisa-do-diabo-só-o-meu-caminho-é-o-certo
% são péssimas.
% 
% E contei que alguns dias antes --- acho que na 6ª eu tinha tido uma


% Local Variables:
% coding: utf-8-unix
% End: