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\documentclass[oneside]{article}
\usepackage[a5paper, %landscape,
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\begin{document}

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\def\separatorpage#1{
    \newpage
    \phantom{a}
    \vskip 3.0cm
    #1
    \newpage
  }





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%            |_|          
%
\phantom{a}
\vskip 1.5cm
{\huge
\centerline{\bf Falta misandria}
\centerline{\bf no movimento}
\centerline{\bf Trans}
}
\bigskip
\centerline{(Versão: 2015nov12b)}
\newpage
\phantom{a}
\newpage

\phantom{a}
\vskip 12cm
\par Às vezes a gente precisa se tornar visível
\par pra encontrar as pessoas parecidas com a gente.
\par {\sl Entre em contato!}
\par \medskip
\par eduardoochs@gmail.com
\par \url{https://www.facebook.com/eduardo.ochs}
\par \url{http://anggtwu.net/}
\par \url{http://anggtwu.net/gender.html}
\par \url{http://anggtwu.net/falta-misandria-2.html}
\par \url{http://anggtwu.net/LATEX/falta-misandria-a5.pdf}
\bigskip
\par Dica: na versão online - o PDF em A5 - os links funcionam.

\newpage

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%                                         
% Index of sections:
% (find-es "tex" "tableofcontents")

Índice:

{\makeatletter
\renewcommand*\l@section{\@dottedtocline{1}{1.5em}{2.3em}}
\@starttoc{toc}
}



\newpage




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% |_ _|_ __ | |_ _ __ ___  
%  | || '_ \| __| '__/ _ \ 
%  | || | | | |_| | | (_) |
% |___|_| |_|\__|_|  \___/ 
%                          
% «Intro» (to ".Intro")
% \separatorpagesimple{introdução}
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% (find-fmpage 4 "1. ``Põe a cara no sol''")
% (fmvp        4 "1. ``Põe a cara no sol''")

\mysection{poe-a-cara-no-sol}{``Põe a cara no sol''}
\mydate{2015jul17}

Quando você tem certeza de que é trans desde cedo, e você sai
do armário cedo, põe a cara no sol, e leva porrada pra caralho
porque está lutando pra ser feliz seus problemas são uns; por
exemplo, todas as zilhões de pessoas tipo o segurança do
banheiro do shopping, que é um louco recalcado que nunca nem
pôde pensar em cortar o cabelo de um jeito
diferente\footnote{\url{http://anggtwu.net/2014-xs.html\#3}}, e que
vai tentar te punir pela tua coragem e pela tua liberdade.

Quando você tem certeza de que é trans desde cedo e leva
porrada pra caralho em todo lugar você vê transfobia em todo
lugar e tem mais é que denunciar mesmo.

Quando você cria a certeza de que é trans bem mais tarde, depois
de uma vida inteira tentando ser meio genderless e achando que valia a
pena poder passar por cis na rua e ser meio invisível, como
eu\footnote{\url{http://anggtwu.net/2014-tr.html}} - porque afinal de
contas as pessoas que podem te endender são mais raras que
príncipes encantados - os problemas são outros.

Eu levei bem pouca porrada ``externa'' porque eu previa quais eram as
áreas perigosas, e não me arriscava nelas... mas aos poucos eu
vi que o que pareciam ``áreas perigosas'' pra mim eram coisas
enormes, como as que as outras pessoas chamam de ``vida afetiva'', ``vida
sexual'', e até ``vida social'', porque ``vida social'' inclui gente
falando com naturalidade em mesas de bar sobre desejo, galinhagem,
namoros e família, e a sensação de que tudo isto era
impossível pra mim tava me destruindo.

Eu não tenho como falar em primeira mão sobre sofrer transfobia,
mas posso repassar centenas de notícias sobre isso, e centenas de
relatos em primeira pessoa fantásticos de gente que escreve sobre
as suas vivências brilhantemente bem. O link tá
aqui\footnote{\url{http://anggtwu.net/trans-links.html}} - espero que
isto me dispense de falar sobre transfobia eu mesmo.



% (find-fmpage 4 "2. Expulsão")
% (fmvp        4 "2. Expulsão")

\mysection{expulsao}{Expulsão}
\mydate{2015jul17}

Me expulsaram\footnote{\url{http://anggtwu.net/falta-misandria.html}}
de um grupo trans do Facebook em maio de 2015, e essa expulsão me
doeu bem mais do que acho que deveria.

Disseram que eu estava ``relativizando transfobia'' e ``concordando
com um texto transfóbico''. A minha leitura do que aconteceu é a
seguinte. Os problemas das pessoas ``trans desde cedo'' são tão
grandes e
urgentes\footnote{\url{https://en.wikipedia.org/wiki/Maslow\%27s\_hierarchy\_of\_needs}}
que quando a gente olha pra eles não sobra espaço pra mais nada.
Talvez os problemas das pessoas ``trans tardias'', em especial com as
que se treinaram pra não dar muita bola pra própria
aparência, como eu, sejam totalmente incompatíveis com os das
pessoas ``trans desde cedo'', e não possam ser discutidos nos
mesmos espaços.

Exemplo: pra mim tem valido a pena esclarecer em que sentidos eu me
identifico muito mais com mulheres e nada com homens - mas isso é
um trabalho {\it enorme}, algumas respostas e explicações só
me surgem depois de eu procurar por elas por anos... e em certos
espaços se eu puxo assunto sobre isso pra saber como as outras
pessoas conseguiram as explicações delas parece que eu estou
cobrando que todas as pessoas trans tenham explicações tão
sólidas quanto as que eu tento exigir de mim - e aí parece que
eu estou questionando elas de um jeito que quase ninguém questiona
as pessoas cis.




% (find-fmpage 5 "3. Proibições")
% (fmvp        5 "3. Proibições")

\mysection{proibicoes}{Proibições}
\mydate{2015jul17}

É muito agressivo a gente dizer ``você não é mulher
porque x, y, z'', e a gente vê as pessoas que dizem isso como
idiotas, fundamentalistas, transfóbicas, etc... Então há uma
proibição entre as pessoas ``legais'' de {\it dizer} isto, mas esta
proibição é problemática porque é inevitável a gente
{\it pensar} sobre como a gente constitui a nossa personalidade com
elementos ``masculinos'' e ``femininos''...

Deveria haver mais espaço, pelo menos entre as pessoas ``legais'' que
estão construindo seus gêneros permanentemente, pra gente
conversar sobre essas coisas {\it em nós} - incluindo, por exemplo,
que fulane fez certa coisa grossa e estúpida que pra gente é
coisa de ômi, ou que a gente queria ter conseguido fazer direito
certa gentileza mas travou no meio porque ela nos pareceu feminina
demais.

O ``masculino'' era o que eu era obrigado a ser, e que era uma farsa e
uma prisão. O ``feminino'' era mais verdadeiro, mas era proibido.
Aos poucos eu fui encontrando jeitos de contornar {\it algumas} das
proibições sem levar muita
porrada\footnote{\url{http://anggtwu.net/2014-xs.html\#3}}. A gente
devia poder conversar mais sobre as proibições, que cada pessoa
percebe diferente e que variam de lugar pra lugar; sobre medos, reais
e imaginários; sobre os truques que cada um de nós descobriu ou
inventou.




% (find-fmpage 6 "4. Trans de verdade")
% (fmvp        6 "4. Trans de verdade")

\mysection{trans-de-verdade}{Trans de verdade}
\mydate{2015aug15}

Até pouco tempo atrás quando alguém dizia que eu não sou
trans de verdade eu ficava {\it muito} incomodado - e eu sumia, e ia
me angustiar escondido num canto.

Agora eu tenho a resposta.

Cara, {\it eu} sou de verdade. {\it Você} é que é só uma
cópia.

Você se encaixou em padrões já existentes pra te verem como
trans - em algo descrito por teorias médicas/psiquiátricas, ou
em algum grupo reconhecido socialmente, ou você se apóia em
alguma ``teoria de gênero'' dessas que diz que basta você se
identificar com o gênero tal e fazer mais X, Y e Z, e aí você
é do gênero tal.

Quando alguém não acredita nas teoricas médicas ou etc nas
quais você se apóia, aí babau - a pessoa diz que você
não é trans, você é uma farsa, você é doente.

O meu trabalho pra conseguir inteligibilidade social é dez vezes
melhor do que o seu. Ao invés de eu querer que as pessoas aceitem
alguma teoria, eu exponho as minhas questões de um jeito que gera
diálogo.




% (find-fmpage 6 "5. Allen Ginsberg e a NAMBLA")
% (fmvp        6 "5. Allen Ginsberg e a NAMBLA")

\mysection{allen-ginsberg}{Allen Ginsberg e a NAMBLA}
\mydate{2015jul24}

Lewis
Carroll\footnote{\url{http://www.dailyecho.co.uk/news/5046986.Call\_to\_celebrate\_life\_of\_the\_\_real\_Alice\_/}}
era pedófilo, Monteiro Lobato era racista, a
Milfwtf\footnote{\myburl{https://milfwtf.wordpress.com/2014/06/23/sobre-pedofilia-e-a-minha-primeira-}{historia-de-horror/}}
é trans\-fóbica, portanto devemos detestar tudo que eles escreveram,
denunciá-los publicamente e organizar boicotes contra eles - e contra
as pessoas que os defendem, e depois contra as pessoas que não os
atacam.

Os argumentos pra minha
expulsão\footnote{\url{http://anggtwu.net/falta-misandria.html}} do
``Transfeminismo $<\!\!3$'' foram que eu ``relativizei transfobia'' e
``concordei com uma página transfóbica''.

No auge da demonização da pedofilia, na década de 90, o Allen Ginsberg
se filiou publicamente à
NAMBLA\footnote{\url{https://en.wikipedia.org/wiki/North\_American\_Man/Boy\_Love\_Association}}
para apoiá-la. O argumento dele era mais ou menos o seguinte. Décadas
antes todas as sexualidades e gêneros diferentes dos ``normais'' eram
vistos como perversões, crimes, aberrações. Agora que gays e lésbicas
estavam conseguindo alguma aceitação social eles estavam tentando
esconder os tipos menos ``respeitáveis'' dentre eles, como os gays
afeminados escandalosos e as lésbicas masculinas, e demonizar os
pedófilos e também, em menor grau, as feministas pró-porn e o povo de
BDSM. Os pedófilos daquele momento - década de 90 - correspondiam {\it
  exatamente} aos gays de 40 anos antes.

Esse argumento do Allen Ginsberg é de uma profundidade {\it
  assombrosa}. Como uma história Sufi, à medida que a gente pensa
nele, mesmo que só lembrando dele involuntariamente, ao longo de dias,
meses e anos, ele vai revelando mais camadas de significado, mais
elementos implícitos, mais interpretações, mais jeitos de
dividir\footnote{\url{http://anggtwu.net/zamm-13.html\#vu}} as partes
dele entre literal e performance.

Agora deixa eu contrastar o argumento do Allen Ginsberg com algo bem
comum hoje em dia. Uma pessoa X posta no Facebook que todo mundo tem
que boicotar tudo que tem a ver com o Lewis Carroll, porque ele é um
pedófilo FDP. Os amigos dela vão seguir o que ela diz e boicotar o
Lewis Carroll também, imagino - se não for isso, se os amigos dela
disserem ``lá vem aquela chata de novo'', então qual é o sentido de
propor o boicote, se a proposta vai funcionar ao contrário do que
deveria?

Qual é o {\it efeito} de um argumento ou de uma proposta - de boicote,
ou seja lá do que for? O efeito de um argumento como o do Allen
Ginsberg é fazer as pessoas pensarem sob vários pontos de vista e
discutirem com cada vez mais profundidade, tanto na fase inicial em
que metade das pessoas do grupo querem dar porrada nele e botar ele
pra fora, quanto depois. E os efeitos de propor num post de 4 linhas
um boicote ao Lewis Carroll, ou de expulsar alguém que, como eu,
estava ``relativizando transfobia'' e ``concordando com um texto
transfóbico''?







% (find-fmpage 7 "6. Heloísa")
% (fmvp        7 "6. Heloísa")

\mysection{heloisa}{Heloísa}
\mydate{2015aug27}

Poucos depois de me expulsarem do ``Transfeminismo $<\!\!3$'' eu tive
o seguinte diálogo com um conhecida, neste thread
aqui\footnote{\url{https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10204111261212312}}.

\begin{quote}
{{\bf Heloisa:} Olá. Eu sou feminista interseccional. Se você
  é machista ou anti-feminismo: vaza.

  Se você é uma mulher feminista, mas seu feminismo é
  trans-excludente, se você deslegitima identidades e subetividades
  trans binárias ou não binárias, se você deslegitima a
  bissexualidade ou se você acha que você tem \_direito\_ a ter
  banheiros só pra você ou \_espaços só entre mulheres com
  bucetas\_ - este aqui não é seu lugar. Faça um favor a
  nós duas e ponha-se para fora do meu facebook. Por que se eu vir
  publicação transfóbica, eu vou cair em cima. E daí
  você não me venha com argumentos de \_sororidade\_, porque
  isso que você chama de sororidade eu chamo de opressão e
  silenciamento.

  \begin{quote}
    {\bf Eu:} Eu sou trans mas tou aos poucos escorrendo pra fora dos
    grupos trans porque FALTA MISANDRIA NO MOVIMENTO TRANS!!! A gente
    fica batendo em TERFs só porque pega bem - porque é uma
    unanimidade óbvia que elas são nossas inimigas - e porque a gente
    tem medo de ao invés disso atacar os ômis e uns comportamentos de
    ômis que a gente às vezes têm sem perceber - como falta de tato,
    invasividade, total desrespeito pelos gatilhos dos outros -,
    porque tem muita gente trans que gosta de ômis...

    Eu passei três anos sem conseguir olhar nos olhos de ninguém, por
    sequelas de violência sexual - eu ainda tenho muitos restos de
    fobias - e nos últimos dias eu li alguns textos de RADs e TERFs
    sobre como elas tentam lidar com fobias e sequelas, tentam criar
    espaços seguros, e coisas assim, e tive a sensação de que eu me
    identifico muito mais com esses temas do que com 95\% do que eu
    vejo as pessoas trans discutindo... e tou com uma sensação muito
    forte de que eu quero encontrar algum jeito de respeitar as fobias
    delas ao invés de brigar com elas.

    Se você achar que isso é transfobia ou traição da minha parte e
    quiser me deletar, tudo bem... a gente já se viu ao vivo mas a
    gente nunca conversou, talvez você seja ômi. ${=}{\backslash}$


    {\bf Heloisa:} Eduardo, acho que é importante levar em conta que
    sua particularidade não é universal. Nenhuma particularidade é
    universal. Universalizar é excluir. Se você se se identifica com
    as estratégias de lidar com as opressões, mas também nota o quanto
    aqueles grupos são excludentes, talvez seja uma boa abertura para
    você pensar em como adaptar aquelas estratégias pra outras
    realidades. Amigue, não se iluda. As feministas radicais NÃO VÃO
    aceitar sua integração, mas você pode usar as estratégias com uma
    metodologia de consciência de oposição diferencial. Eu acho
    péssimo dar referências bibliográficas, mas não me sinto
    legitimada pra aprofundar esse debate, de forma que sugiro a
    leitura de Chela Sandoval, Methodology of the oppressed. Ela fala,
    justamente, sobre como criar pontos comuns em diferentes
    inquietações.


    {\bf Eu:} Acabei de conseguir baixar um PDF do ``Methodology of
    the Oppressed'', e tou lendo. A introdução da Angela Davis é
    ótima. Obrigado!

    Confesso que quando eu li a sua frase ``As feministas radicais NÃO
    VÃO aceitar sua integração'' a primeira coisa que eu pensei foi:
    vish, a Heloísa é uma pessoa gregária, e eu não - acho que nós
    temos noções {\it completamente} diferentes de ``pertencimento'',
    como é que eu explico qual é a minha?... Mas logo depois vi que eu
    não conseguiria explicar de improviso - então vou pôr isso na
    pilha das coisas que eu algum dia quero esclarecer...

  \end{quote}

}\end{quote}

Eu fiquei de tentar esclarecer qual é a minha noção de
``pertencimento''. Talvez um resumo curto funcione melhor do que algo
bem detalhado; lá vai.

O único ``grupo'' ao qual eu já pertenci de verdade foi o movimento
Free Software. As pessoas não costumavam se encontrar ao vivo, e isso
era {\it bom}. As discussões eram praticamente todas em mailing lists
públicas, nas quais ninguém respondia na
hora\footnote{\url{http://anggtwu.net/e/facebook.e.html\#rushkoff}} -
a gente sempre gastava algumas horas, ou um dia ou dois, pensando na
nossa resposta, e depois escrevendo-a e revisando-a, antes de
mandá-la. A nossa {\it reputação} era feita principalmente pela
qualidade do que a gente escrevia - mensagens e software - que era o
que alguém encontraria pesquisando pelo nosso nome nas ferramentas de
busca da época.

Eu - e acho que a maior parte das outras pessoas - íamos parar no
movimento do Free Software porque a gente queria aprender a programar,
e a gente queria aprender a programar porque nós queríamos virar
fodões em algo que nos era acessível, e nós eramos uns nerds
socialmente ineptos. Aos pouquinhos a gente aprendia a usar os
programas que já existiam e a fazer os nossos; aprendíamos a fazer
boas
perguntas\footnote{\url{http://www.catb.org/esr/faqs/smart-questions.html}}
e a responder as dos outros; líamos coisas que os outros recomendavam
e recomendávamos as melhores coisas que conhecíamos; {\it aprendíamos
  a criar nossas homepages e a disponibilizar nossas coisas lá} - e
neste processo passávamos de ``girinos'', que mal sabiam fazer uma
pergunta, para {\it pessoas públicas}... nós nos {\it empoderávamos},
e o que produzíamos e disponibilizávamos ajudava as próximas pessoas a
poderem aprender e se empoderar mais rápido ainda.

``Pertencer'' ao movimento Free Software queria dizer acessar o
material já produzido e produzir o nosso. O foco era {\it produção}, e
o empoderamento era consequência. Matar tempo com outras pessoas do
movimento, ir pro bar falar besteira, fazer as piadas certas, etc,
tudo isto era irrelevante.

\bigskip

``Ficar com cara de tacho na mesa do bar'' tem sido uma das minhas
expressões preferidas pra descrever o estado de mutismo, paralisia e
medo no qual eu ficava em muitas situações sociais, e do qual eu tento
sair.

Se eu leio textos de feministas radicais, produzo a partir deles, e
eles me empoderam, no sentido de que eles me ajudam a virar uma
``pessoa pública'' que fala e se posiciona ao invés de ficar muda e
paralisada, então eu estou ``pertencendo'' ao mundo das (idéias das)
feministas radicais no mesmo sentido em que ``pertencia'' ao movimento
Free Software. Nunca me ocorreu a idéia de ir tomar cerveja com as
feministas radicais ou pedir pra ser aceito nos mesmos espaços físicos
que elas...






% (find-fmpage 10   "7. Inglês")
% (fmvp        10   "7. Inglês")

\mysection{ingles}{Inglês}
\mydate{2015sep15}

Quando a gente cita um livro em Inglês é comum as pessoas
ficarem putas da vida, acharem a gente metido e dizerem que ninguém
é obrigado a saber Inglês.

``Ninguém é obrigado a saber Inglês'' é uma fórmula
curta que todo mundo entende. Ela tem pressupostos subentendidos que
são considerados ``óbvios'' - uma noção de hierarquia,
privilégios, e de ``elite'' versus ``pessoas comuns''.

Eu adoraria conseguir fórmulas curtas, {\it inteligíveis}, que
expressassem problemas meus - por exemplo: ``ninguém é obrigado a
saber conversar no bar'', ``ninguém é obrigado a saber beber
cerveja'', ``ninguém é obrigado a saber dar pinta'', ``ninguém
é obrigado a saber lidar com machistas'', ``ninguém é obrigado
a saber lidar com seu corpo e seus desejos'', ``ninguém é obrigado
a ter vida afetiva/sexual'', etc.

Ler muito, aprender Inglês, treinar até saber escrever bem, etc,
são coisas que não dependem só de oportunidades e estrutura
familiar - dependem de um {\it investimento de energia} enorme que faz
muito mais sentido quando as coisas de pessoas ``normais'', como brincar
na rua quando a gente é criança e namorar quando a gente é
mais velho, nos são muito difíceis.

% (Inspirado por um comentário do Thiago
% Coacci\footnote{\url{https://www.facebook.com/coacci?fref=ufi}} neste
% thread\footnote{\url{https://www.facebook.com/groups/judithbutler/permalink/428521790681285/}}.
% Continua - quero citar
% isto\footnote{\url{http://anggtwu.net/omnisys.html\#proletarizacao}}.)





% (find-fmpage 11 "8. Reinventar a roda")
% (fmvp        11 "8. Reinventar a roda")

\mysection{grupo-sobre-denuncias}{Reinventar a roda}
\mydate{2015oct18}

Um conhecido que dá aula numa universidade do Nordeste pediu pra
conversar comigo por chat sobre a situação onde ele trabalha - que é
parecida com a que me motivou a escrever o ``Saia do seu
quadradinho''\footnote{\url{http://anggtwu.net/quadradinho.html}} - e
nós conversamos uma hora ou duas. Tem várias coisas absurdas
acontecendo lá, e quem tenta denunciá-las sofre retaliações. Além
disso, praticamente todo mundo ridiculariza quem tenta fazer algo,
dizendo ``não vai dar em nada''. Esse meu conhecido contou que estava
pensando em criar um grupo na internet pra discutir como as pessoas
podem denunciar coisas de modos mais eficazes e com mais segurança, e
quando ele contou isso eu automaticamente me imaginei no lugar de uma
pessoa convidada pra fazer parte do grupo, que se pergunta: ``será que
eu quero fazer parte disso? Será que eu quero investir tempo e energia
nesse grupo?''... e eu me vi respondendo ``{\it não}'', e o grande
motivo era a sensação de que as pessoas do grupo estavam tentando
reinventar a roda, redescobrindo tudo sozinhas, ao invés de lerem e
compartilharem uma quantidade colossal de textos de ativistas que
estão disponíveis por aí...




% (find-fmpage 11 "9. ``Aqui se pensa bem''")
% (fmvp        11 "9. ``Aqui se pensa bem''")

\mysection{aqui-se-pensa-bem}{``Aqui se pensa bem''}
\mydate{2015oct18}

Às vezes a gente se engaja numa causa social que não é a nossa porque
a gente quer salvar o mundo um pouquinho - e porque a gente está de
saco cheio de estar cercado de injustiças e não poder sequer pensar
sobre elas sem ser ridicularizado e as pessoas dizerem ``não adianta
nada''. Às vezes a gente escolhe uma causa porque ela é a mais
gritante e mais urgente, e algo fez com que ela virasse notícia nos
últimos dias. Mas eu tenho a sensação de que o que mais faz com que a
gente permaneça numa causa e num grupo é a sensação de que ``aqui se
pensa {\it bem}'': ``aqui eu consigo ferramentas pra nunca mais viver
cercado de gente que me ridiculariza e me manda parar de pensar''. Ou
seja, a gente se liga a uma causa meio porque a causa é importante em
si, e meio porque a gente cresce, e ``se empodera'', se envolvendo com
ela.






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%                 |_|          
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% «Corpo» (to ".Corpo")
\separatorpagesimple{Corpo}
% \input falta-misandria-corpo.tex
% (find-LATEX "falta-misandria-corpo.tex")

% (find-fmpage 12 "Corpo")
% (fmvp        12 "Corpo")
% (find-fmpage 13 "10. Aspecto físico")
% (fmvp        13 "10. Aspecto físico")

\mysection{aspecto-fisico}{Aspecto físico}
\mydate{2015jul20}

Eu tou em tratamento hormonal há 9 meses. Meu corpo tá mudando, e meu
cabelo também, mas ainda não mudaram o suficiente.

Às vezes alguma pessoa ``muito trans'' reclama de mim porque me acha
``pouco trans'' - porque eu ainda não visto roupas femininas nem
maquiagem, nem peço pra me tratarem no feminino, e daí não sofro
discriminação nem transfobia.

Eu ficava me perguntando o que é ``ser mulher'' pra essas pessoas
``muito trans'' que me estranham... mas agora acho que hoje em dia
tenho perguntas bem melhores do que ``o que é ser mulher pra você?'' -
tipo: ``quando é que você viu que continuar a ser, ou parecer, cis,
era insuportável? Era insuportável porquê, de que jeito?...''

Eu andei escrevendo sobre os meus motivos pra
transicionar\footnote{\url{http://anggtwu.net/s-c-r.html}}. O aspecto
físico era algo secundário pra mim, o central era eu poder sinalizar
que eu tinha tentado fazer algum tipo de ``papel de homem'' durante
décadas, de muitos jeitos, e sempre tinha dado muito errado, e agora
foda-se tudo, esse negócio de ``homem'' é uma farsa que eu não aguento
mais.

O central pra mim é que eu funciono de um jeito completamente
diferente do ``lavou, tá novo''.

Quanto ao aspecto físico - as mudanças - pôxa, deixa eu lidar com isso
com mais tempo. Eu passei a minha vida ``de homem'' mal conseguindo me
olhar no espelho, e aproveitando que eu podia ser bem largado. Por
enquanto ainda é prático eu ficar mais ou menos invisível.



% (find-fmpage 13 "11. E aí, comeu?")
% (fmvp        13 "11. E aí, comeu?")

\mysection{e-ai-comeu}{E aí, comeu?}
\mydate{2015jul27}

Às vezes eu tentava contar sobre alguém por quem eu tinha ficado
encantado, e conversado durante horas sobre coisas quase
inimagináveis, pra amigos meus que só ficavam perguntando: ``e
aí, comeu''?

Tem assuntos que impedem outros. A obsessão das pessoas por sexo fez
com que eu tivesse que procurar os nichos - raríssimos - onde estavam
as pessoas que, como eu, tinham carências emocionais muito maiores do
que as carências sexuais. Nesses nichos a gente conversava sobre
pessoas e relacionamentos, quase nunca sobre sexo.

Em julho/2015 uma amiga-de-amigos fez um
post\footnote{\url{https://www.facebook.com/sweetestacidgil/posts/1152200968130012}}
no Facebook que eu achei corajosíssimo, falando de como a coisa que
ela mais queria é ter uma vida afetiva normal, e como isso acaba sendo
difícil para pessoas trans. Eu pedi correndo pra virar amig dela, e
contei que eu tou há meses escrevendo sobre outras coisas mas tentando
chegar exatamente aí... só que era como se o termo ''vida afetiva''
fosse algo tão absurdo de mencionar, tão ininteligível, que eu tivesse
que preparar o caminho falando de centenas de outras coisas antes.

Outras pessoas trans que eu conheço têm postado no Facebook sobre
cantadas absurdas que elas levam tanto ``no mundo real'' quanto
online, e os foras que elas dão nos caras, e as grosserias que elas
recebem de volta.

Fiquei pensando sobre como a gente {\it constrói relacionamentos}.
Muita gente que eu conheço começa por tesão e sexo, e daí {\it
  algumas} relações com alguém com quem transar era ótimo depois viram
algo mais duradouro e mais profundo.

Durante décadas eu tentei conversar como a minha mãe sobre como eu
tentava sinalizar certas coisas claramente pra poder encontrar pessoas
compatíveis comigo e a gente começar relações com as bases certas. Ela
não entendia - ela achava que eu estava complicando tudo, que relações
aconteciam naturalmente, era só a gente deixar acontecer sem
racionalizar demais. Aí, tentando ver isso como um conselho, eu
tentava não pensar, e apagar os traços do que eu já tinha pensado de
um jeito parecido com apagar os ``pensamentos de viado'' pra nunca nem
lembrar que eu já tinha pensado eles.

Hoje em dia eu acho que quase todas as relações que acontecem
``naturalmente'' vão ter uma bagagem enorme de padrões sociais - a
gente vai ser assombrado pelos padrões de sexo e beleza que a gente vê
nas revistas, filmes e TV, e a gente vai ter que lidar com família e
amigos dizendo que a gente deveria estar com uma pessoa diferente e do
jeito e tal e tal - e a gente não vai ter ferramentas suficientes pra
lidar com tudo isso.

Dxô contar uma coisa. Alguns dos meus relacionamentos que me deixaram
as lembranças mais preciosas, e que foram com pessoas das quais eu sou
muito amigo até hoje, foram sem ou praticamente sem sexo; dois desses
foram com pessoas que tinham com seus próprios corpos uma relação mais
ou menos tão difícil quanto a que eu tinha com o meu. Cada um de nós
era um ``porto seguro'' um pro outro; nós começamos esses
relacionamentos frágeis e arrebentados, e nos reconstruímos juntos.

É praticamente impossível falar sobre esses relacionamentos no
Facebook.



% (find-fmpage 15 "12. Blindagem emocional")
% (fmvp        15 "12. Blindagem emocional")

\mysection{blindagem}{Blindagem emocional}
\mydate{2015aug02}

Outro dia uma amiga postou este
texto\footnote{\myburl{https://negrasolidao.wordpress.com/2015/07/18/e-preciso-ter-coragem-de-}{estar-sozinha/}},
que tem um termo que eu vou passar a usar: {\it blindagem emocional}.
A blindagem emocional é um elemento importante da {\it cultura da
  galinhagem} na qual a gente vive - nela uma das coisas que dá mais
pontos de valor na hierarquia social é a sua {\it capacidade de
  galinhar}, isto é, de pegar alguém (e alguém socialmente aceitável!)
rápido, e de nunca ficar solteiro e sem sexo durante muito tempo. A
sua capacidade de galinhar mostra pra todo mundo que você é uma pessoa
livre, feliz, bem-sucedida, desejável, empreendedora, comunicativa,
bem resolvida, etc. É claro que o jeito como se cobra capacidade de
galinhar das mulheres é muito mais complicado e cheio de armadilhas
que pros homens... qualquer pequeno deslize e elas viram - ta-rááá! -
``galinhas''.

Só que não é sobre isso que eu quero falar. Os ``double standards'' da
cultura da galinhagem pras mulheres já forma discutidos à beça por aí.

Outros elementos que são básicos pra blindagem emocional e pra
galinhagem são {\it descartabilidade} e {\it intercambiabilidade}. Se
um namorado, ou ficante, ou conhecido, ou amigo, diz ou faz uma
besteira grande a gente se fecha pra ele - ``a fila anda''! - e daqui
a pouco a gente põe no lugar uma outra pessoa do ``tipo'' que a gente
gosta.




% (find-fmpage 15 "13. Amigos junkies")
% (fmvp        15 "13. Amigos junkies")

\mysection{junkies}{Amigos junkies}
\mydate{2015aug13}

Quando eu tinha 12 anos o Carlos apareceu na minha turma. Não lembro
se ele só não se dava bem com o outro colégio ou se ele tinha sido
expulso mesmo.

O Carlos era mais esquisito que eu e lia tanto ou mais do que eu, mas
ele não era nada tímido. Nós viramos melhores amigos. Ele levou um ano
pra me convencer a experimentar maconha... mas, bom, o que eu queria
era falar dos meus amigos - os ``junkies'' - que eu conheci através do
Carlos.

A gente não queria ser hipócrita como a sociedade em torno de nós. A
gente queria encontrar jeitos de ter menos máscaras e menos segredos -
mas não era nada fácil. O trabalho era em várias direções: a gente só
se tornava capaz de lidar mais abertamente com os nossos proprios
segredos à medida que a gente ajudava as outras pessoas com os
``segredos'' delas.

Esse grupo dos adolescentes junkies-cabeça me marcou por ter sido o
primeiro grupo em que eu estive no qual as pessoas eram {\it muito}
éticas - e essa ética estava sempre em discussão, e em construção.

Algumas questões que volta e meia reapareciam nas nossas discussões me
marcaram muito, também. Tipo: e se a gente se apaixonar por uma pessoa
socialmente mal vista, que a nossa família e os nossos amigos e
conhecidos rejeitam? E: será que a gente já consegue se fascinar pelas
pessoas principalmente pelo que elas são por dentro, ou a gente ainda
é dominado pelos padrões sociais de beleza? Como podemos não nos
fechar pra pessoas incríveis? {\it E se a gente se apaixonar por um
  amigo do mesmo sexo?}

Eu tou usando o termo ``se apaixonar'', mas a gente ficava imaginando
que relações amorosas só valiam a pena se fossem mais do que o que a
gente tinha pelos nossos melhores amigos. Relações como as das pessoas
que começam a namorar, viram umas patetas e se afastam dos amigos não
nos interessavam - aliás, a gente achava que havia algo de muito
errado com elas.

Depois eu caí em grupos que funcionavam ao contrário dos meus amigos
adolescentes-junkies-cabeça - grupos nos quais era ridículo você se
expôr emocionalmente ou você se apegar à pessoa com quem você está
ficando ou namorando.




% (find-fmpage 16 "14. Expectativa e rejeição")
% (fmvp        16 "14. Expectativa e rejeição")

\mysection{expectativa-e-rejeicao}{Expectativa e rejeição}
\mydate{2015aug18}

Eu não entendo mais como as pessoas falam sobre sexo - qdz, como se
fosse algo físico.

{\it Expectativa} e {\it rejeição} são temas muito maiores, e
o assunto ``sexo'' impede que se fale deles.

Quando eu me aproximo de alguém eu tenho expectativas enormes, que
eu tento esconder porque me disseram que expectativas assustam as
pessoas. Tento dar o melhor de mim pra ter mais chance de no ser
rejeitado; e lido com o medo de ser rejeitado {\it agora}, e com as
memórias das rejeições passadas.





% (find-fmpage 16 "15. Lidar com impulsos")
% (fmvp        16 "15. Lidar com impulsos")

\mysection{impulsos}{Lidar com impulsos}
\mydate{2015aug21}

A lição mais importante que eu aprendi na minha adolescência é que
toda vez que eu me interessasse fisicamente por uma pessoa eu ganharia
um ``não''.

Às vezes as pessoas tentam descobrir se eu sou gay/hetero/etc me
fazendo uma pergunta que pra mim é bizarra: ``por quem você sente
atração?'' Pôxa, qual é a relevância de por quem a gente sente atração
quando a distância entre a gente sentir atração e a gente fazer algo é
praticamente infinita?

Quando eu era adolescente e me percebia tendo fantasias com os meus
melhores amigos isso gerava um segredo, e constrangimento, e medo - e
aí eu tinha que procurar jeitos de conversar sobre isso tudo com esses
amigos... porque afinal a graça de ter melhores amigos era a gente ser
o mais transparente possível com eles, e a gente volta e meia tentar
conversar sobre coisas sobre as quais a gente não fazia idéia de como
conversar...

\bigskip

Será que eu era um monstro por ter atração por amigos? Será que eu era
alguém que talvez devesse até ser deletado, afastado e denunciado? Ou
será que outros amigos sentiam coisas parecidas também? Como eles
lidavam com isso pra que não fosse tão grave?

Tesão por {\it garotas} acabava sendo algo completamente diferente.
Havia uma pressão social enorme pra que transformássemos os nossos
{\it impulsos}, mesmo os menores, em {\it ação}, e os ``experts'' -
estávamos cercados por eles em todo lugar - ficavam nos bombardeando
incessantemente com dicas que eram sempre formulinhas de como fazer a
pose certa e mandar a mentira certa.

Pra quem que, como eu, queria acima de tudo uma existência menos
bruta, menos burra e menos hipócrita, lidar com a atração por amigos -
longe das formulinhas e regrinhas! - acabava sendo algo bem mais
promissor que tesões heteros.

\bigskip

Um modo bem útil de classificar as pessoas - e repara, gays procuram
outros gays pra namorar, homens heteros procuram mulheres, etc; é
natural ``classificar'' as pessoas um pouquinho quando a gente está
procurando alguém que se encaixe na gente - é a partir de como elas
lidam com seus impulsos, e com o {\it agora} e o {\it depois}.

Tem um vídeo bem interessante (link
aqui\footnote{\url{http://www.youtube.com/watch?v=DeOIYcIqPOQ}}), de
uma vlogueira que eu geralmente acho sexocêntrica demais, no qual ela
fala de como as pessoas que eram esquisitas quando adolescentes ficam
diferentes quando adultas das pessoas que eram ``normais'',
''bonitas'' e ``desejáveis''; e ela termina o vídeo com vários relatos
que ela ouviu de casos em que as pessoas que ``sempre foram bonitas''
acabam sendo preteridas em entrevistas de emprego porque supõem que
elas sejam meio burras, ou que vão distrair os colegas, criar
situações sexuais no trabalho, etc. Eu assisti esse vídeo pensando em
como cada pessoa lida com seus impulsos; nas minhas fantasias as
pessoas que ``sempre foram bonitas e desejáveis'' têm um modo bem mais
direto que as outras de lidar com os seus impulsos - pra elas
interesse e atração facilmente viram dar em cima, cantadas, sexo.

Já pras pessoas {\it muito esquisitas}, como eu, se eu conseguisse que
os meus impulsos e desejos não fossem sentidos como inconvenientes, a
minha vida já ficariam mil vezes melhor... em poucas palavras: se a
minha atração por pessoas fosse vista como {\it elogio}, e nunca como
{\it cantada}.

\bigskip

Outro ponto importante é que eu {\it não queria sexo}.

Na verdade isso é o melhor resumo em poucas palavras que eu tinha para
algo bem mais complicado.

Quando eu andava com os junkies a gente se preparava - ao longo de
anos! - pra experimentar coisas incrivelmente fortes, como Ayahuasca e
LSD, que a gente sabia que tinha gente que quando tomava não conseguia
dar conta da experiência, pirava e nunca mais voltava direito.

A gente sabia que {\it quase} tudo que a gente veria numa experiência
com psicodélicos já estava na nossa cabeça de alguma forma... tem
muita coisa que a gente esconde da gente mesmo, e a gente podia se
deparar com algumas coisas destas - talvez distorcidas! - e a gente ia
ter que passar os meses seguintes lidando com o que a gente viu.

Além disso, não fazia sentido a gente fazer merda - com os outros ou
com a gente mesmo - e depois dizer ``ah, desculpa, eu tava doidão!
Hahaha!''... a gente se preparava pra agir do modo mais reponsável e
consequente possível, mesmo que só 10\% da nossa cabeça estivesse
funcionando de um modo familiar e confiável.

Essa relação que a gente tinha com drogas fortes virou a minha
referência pra como eu deveria lidar com sexo. Sexo tinha o poder de
mexer com tantas coisas minhas enormes, como expectativas, rejeições e
medos, além das memórias que ficam como que guardadas nas tensões
corporais, que só fazia sentido fazer com pessoas que soubessem que
estavam fazendo algo que podia ser muito grande - as pessoas
``normais'', pras quais sexo é ``bom'', ``natural'', ``simples'',
``acontece'', eram pessoas que eu tinha que evitar a todo custo.

Acho que o único modo que eu tenho pra definir as pessoas que ``são o
meu tipo'' é falando de modos de lidar com atração, desejo,
impulsos... eu sei que eu preciso de pessoas que, como eu, quando
sentem tesão por alguém simplesmente deixam passar -




% (find-fmpage 18 "16. Consensual")
% (fmvp        18 "16. Consensual")

\mysection{consensual}{Consensual}
\mydate{2015oct02}

Eu li este post
aqui\footnote{\url{https://www.facebook.com/malenamordekai/posts/10204025786280036}},
%
\begin{quote}
  ``Sexo consensual'' é só sexo. Usar este termo dá a entender que
  existe algo como ``sexo não-consensual'', o que não existe. Isso é
  estupro. É o que isso precisa ser chamado. Só existe sexo ou
  estupro. Não ensine às pessoas que estupro é só outro tipo de sexo.
  São dois eventos estritamente diferentes. Você não diz ``nadando
  respirando'' e ``nadando sem respirar'', você diz nadando e
  afogando.
\end{quote}
%
e pensei: essa não é a divisão que importa pra mim - PRA MIM.

Às vezes uma pessoa engana a outra. Ela finge que é confiável e que
entende bem as questões da outra, inclusive entende como sexo funciona
pra essa outra - e pra essa outra sexo é uma coisa enorme, cheia de
consequências, exatamente como tomar drogas muito fortes ou fazer
piercings complicados, e que só faz sentido numa relação de confiança,
com comprometimento, responsabilidade, etc -

Aí essa pessoa come a outra e depois desaparece, banaliza e distorce o
que aconteceu, e passa a ser escrota e a sacanear a outra de todos os
jeitos possíveis.

Houve consentimento na hora? Sim. Mas os efeitos podem ser {\it bem}
graves - {\it aconteceu comigo}.

A sensação que me dá quando eu leio algo tipo esse ``só existe sexo ou
estupro'' é que isso é o discurso de um mundo com ênfase demais no
aqui e agora, e no qual as pessoas são 100\% capazes de entender a
linguagem verbal e corporal dos outros rápido.

A divisão que importa pra mim - repito: PRA MIM - é entre
``inconsequente'' e ``atento, reponsável, consequente''. Só que eu nem
me atrevo a falar sobre isso, acaba que toda vez que eu tento falar ou
escrever sobre isso todas as palavras e expressões que me ocorrem
trazem a sensação de que não vão me entender, ou vão me entender
errado e até me sacanear, e eu engasgo, entalo.

Aí eu li este outro
post\footnote{\url{https://www.facebook.com/mgsaldanha/posts/977069769020948?fref=nf}}
- de alguém que conseguiu falar sobre essas coisas sem engasgar no
meio:

\begin{quote}
  Tenho preguiça de cantada. Tenho preguiça de pegação. Tenho preguiça
  de suruba. Tenho preguiça de gente que quer me comer sem ter a menor
  curiosidade quanto ao ser humano que eu sou. Tenho preguiça de
  Tinder. De Happn. De sexo casual. De sexo virtual. De beijo sem
  contexto. De joguinhos. De aproximação blasé. De ter que fingir que
  não estou tão interessada. Tenho preguiça de homem que não é super
  atento ao prazer feminino. De quem é cheio de frescuras e exigências
  com o corpo. De homem que diz ``vamos nos falando''. Tenho preguiça
  de gente que não gosta de compromisso. De quem confunde compromisso
  com propriedade. Tenho preguiça de poliamor. Tenho preguiça de ``não
  estou sabendo lidar com isso''. De quem não sabe dizer ``não''. De
  quem fica se autoafirmando sexualmente. De quem não tem coragem de
  se deixar emocionar. De quem tem discurso libertário e não ousa
  viver o que diz. De quem acha que é muito longe pra gente ir. De
  quem acha que estamos indo muito rápido. De quem não liga pra
  lealdade. De quem não consegue ver o sagrado do outro. De quem não
  entende o quanto eu sou grata ao feminismo por todas essas
  preguiças. De quem tem medo de que eu fique sozinha, já que aprendi
  a estar comigo. De quem caiu no conto do esvaziamento das relações,
  de quem chama tudo isso de liberdade, de quem não faz questão de ser
  resistência afetiva no mundo.
\end{quote}

{\it ``De fingir que não estou interessada.''} Eu me interesso por
pessoas sim, até com frequência, mas às vezes eu acho que não tem mais
jeito de uma pessoa me fazer sentir que ela é confiável. Nem se ela
jurar por escrito, com sangue, quatro vezes, uma em cada fase da lua
diferente. Nem se ela der mil provas diferentes de integridade e
sensibilidade. {\it Talvez} eu consiga confiar, e aí me abrir de novo,
com alguém que tenha tantas cicatrizes quanto eu de lutar contra essa
merda desse Rio de Janeiro, em que a inconsequência, o ``lavou, tá
novo'' e o ``sexo é bom e gostoso e natural e etc'' são tão
hegemônicos.




% (find-fmpage 20 "17. Desculpas")
% (fmvp        20 "17. Desculpas")

\mysection{desculpas}{Desculpas}
\mydate{2015oct14}

Há umas semanas atrás uma amiga minha - que fala sem parar, e que é a
pessoa mais masculina com que eu convivo com frequência - chegou na
minha casa num ataque de ódio, porque um amigo-de-Facebook e crush
dela com quem ela andava conversando horas toda noite só falou com ela
um pouquinho na noite anterior, e de manhã ele reapareceu, veio falar
com ela, {\it e se desculpou}.

Ela contava o que tinha acontecido, e a toda hora ela repetia: ``ele
não {\it precisava} se desculpar'' -

Eu tentei conversar com ela. Tentei falar que o que ela estava dizendo
era estranho, que tem diferenças importantes entre ``precisar'',
``poder'' e ``querer'', e tentei explicar as consequências da gente
proibir as pessoas em torno da gente de se desculparem porque a gente
vê {\it insegurança} como {\it culpa}. Ela ou não entendeu ou não
ouviu - ela fala muito e ouve pouco - e depois de, sei lá, meia hora
ou uma hora, eu explodi, disse que eu não queria ser cúmplice daquilo,
e que ela não {\it precisava} contar aquilo pra mim, e que eu não {\it
  precisava} ouvir aquilo. Ela ficou meio pasma, mas viu que era
sério, pegou as coisas dela e foi embora.

A minha raiva levou horas pra passar, e no processo de lidar com ela
eu entendi um montão de coisas. Primeiro (e essa eu já sabia), que eu
já fui vítima de uma situação assim - no relacionamento mais
importante que eu já tive a pessoa, que no início lidava super bem com
vulnerabilidade e insegurança, virou uma outra pessoa, que
interpretava qualquer dúvida minha como sinal de que eu estava
escondendo algo grave - e eu tenho fobias enormes de cair de novo numa
situação dessas. Segundo, que as pessoas em torno de mim lidam com se
desculpar de jeitos {\it muito} diferentes, e tem até
algumas\footnote{\url{http://anggtwu.net/desnevizacao.html}} que não
se desculpam de jeito nenhum, porque consideram que se desculpar é
coisa de gente inferior. E terceiro, e mais importante, que é que
muitas vezes eu emperro com pessoas que eu gosto {\it porque eu queria
  me desculpar com elas} - por exemplo, por não ter respondido à
altura algum gesto simpático delas, ou por eu ter sumido um tempão -
mas eu fico com medo delas se incomodarem com desculpas...

No mundo dos ômis quem manifesta insegurança leva porrada.

\bigskip

Um problema que eu tenho com cariocas é que toda vez que eu concateno
cinco pensamentos em sequência eles dizem ``ih, o cara, aí, não
complica, relaxa'', e eu fico imaginando que muita gente faz algo
parecido com quem se desculpa, que se as minhas desculpas têm mais de
duas frases e não são dadas com o sorriso casual certo eu vou então eu
vou receber uma espécie de ``ih, o cara, aí, não complica, relaxa''...




% (find-fmpage 21 "18. Coração")
% (fmvp        21 "18. Coração")

\mysection{coracao}{Coração}
\mydate{2015oct18}

Há uns dois anos atrás eu comecei a escrever fragmentos pra um texto
grande sobre como eu acabei lidando com sexo e gênero; ele ia se
chamar ``sexofóbico como resposta'', e eu escrevi à beça mas não
consegui chegar nem perto de terminá-lo... a idéia principal à qual eu
queria chegar sempre pedia mais e mais seções preparatórias, e o
trabalho começou a parecer infinito.

A obsessão atual com sexo, corpo e partes do corpo, me incomoda, mas
eu vi que algumas das coisas mais importantes que essa obsessão nos
impede de ver, pensar sobre e discutir, {\it podem ser localizadas em
  partes do corpo.}

Eu pretendia citar trechos de livros do Peter Brook - talvez sejam
todos do ``Ponto de Mutação'' - nos quais ele conta de duas viagens da
companhia dele na década de 1970, uma pelo interior da África, outra
pelo Afeganistão. Na viagem pela África eles se apresentavam em
aldeias minúsculas, nas quais muitas vezes ninguém falava Inglês ou
Francês, se apresentando sobre um tapete grande, com pouquíssimos
adereços ou objetos de cena. Na viagem pelo Afeganistão eles estavam
tentando preparar o terreno pra filmar o ``Meetings with Remarkable
Men''.

O que é preciso pra estabelecer boas relações com pessoas em países
distantes, com línguas e costumes muito diferentes? Por ``boas
relações'' eu entendo relações de atenção e gentileza, nem predatórias
e nem egoístas... as idéias-chave da resposta são ``ser {\it
  verdadeiro}'' e ``{\it coração aberto}'', que são coisas que eu não
consigo nem mencionar em público sem muita, muita preparação.






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% «Nismos» (to ".Nismos")
\separatorpagesimple{Nismos}
% (find-fmpage 23 "Nismos")
% (fmvp        23 "Nismos")
% (find-fmpage 24 "19. Sororidade")
% (fmvp        24 "19. Sororidade")

\mysection{sororidade}{Sororidade}
\mydate{2015aug02}

Tem definições que são importantes não em si, mas pelo uso que se fará
da definição que for escolhida como ``certa''. As trans e as
feministas ficam brigando, muito, pela definição de ``mulher'', que,
pelo que eu entendo, determina:
%
\begin{itemize}
\item Quem a gente vai considerar ``uma de nós''
\item Quem a gente vai considerar oprimida e não opressor
\item Quem a gente vai considerar digna de cuidado mesmo que esteja agressiva e surtando
\item Quem a gente vai considerar bem-vinda nos nossos grupos
\end{itemize}

O que acaba sendo resumido - porque as pessoas precisam de expressões
curtas - em:
%
\begin{itemize}
\item Quem a gente vai considerar digna de sororidade.
\end{itemize}

A briga sobre uso de banheiros - as trans devem poder usar banheiros
femininos, que são espaços seguros, ou têm que usar os banheiros
masculinos, onde os ômis acham divertido bater e estuprar quem
quiserem? - tem ficado bem visível, e ela em geral é traduzida numa
outra questão: {\it quem é mulher?}

Confesso que eu acho que responder ``quem pode usar o banheiro
feminino'' com ``quem é mulher, ué!'' me parece um tiro no pé - e acho
que se a gente pensa em termos de {\it espaços seguros} e {\it
  comportamentos esperados (pra manter aquele espaço seguro)} tudo
fica bem mais claro.







% (find-fmpage 24 "20. Limites da sororidade")
% (fmvp        24 "20. Limites da sororidade")

\mysection{limites-da-sororidade}{Limites da sororidade}
\mydate{2015oct18}

Num grupo feminista do qual eu participo - ao vivo! - às vezes, teve
um dia em que um dos assuntos principais foi uma garota que tinha ido
como convidada umas semanas antes, ficou a reunião inteira calada
observando, e depois pegou posts, que deveriam ser privados, da
``versão Facebook'' do grupo, e fez posts públicos ridicularizando-os.
Tava todo mundo P* da vida com ela, e ninguém fez nenhuma fala
consistente defendendo essa garota e dizendo que coitada, ela foi
enganada pelo patriarcado, devemos salvá-la e perdoá-la 100\%.

Deixa eu comparar isso com o que acontece em grupos trans. Um tema
recorrente neles é: as mulheres trans têm que poder usar os banheiros
femininos, mas umas mulheres cis ficam dizendo que claro que não, é
absurdo deixar esses homens vestidos de mulher entrarem nos nossos
banheiros, eles querem nos espiar e nos estuprar...

...aí as trans dizem: ``esse medo é ridículo, é transfobia'',
ignorando que os lésbicos barbados desconstruindo gênero da
p.\pageref{lesbicos} são ``trans'', ignorando que pra algumas radicais
até um olhar masculino inconveniente é ``estupro'', e estendendo a
``sororidade trans'' pra casos demais.

% Pras feministas mais radicais até uma cantada de rua é estupro.



% (find-fmpage 25 "21. Homens podem ser feministas?")
% (fmvp        25 "21. Homens podem ser feministas?")

\mysection{homens-podem-ser-feministas}{Homens podem ser feministas?}
\mydate{2015sep03}

Uma pergunta recorrente em grupos feministas é: ``homens podem ser
feministas?''... É engraçado como muita gente tenta respondê-la como
se ela fosse uma pergunta de sim ou não, ao invés de vê-la como uma
pergunta-provocação que leva a discussões bem ricas e que só se {\it
  disfarça} de pergunta de sim ou não.

Tem muita coisa que a gente só consegue contar pra pessoas com
vivências parecidas com as nossas, em situações nas quais a gente vai
ser escutado, e em ambientes seguros. Pra mim um ambiente com babacas
como o cara da seção \ref{dividir}, que acham ridículo {\it não
  sacanear} os outros, é exatamente o oposto de um ambiente seguro.

Outro dia, num chat com uma amiga, eu propus que das próximas vezes
ela tentasse descrever com mais detalhes os casos que ela conhece de
homens que querem ``ser feministas''. Eu consigo imaginar alguns - por
exemplo, o cara que quer ser reconhecido como ``feminista'' pra isso
ser um selo de aprovação, um crachá que permita a ele circular por
certos ambientes e ser considerado ``seguro'' e ''legal''... mas será
que ele vai saber se retirar de espaços que deveriam ser só pra
pessoas com certas vivências muito dolorosas e muito diferentes das
dele?



% (find-fmpage 25 "22. Ônibus")
% (fmvp        25 "22. Ônibus")

\mysection{onibus}{Ônibus}
\mydate{2015oct18}

Achei que este
texto\footnote{\url{https://www.facebook.com/codpie/posts/10207875283139105}},
postado há poucos dias atrás, poderia ter gerado discussões
interessantíssimas - {\it se a autora tivesse escrito o final dele com
  mil vezes mais cuidado e lucidez}... ela conta de um dia em que ela
estava num ônibus, subiu uma senhora vendendo trufas, e aí o cara
sentado do lado dela comprou várias e deu uma pra ela, de um jeito tão
simpático e sem esperar nada em troca que ela não teve como não
aceitar, e passou o dia feliz. Bom, eu devo ter lido o texto aplicando
mais o ``Principle of
Charity\footnote{\url{http://philosophy.lander.edu/oriental/charity.html}}''
do que a maioria das outras pessoas, porque achei que ele podia, e
devia, ter gerado uma discussão bem interessante...

É simplista achar que todos os homens são opressores do mesmo jeito e
no mesmo grau, que todos os homens se beneficiam do machismo do mesmo
jeito e no mesmo grau, que todos os gestos de gentileza masculinos são
igualmente perigosos e carregam exatamente as mesmas segundas
intenções por trás; e, bom, já que existem homens que compactuam mais
com o machismo e outros que compactuam menos, deve ser possível pelo
menos {\it imaginar} homens que combatem o machismo e conversar sobre
como eles, aham, ``seriam''; e, dentre eles, uns vão ser mais ingênuos
e outros menos... e, caramba, eu tenho {\it certeza} de que os homens
não-ingênuos que estão tentando combater o machismo fazem o possível
pra manter o coração aberto (seção \ref{coracao}) e pra serem
transparentes e verdadeiros sempre que dá, e que eles são atentos aos
efeitos de pequenos gestos e atitudes... e imagino que eles às vezes
se arrisquem a ser gentis com mulheres cis héteros, que é algo que eu
em geral não me atrevo a fazer porque eu fico em pânico só de pensar
que podem achar que eu tou cantando alguém.






% (find-fmpage 26 "23. Crédito")
% (fmvp        26 "23. Crédito")

\mysection{credito}{Crédito}
\mydate{2015nov08}

Meu pai era sobrevivente de campo de concentração.

Deixa eu copiar aqui um trecho do
discurso\footnote{\url{http://anggtwu.net/haz.html}} que eu preparei
pra cerimônia de homenagem feita 30 dias depois da morte dele.

  \begin{quote}
  O meu pai dizia que o Holocausto era tão pior do que qualquer outra
  coisa que perto dele qualquer outra atrocidade, passada, presente ou
  futura, perdia a importância. E isso era muito opressor, porque
  queria dizer que o mundo tinha uma dívida infinita com ele - ele
  podia fazer qualquer coisa, podia explodir a qualquer hora, pra
  descarregar coisas que aliás ele nem entendia, e ele seria sempre
  desculpado. E isso fazia todo o sentido, mas era insuportável.

  Eu levei 30 anos pra conseguir lidar abertamente com isso - e foi da
  seguinte forma: ``ele tinha um crédito gigantesco por ter passado
  pelo que passou. Mas esse crédito não é infinito, e agora, depois de
  décadas, ele acabou''. E esse corte era algo bem mais pesado do que
  parece - era algo inadmissível, pra todo mundo. Eu me dispunha a ser
  considerado um monstro, por ele, pela minha família, pelos amigos
  dele, talvez até pelos meus amigos - a gente não se recusa a pagar a
  nossa dívida com a família - a dívida de cuidar de quem cuidava da
  gente - impunemente. Então eu não pediria mais ajuda a nenhuma
  dessas pessoas.

  Então essa foi uma das situações na minha vida nas quais eu decidi
  sacrificar a minha respeitabilidade, todo um grupo grande de
  contatos, toda uma rede social - a rede de proteção que a gente tem
  por default quando nasce numa certa classe, com um ou dois dos
  nossos pais sendo judeus -
  \end{quote}

Eu ia terminar o discurso olhando nos olhos de todo mundo da platéia e
dizendo que agora a gente já tem boas condições pra pensar sobre as
atrocidades passadas e as atuais; sobre como fica quem sobrevive a
elas; sobre {\it reação histérica a atrocidades}; sobre tentar
esconder memórias dolorosas embaixo do tapete pra gente conseguir
fazer cara de que está tudo bem; e {\it sobre o que a gente pode fazer
  pra não ser detestado} - mas eu acabei boicotando a cerimônia e não
indo nela.

\medskip

O meu pai ``podia'' ser grosso, estúpido e paranóico sempre que
quisesse - mas, repara, esse ``podia'' tem vários níveis e vários
sentidos possíveis - ``vão cuidar dele como de alguém querido que está
em desespero'', ``as pessoas vão entendê-lo'', ``as pessoas vão
ajudá-lo'', ``ninguém vai ficar magoado com ele ou constrangido pelo
que ele fizer''... ou então: ``não vai ser demitido do emprego'',
``vai ter atenuantes se criar uma briga e for parar na polícia''...
ou: ``não vai levar reprimendas em público'', ``vai ser tolerado'', e
``os amigos vão se afastar em silêncio''.

O que acabou acontecendo com ele foi bem próximo de ``os amigos vão se
afastar em silêncio''.

\medskip

Quando eu vejo pessoas apontando transfobia, homofobia, racismo,
ma\-chis\-mo, etc em todo lugar eu penso nisso. Elas {\sl podem} ver
transfobia homofobia racismo machismo etc em todo lugar, mas será que
o efeito disso é o que elas querem? Elas vão acabar se isolando, e
será que vale a pena? Pra mim é importante a gente conquistar aliados,
e {\sl bons} aliados...

% Leblon, absurdo






% (find-fmpage 27 "24. ``Que bom, tá saindo tudo''")
% (fmvp        27 "24. ``Que bom, tá saindo tudo''")

\mysection{ta-saindo-tudo}{``Que bom, tá saindo tudo''}
\mydate{2015nov08}

Um cara chega no homeopata com um furúnculo gigantesco no cotovelo,
doendo a beça e saindo pus. O homeopata vê aquilo, abre um sorriso de
orelha a orelha, e diz: ``que bom, tá saindo tudo!''

\medskip

Em 26/out/2015 eu anunciei
timidamente\footnote{\url{https://www.facebook.com/groups/assexuadostambemamam/permalink/683968001738311/
 }} o link pros textos deste zine no grupo Assexuais, dizendo:

  \begin{quote}
  Gente,

  eu continuo achando que o termo que eu inventei pra me descrever há
  quase 15 anos atrás - ``sexofóbico'' - é mais adequado (e mais
  interessante!!!) do que ``demissexual'' ou ``assexuado''...

  Tou fazendo um zine no qual boa parte dos textos é sobre isso.
  Talvez interesse...
  \end{quote}

As reações foram hostis. Pessoas dizendo que o termo ``sexofóbico'' é
ruim porque é pesado, depois algumas falas na linha desta,
%
  \begin{quote}
  O foco do grupo é promover o encontro de pessoas dentro do espectro
  da assexualidade e desmistificar a ideia de que somos doentes por
  não gostarmos de sexo. Pra gente não é doença; não estamos doentes.
  Por isso usar o termo sexofóbico é meio ofensivo na nossa opinião.
  \end{quote}
%
e depois duas pessoas me disseram que eu devia tentar fazer terapia...
o que me deixou {\sl bem} surpreso! Fiquei pensando em qual era a
visão dessas pessoas de ``terapia'' - e entendi, pela enésima vez, que
linhas diferentes de Psicologia têm visões bem diferentes do que é
tratamento, o que é doença e o que é saúde. Nas linhas que fazem mais
sentido pra mim, quando a gente tem problemas grandes e enraizados
demais, {\sl produzir} a partir deles é uma das coisas mais saudáveis
que podemos fazer - e é melhor ainda quando a gente produz algo que
pode ajudar outras pessoas que têm questões parecidas.

Eu pensei em explicar isso no grupo e dizer que, pôxa, na minha visão
quem acha que histórias traumáticas não devem e não podem ser
discutidas abertamente é que precisa de terapia. Alías, estávamos no
auge da campanha do \#PrimeiroAssédio - mas mesmo assim eu acabei não
respondendo nada.



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%                                       
% «Homens» (to ".Homens")
\separatorpagesimple{Homens}
% (find-LATEX "falta-misandria-homens.tex")
% (find-fmpage 29 "Homens")
% (fmvp        29 "Homens")
% (find-fmpage 30 "25. ``Homem de verdade'' não existe")
% (fmvp        30 "25. ``Homem de verdade'' não existe")

\mysection{homem-de-verdade}{``Homem de verdade'' não existe}
\mydate{2015jul17}

Eu tenho lembranças claras de quando eu era pequeno - 6, 7, 8 anos.
Praticamente tudo, até os menores gestos, era dividido entre ``coisas
de homem'' e ``coisas de mulherzinha/fresco/maricas/viado'', e a gente
vivia o tempo todo se testando uns aos outros e tentando passar nos
testes e ser ``homem de verdade'' e não ``viado''...

Era um pesadelo, e várias coisas que eu queria e achava legais eram
``coisa de viado''. Isso me deixava muito grilado, e eu tentava
conversar sobre isso com a minha mãe e o meu analista (é, porque eu
era patologicamente tímido e a minha mãe era psicanalista, então ela
me pôs pra fazer análise muito cedo). Os dois diziam:

\begin{quote}
``Homem de verdade'' não existe, e você não é viado.
\end{quote}

Acho que foi daí - de muitos anos de conversas frustrantes com a minha
mãe e com esse psicanalista farofa - que eu aprendi que termos como
``homem'', ``mulher'' e ``viado'' têm muitos significados; que pra
dialogar sobre eles com alguém a gente tem que entender quais desses
significados a outra pessoa usa; e que algumas pessoas, como a minha
mãe e o farofa, acham que esses termos são universais e querem dizer
exatamente o significado que eles têm na cabeça naquele momento...

Eu aprendi também que essas pessoas que acreditam no um significado só
são loucas e deveriam ser evitadas; e aprendi também que elas são
numerosas demais e estão perto de mim em lugares demais, e evitá-las é
impossível.



% (find-fmpage 30 "26. Coisa de viado")
% (fmvp        30 "26. Coisa de viado")

\mysection{coisa-de-viado}{Coisa de viado}
\mydate{2015jul17}

Tinha muitos tipos de pensamentos que eram ``coisa de viado''. Os
``homens de verdade'' {\it nunca} pensavam aquelas coisas. Só que eram
tantos tipos de pensamentos que eram ``coisa de viado'' que eu não
acreditava que os ``homens de verdade'' nunca tivessem pensado nenhum
deles.

O tom do modo como os homens falavam tinha certezas demais.

Eu fui chegando à conclusão de que os ``homens de verdade''
apagavam as memórias de terem pensado cada coisa que não deviam.
Quando eles diziam que nunca tinham pensado as coisas proibidas isso
não era exatamente uma mentira - eles acreditavam totalmente. Eles
viviam com muito poucas memórias, porque eles viviam num eterno
presente - sem memórias, e sem interior.

Essa sacação me fez entender um princípio básico do
masculino: o ``lavou, tá novo''. Nada se fixa: a cicatriz de um
machucado desaparece no dia seguinte, a dor de um chute na canela
passa em segundos, uma brincadeira babaca de um coleguinha daqui a
dois minutos a gente já esqueceu. Por trás disso tem a idéia
de que a gente está sempre se treinando pra ficar cada vez mais
fortes - e a gente sacaneia nossos amigos ``de brincadeira'' não
só porque ``é engraçado'', mas também porque quem é
sacaneado ri em triunfo quando vê que é já é forte o
suficiente, e a sacanagem não doeu.



% (find-fmpage 31 "27. Mentira, inferno, mistério")
% (fmvp        31 "27. Mentira, inferno, mistério")

\mysection{mentira-inferno-misterio}{Mentira, inferno, mistério}
\mydate{2015jul20}

O mundo masculino - pra mim - era uma {\it mentira}, porque era
baseado na gente estar sempre esquecendo coisas, fingindo que nada
doeu e fingindo que a gente gostava exatamente das coisas certas, um
{\it inferno}, porque a gente vivia em pânico e não podia baixar
a guarda um segundo, e um {\it mistério}, porque eu não
conseguia entender como os meninos e os homens adultos conseguiam ter
caras mais ou menos felizes vivendo daquele jeito.

Eu comecei a pensar muito sobre ``homens'' e ``mulheres'' e
``masculino'' e ``feminino'' desde bem pequeno, porque eu precisava
pensar em termos de {\it jeitos de funcionar}. As ``mulheres'' eram
verdadeiras, podiam prestar atenção nas coisas, e o modo delas
de conversarem incluía perceber como a outra pessoa funcionava, e
aí criar situações confortáveis nas quais a gente pudesse
até lidar com cuidado com coisas que doíam, como segredos. Eu
queria poder ser mais ou menos daquele jeito quando eu crescesse, mas
eu não conseguia visualizar bem como... por eu ser homem eu tinha
que manter uma casca de dureza, que não parecia compatível.

Quando eu era pequeno eu era um mini-nerd, e eu gostava muito de
ciência, talvez pra copiar o meu pai, que era engenheiro. Aí eu
achava que se eu fosse cientista, inventor e gênio eu seria livre
(num futuro distante).

Quando eu era adolescente eu já não dava mais bola pra
ciência - os caras que eu achava os fodões mesmo eram artistas,
principalmente diretores de cinema e escritores. Eu queria - ou {\it
precisava} - virar uma pessoa incrivelmente interessante quando eu
crescesse, pra eu poder ser amigo dos Mishimas e
Fassbinders\footnote{\url{http://anggtwu.net/s-c-r.html\#querelle}}.




% (find-fmpage 31 "28. Máfias")
% (fmvp        31 "28. Máfias")

\mysection{mafias}{Máfias}
\mydate{2015nov08}

Há muitos anos atrás eu assisti um filme sobre máfia que me
marcou muito. Eu adoraria saber o nome dele.

Um dos personagens é um adolescente que vive rondando seus dois
amigos que já são da máfia, esperando que eles o convidem pra
entrar pra máfia também. Um dias esses dois amigos levam ele pra
um porão pra um ``teste'', que ele só vai entender direito
quando chegar lá. Quando ele chega nesse porão tem um cara
amordaçado acorrentado a uma parede que ele vai ter que torturar e
matar.

Eu sempre vi o mundo masculino em torno de mim como uma máfia, uma
rede de relações baseada em cada um acobertar as escrotices dos
outros. Torturar os caras acorrentados no porão era um ritual de
pertencimento. Aprender a fazer coisas que antes te dariam engulhos
sem se incomodar, e aprender a gostar delas, era confundido com
coragem.

\medskip

A Julia Serano conta\footnote{``Whipping Girl: A Transsexual Woman on
Sexism and the Scapegoating of Femininity'', cap.4} que antes dela
começar a TH, na ``fase testosterona'' dela, era como se as
emoções dela estivessem sempre no fundo do palco, e era
facílimo fazer com que uma cortina descesse sobre elas e as
tornasse praticamente imperceptíveis e irreais - ela quase sempre
podia fazer isto num estalar de dedos. Depois da TH, na ``fase
estrogênio'', as emoções não se tornaram nem maiores nem
dominantes, só {\sl mais nítidas}.

% Acho isso uma descrição genial pra algo que aconteceu comigo
% também - antes eu me esforçava a beça pra perceber a
% intensidade real de cada coisa que acontecia comigo e não entrar
% em processos de negação, agora é bem mais fácil.



% (find-fmpage 32 "29. Sessão Coruja")
% (fmvp        32 "29. Sessão Coruja")

\mysection{sessao-coruja}{Sessão Coruja}
\mydate{2015nov08}

Eu tentava encontrar {\sl alguma} noção de homem que me fizesse
sentido, e que eu pudesse tentar ser. Eu lia muito, a TV Globo às
vezes passava coisas incríveis - como filmes do Sam Peckinpah - de
madrugada, o Cineclube Estação Botafogo abriu quando eu tinha 13
anos, e tinha outras cinematecas na cidade - então eu tinha muitas
referências estrangeiras pra usar.

% O melhor que eu consegui arranjar foi a seguinte: que ``homem'' é
% alguém que quer ser absolutamente coerente e responsável pelos seus
% atos, e que está disposto até a lidar com ser incompreendido durante
% anos, e até a ser banido, ou morto... só que essa idéia de ``homem''
% era quase que totalmente incompatível com as dos homens
% (brasileiros!) em torno de mim, que eram baseadas em autoridade,
% honra e pertencimento... bom, pelo menos quando eu desisti de vez de
% ``ser homem'' eu já tinha as idéias razoavelmente organizadas, e eu
% podia explicar que eu tinha desistindo porque todos os homens que eu
% conhecia eram burros e covardes...

% O melhor que eu consegui foi uma noção de ``homem'' que incluía
% coragem - até pra peitar os colegas! - e incluía eu me sentir
% responsável por todas as consequências do que eu fizesse, e daí, de
% brinde, vinha a obrigação de entender como pessoas completamente
% diferentes de mim eram afetadas pelo que eu fazia...

% O problema é que essa noção de ``homem'' não tinha {\sl nada} a ver
% com as das pessoas em torno de mim. Aos poucos eu fui desistindo de
% tentar ser ``homem''... acho que foi com 24 ou 25 anos que eu
% desisti de vez, e a minha atitude passou a ser ``eu não vou mais ser
% cúmplice desses caras em nenhum sentido, eu quero é que eles se
% fodam''. Quando isso aconteceu eu já tinha uma resposta preparada
% pra se eu precisasse explicar porquê - era porque todos os homens
% que eu conhecia eram burros e covardes.

O melhor que eu consegui foi uma noção de ``homem'' como alguém
plenamente responsável pelas consequências do que faz, com a obrigação
de entender como pessoas bem diferentes de mim poderiam ser afetadas
pelo que eu fazia, e com coragem pra peitar os meus próprios colegas
sempre que necessário... só que aos poucos eu vi que essa noção de
``homem'' não tinha {\sl nada} a ver com as das pessoas em torno de
mim.

Lá pelos 24 ou 25 anos, quando eu desisti de vez de ser ``homem'' em
qualquer sentido que fosse, a minha atitude passou a ser ``eu não vou
mais ser cúmplice desses caras em nenhum sentido, eu quero é que eles
se fodam''. E se eu precisasse me explicar eu diria: {\sl todos os
  homens que eu já conheci são burros e covardes}.




% E eu já tinha uma resposta pra se
% eu precisasse explicar porquê: 





% (find-fmpage 33 "30. Marta e iniciativa")
% (fmvp        33 "30. Marta e iniciativa")

\mysection{iniciative-e-marta}{Marta e iniciativa}
\mydate{2015jul24}

As mulheres ``dão mole''.
\par Os homens ``tomam a iniciativa''.
\par As mulheres dizem ``não'' (e riem).
\par Os homens ``insistem''.

Isso era uma das coisas nas quais eu não conseguia fazer ``papel de
homem'' de jeito nenhum, e aí eu me ferrava. Essa, em particular, foi
uma das coisas que mais me deixou suicida quando eu tinha 17 anos. Eu
era apaixonado pela minha melhor amiga, a Marta, e ela ficava me
provocando, me dando mole, me cobrando que eu ``tomasse a
iniciativa'', e toda vez que eu tentava ela me dava uma patada,
sinalizando que a minha iniciativa não tinha sido boa o suficiente,
que eu não tinha segurança, desejo e impulsividade suficientes, e que
eu tentasse outra vez.

A Marta era grande, forte e poderosa. Eu era magrelo, frágil,
encurvado pra frente, tímido e excessivamente cerebral. Às vezes a
gente ia na Mariuzinn de Copacabana, que era a uns 10 quarteirões da
casa dela, e quando a gente entrava na pista de dança ela num instante
virava o centro das atenções, dançando com todo mundo ao mesmo tempo.
{\it Eu queria ser como ela quando eu crescesse}.






%   ____      _                        _           
%  / ___|__ _| |_ ___  __ _  ___  _ __(_) __ _ ___ 
% | |   / _` | __/ _ \/ _` |/ _ \| '__| |/ _` / __|
% | |__| (_| | ||  __/ (_| | (_) | |  | | (_| \__ \
%  \____\__,_|\__\___|\__, |\___/|_|  |_|\__,_|___/
%                     |___/                        
%
% «Categorias» (to ".Categorias")
\separatorpagesimple{Categorias}
% (find-LATEX "falta-misandria-cats.tex")
% (find-fmpage 34 "Categorias")
% (fmvp        34 "Categorias")
% (find-fmpage 35 "31. As distinções certas")
% (fmvp        35 "31. As distinções certas")

\mysection{dividir}{As distinções certas}
\mydate{2015aug02}

Quando eu era pequeno eu dividia as pessoas entre ``homens'' e
``mulheres'' do jeito óbvio. Quando eu passei a ter muitos conflitos
com os ``homens de verdade'' eu passei a dividir as pessoas entre os
``homens'' (que eram péssimos), as ``mulheres'' (que eram boas ou
neutras), e as ``pessoas'' (que não seguiam papéis de gênero
aprisionantes, e eram {\it bem} melhores). Mas nos últimos anos tudo
ficou confuso; às vezes decidir quem era ``homem'' ou ``mulher'' só
servia pra tentar encontrar os pronomes certos... eu não conseguia
fazer as noções que eram intuitivas pra mim dialogarem com a miríade
de rótulos que se usam hoje em dia - e, óbvio, isso tornava a minha
transição bem complicada. Eu estava querendo deixar de ``ser'' o quê,
pra me tornar o ``quê''?

Tem um
trecho\footnote{\url{http://anggtwu.net/zamm-13.html\#cleavage}}
d'``O Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas'' que me marcou
muito, que é sobre encontrar os conceitos certos, que nos permitem
fazer as distinções certas, e daí ver as coisas com clareza - sem as
confusões de antes - e aí encontrar o melhor modo de agir.

O conceito que me parece realmente útil agora, e que todo mundo
entende, é o de ``Ômi''. ``Ômis'' e ``humanos'' - ainda
não há um termo para o oposto de ``ômi'' em uso corrente,
então deixa eu improvisar e usar ``humano'' - têm modos de
funcionar completamente diferentes e incompatíveis, e valores e
códigos éticos incompatíveis também. Deixa eu citar um
texto escrito por um ômi (fontes:
aqui\footnote{\url{http://anggtwu.net/2013-assedios.html\#morgenstern}}
e
aqui\footnote{\url{http://www.facebook.com/flaviom/posts/10200983707944809}}),
que eu acho especialmente revelador:

\begin{quote}
SOBRE AMIZADES E POLÍTICA: Percebi pela Análise
Sociográ\-fica das Redes Sociais como que a forma como nós,
reacionários direitistas trogloditas conservadores do mal nos
tratamos é... legal pra caralho! Um posta uma coisa, outro xinga de
corno pelo gosto musical ser uma bosta, chamamos respondemos com
considerações sobre as preferências sexuais do primeiro, rola
uma zoada com a mãe, aí um terceiro manda beijo irônico,
todos mandamos um ao outro tomar no cu e termina sempre com umas
indiretas sobre o Morgen escrever demais.

Sabe por quê? Porque nós somos amigos pra caralho, porra!

E a função social de um amigo é te zoar em público antes
que outras pessoas o façam. É por isso que provas são tão
difíceis, que o treinamento no Exército é barra pesada e
também por isso que inventaram palavrões.

Aí você vê o pessoal de esquerda. E é tudo um fru-fru
mongo, um teatrinho de lambeções sem ofender a
hipersensibilidade alheia, um troca-troca de vaidades que faria a
corte de Luiz XIV parecer a Banheira do Gugu.

Todo mundo se chama de ``companheiro'' (você precisa chamar seus
amigos de ``amigos'', ou só fala: ``Chega aí, bichona''?), todo
mundo respeita o gosto musical um do outro (ABSURDO DOS ABSURDOS, isso
não pode acontecer nunca entre 2 seres humanos adultos, conscientes
e vacinados!!), nunca se vê uma ironia, uma tirada escrota, um
cutucação que doeria no ego caso você não tivesse motivo
pra ter um, uma piada ofensiva em público, uma inocente
virulência preconceituosa com alguma deficiência ou estigma
social de alguém por algum motivo... ``Hey, camarada, você saiu
muito bonita na foto, embora talvez tenha preferências por outras
mulheres e devo respeitar sua opção sexual que você escolheu
conscientemente e não devo ter opiniões sobre sua
sexualidade''... chama logo de GOSTOSA, seu baiacu!

E você percebe que é tudo uma falsidade do caralho, que eles
precisam sempre dessa masturbação mútua coletiva só para
acreditarem que são MESMO interessantes, já que os membros do
mesmo grupinho são também interessantes, conscientes, livres de
preconceito, politicamente corretos, progressistas, chatos que só
um livro do Gabriel Chalita e o cúmulo do progresso humano sem
nunca precisar ler sequer as orelhas de Karl Popper.

Puta merda, um mundo em que não podemos xingar os próprios
amigos?! Fora a linha leste do trem em horário de pico, poucas
coisas parecem tanto a definição de inferno quanto esse
moralismo ridículo em que cada pensamento impuro precisa ser
engolido, silenciado e guardado para se pedir perdão no fim do dia.

Sou reaça porque sou legal pra caralho.
\end{quote}

\bigskip

Quando eu fui saindo dos meios masculinos porque eu nem conseguia
compactuar\footnote{\url{http://anggtwu.net/historia-de-T.html}} com
o que acontecia neles eu não via ``homens'' e ``mulheres''
simplesmente como grupos que lidavam diferente com sexualidade - tipo:
quem penetra e quem é penetrado, quem toma a iniciativa e quem
não - e com roupas, aparência, enfeites e trejeitos; isso era
ínfimo. O que era mais importante pra mim era que eu via ``homens''
e ``mulheres'' como modos diferentes de ver o mundo, com códigos de
valores, de ética e de comportamento diferentes e muitas vezes
incompatíveis. Por exemplo, praticamente todo mundo vai reconhecer
o tipo de babaquice do cara acima como algo tipicamente masculino...
né? Certos tipos de comportamento são {\it obrigatórios} ou
{\it tolerados} em meios masculinos e {\it inadmissíveis} em meios
femininos; outros são o contrário.








% (find-fmpage 37 "32. ``Engenheiros''")
% (fmvp        37 "32. ``Engenheiros''")

\mysection{engenheiros}{``Engenheiros''}
\mydate{2015aug18}

Na geração dos meus pais, principalmente entre galeras como a da
minha mãe, a expressão ``cabeça de engenheiro'' era bastante
usada, e tinha um significado preciso - um tipo muito específico de
arrogância e tacanhez.

O meu pai era engenheiro (e
ogro\footnote{\url{http://anggtwu.net/haz.html}}), e ele ficava muito
puto quando ele via que eu e a minha mãe estavamos usando a
expressão ``engenheiros'' na nossa conversa. Ele se metia, dizia
que fulano era legal e era engenheiro, beltrano idem, então a gente
não podia falar mal de engenheiros, a gente não podia
generalizar.

Eu levei anos pra conseguir uma primeira resposta razoável pra
isso. Eu dizia que o Heidegger e o Günther Grass eram legais e
tinham sido nazistas, então ele não podia falar mal dos
nazistas, ele não podia generalizar.

Tempos depois eu encontrei uma outra resposta muito melhor, e que
não era uma provocação.

Falar ``OS engenheiros'' e falar ``TODOS os engenheiros'' são
coisas completamente diferentes. Se eu digo ``TODOS os engenheiros
são do jeito tal'' e a pessoa com quem eu tou falando me dá um
exemplo de {\it um} engenheiro que não é desse jeito tal,
então pronto, ela ganhou: o que eu estava tentando afirmar não
vale mais. Mais se eu digo que ``OS os engenheiros são do jeito
tal'' eu estou usando implicitamente a minha noção do que é
um engenheiro ``típico'' - que comporta exceções - e tentando
ver se ela bate com a do meu interlocutor...








% (find-fmpage 37 "33. Hombres y Machos")
% (fmvp        37 "33. Hombres y Machos")

\mysection{hombres-y-machos}{Hombres y Machos}
\mydate{2015sep03}

Tem um livro interessantíssimo, que eu comprei na liquidação da
Leonardo da
Vinci\footnote{\url{http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-107/anais-da-vida-literaria/cerimonia-do-adeus}},
chamado ``Hombres y Machos - Masculinity and Latino
Culture\footnote{\url{http://www.amazon.com/Hombres-Machos-Masculinity-Latino-Culture/dp/0813331978}}''.
O autor, Alfredo Mirandé, é um sociólogo/antropólogo/etnólogo que
trabalha nos Estados Unidos e é de origem mexicana, e ele começa o
livro contando umas histórias da família dele pra introduzir a idéia
de que as referências de ``homem de verdade'' no México são diferentes
das anglo-saxãs - e, além disso, são diferentes dos {\it estereótipos}
que os anglo-saxães têm do que são ``hombres'' e ``machos'' para os
latinos.

Repara, só nisso já aparecem várias idéias diferentes de ``homem''...
e o livro começa com várias histórias - umas da família dele ou de
conhecidos, outras de filmes e livros de ficção, outras de outros
estudos de ciências sociais - das quais ele tira elementos pra tentar
caracterizar o que mexicanos de várias classes, idades, lugares,
níveis de renda, etc, entendem por {\it hombre} e por {\it macho}; daí
ele desenvolve uma metodologia, prepara uma pesquisa, realiza montes
de entrevistas, organiza os dados que obteve, e apresenta conclusões.

Eu adoraria ter as ferramentas de Ciência Sociais que esse cara tem
pra eu poder organizar e contar ``do jeito certo'' muitas coisas que
eu vivi e observei sem que me digam que eu estou fazendo
generalizações idiotas. Por exemplo, no meio em que eu cresci o modo
de falar masculino incluía uma {\it obrigação de ridicularizar} que
quando eu comecei a andar com mulheres eu vi que entre elas era bem
menor.

Um ponto importante: a gente dificilmente vai chegar ao ponto de poder
fazer uma pesquisa de campo com muitas entrevistas, como o Mirandé
fez, mas a fase anterior, de procurar literatura e coletar elementos
em discursos tanto reais quanto ficcionais, a gente pode fazer com
pouquíssimos recursos; e tem uma ``fase zero'', que consiste na gente
coletar e organizar as idéias e discursos de gênero {\it que já estão
  na nossa cabeça}, que não exige recurso externo nenhum, e que acho
que todo mundo interessado em gênero deveria fazer... e depois que a
gente organizou isso com um mínimo de honestidade e cuidado a gente
consegue conversar com colegas (mini-pesquisa!) sem ser considerado
chato.



% (find-fmpage 38 "34. Falar mal")
% (fmvp        38 "34. Falar mal")

\mysection{falar-mal}{Falar mal}
\mydate{2015nov08}

Às vezes falar mal dos outros é um modo da gente ir esclarecendo como
a gente não quer ser.

Um dos meus assuntos preferidos desde que eu tenho, sei lá, 16 ou 17
anos, era falar mal dos homens (e das pessoas
``normais''\footnote{\url{http://anggtwu.net/haz.html}}) - mas esse
assunto correspondia a um problema prático, que era: se a gente não
queria ser como os ``homens'' e as ``pessoas normais'', que tinham
pontos cegos enormes e eram burras, estúpidas e hipócritas, {\sl qual
  era a alternativa?} Como a gente podia construir pra gente um modo
de funcionar bem melhor?



% (find-fmpage 39 "35. PUC")
% (fmvp        39 "35. PUC")

\mysection{puc}{PUC}
\mydate{2015nov08}

Eu comecei fazendo umas matérias de Matemática na PUC-Rio como ouvinte
num tempo em que eu era um outsider total, aí me identifiquei com o
curso e com as pessoas, e me transferi pra lá.

Depois de alguns anos os meus colegas começaram a ficar amigos de
estudantes de Engenharia e a tentar grudar neles absorvendo os seus
valores - o que foi um inferno pra mim, porque esse pessoal da
Engenharia tinha uma hierarquia social muito rígida, na qual os seus
pontos vinham basicamente de 1) você ser popular e descolado e
galinhar bem, 2) você ter excelentes notas, 3) você ter o perfil do
estagiário perfeito, que vai ser aprovado em todos os processos de
seleção e entrevistas.

Eu cheguei a namorar uma pessoa desse grupo, a Paula Engenheira... mas
quando ela contou pras amigas que gostava de mim ela ouviu coisas como
``Paula, aquele Daniel que você namorava já era o fundo do poço, mas
esse Eduardo é pior ainda''.

\medskip

Todo mundo acha preconceito uma coisa abominável, mas eu vejo um
contínuo entre preconceito, que é péssimo, e uma outra coisa que eu
chamava de ``preconceito operacional'', que todo mundo faz, e que é
humana e ok. O meu ``preconceito operacional'' contra engenheiros
funciona da seguinte forma: ``deve ter gente legal no meio deles sim,
mas no geral eles nem enxergam as coisas que eu valorizo e lidam com
naturalidade com coisas que eu considero intoleráveis. Eu preciso de
amigos - mas não vou mais investir nenhuma energia nesse pessoal
porque é roubada, vou procurar amigos em outros lugares''.

(A minha engenheirofobia é parecida com a minha hetorofobia.
Heterofobia ``existe'', mas heterofobia e homofobia são coisas de
naturezas muito diferentes.)






%  _____                     __                _       _                     
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%   | || | | (_| | | | \__ \  _|  __/ | | | | | | | | | \__ \ | | | | | (_) |
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% (find-fmpage 40 "Transfeminismo")
% (fmvp        40 "Transfeminismo")
% (find-LATEX "falta-misandria-tf.tex")
% «Transfeminismo» (to ".Transfeminismo")

\separatorpage{
  \centerline{\footnotesize Transfeminismo}
  \smallskip
  \centerline{\huge$\cancel{<\!\!3}$}
}

\def\ni{\noindent}



\ni Uma discussão no grupo ``Transfeminismo $<\!\!3$''.

\ni Post inicial, depois meus três comentários.

\bigskip

\ni {\bf De:} Virginia

\ni {\bf Em:} 1º/maio/2015 21:41

Meninas, queria ajuda pra opinar num tema tão delicado. Achei
o texto BEM TRANSFÓBICO, os conceitos de identidade de
gênero e a questão da ``mulher materialmente'' (CIS). É
bem bizarro, mesmo assim, o debate sobre estupros corretivo é
foda e não pode ser silenciado tbm....

{\bf O Queer promove estupro corretivo de
lésbicas}\footnote{\myburl{https://milfwtf.wordpress.com/2015/04/28/o-queer-promove-estupro-corretivo-}{de-lesbicas/}}

\bigskip

\ni {\bf De:} Eu

\ni {\bf Em:} 2/maio/2015 05:32

Eu sempre leio esses textos de TERFs com uma certa curiosidade... e
só agora, depois de pensar horas nesse aí enquanto eu rolava na
cama, acho que entendi o porquê.

A autora dele fala de certas coisas irracionais como se fossem
perfeitamente racionais e razoáveis. A gente sabe que coisas são
essas - são ``deslizamentos'', como a Bia explica super bem neste
texto aqui,

\noindent \url{http://transfeminismo.com/o-banheiro-e-a-ideologia/}

\noindent entre ``pênis'', ``estuprador em potencial'', ``estuprador'',
``estupro corretivo'', etc.

As afirmações do texto são delirantes e até nocivas pra
outra pessoas; disto a gente está careca de saber e de dizer. Deixa
eu falar sobre OUTRA coisa.

A autora tem uma segurança pra falar dessas coisas que tem um
quê de invejável. Tenho lido ultimamente um monte de textos de
pessoas que tiveram problemas de auto-aceitação enormes, mas que
agora escrevem coisas como ``eu sou gorda e negra, mas agora eu tenho
orgulho disso, eu sou foda, e eu me amo''. Esse tom, que eu chamo de
``empoderado'', dialoga bem com os discursos de certeza que a gente
vê por aí em todo lugar - em muitos meios a coisa mais
importante pra você ser ouvida é você ter \_muita\_
segurança do que está dizendo.

Bom, deixa eu copiar aqui um trecho de uma das minhas primeiras
mensagens de saída do armário. Ela ficou super bem escrita, e
não vale a pena eu tentar parafraseá-la ao invés de copiar do
original.

``No início, quando eu era pequeno, eu achava só que eu tinha
dado azar. As meninas podiam fazer tudo de legal e podiam pensar e
conversar sobre o que queriam e serem sinceras; já os meninos
tinham que ficar fingindo o tempo todo que gostavam de um monte de
coisas idiotas só pra provarem pros outros que eles eram machos, e
ficar fazendo papel de macho era algo tão infernal que a gente
vivia explodindo de frustração e raiva... aí o que eu
entendia era que os outros meninos descarregavam essa raiva se
sacaneando e se batendo, e eles ficavam tão ocupados com isso que
eles não tinham tempo pra pensar nada de diferente... e como eu era
magro e fraco e tinha defeitos de personalidade eu não conseguia me
encaixar e aí eu ficava só vendo tudo como se eu estivesse de
fora... e eu tinha a impressão - aliás, a ``esperança''! - de
que se eu me esforçasse MUITO e virasse uma pessoa muito
interessante quando eu crescesse eu acabaria encontrando as outras
pessoas que também sabiam que o mundo masculino era uma farsa, e
teriam construído jeitos de viver fora dessa farsa...''

Então, voltando ao texto da TERF... o que ele tem que é um
pouquinho invejável é que a autora consegue falar de assuntos
que são gatilho pra ela - e ``pênis'' é mega-gatilho pra ela
- sem engasgar no meio de cada frase pela certeza de que não só
não vai ser entendida como vai ser patologizada.

Quantos assuntos a gente tem, principalmente sobre motivos que nos
levaram à transição, e fobias e gatilhos que permanecem mesmo
depois da transição, que a gente mal se atreve a conversar com
meia dúzia de pessoas mais próximas?

O tom da TERF autora do texto pra mim é um tom masculino, pelo
excesso de afirmações e pela falta de auto-crítica =(... mas
eu fiquei imaginando, nesse tempo em que eu fiquei rolando na cama e
pensando depois de ler o texto dela, o quanto pode ser empoderador
pras mulheres irem em encontros de RADs cheios de TERFs e poderem
falar livremente sobre coisas que em outros espaços pareceriam
paranóias, e serem ouvidas.

Na verdade acho que o principal motivo de eu pensar tudo isso é que
eu tenho tido super poucas oportunidades de encontrar outras pessoas
trans ao vivo, e algumas coisas que eu tenho lido de ativistas trans -
por exemplo isto (principalmente os comentários):

\noindent \url{https://www.facebook.com/andreigiu/posts/1559902204276071}

\noindent me dão uma nóia de que em eventos trans eu talvez acabasse
ficando à margem num canto sem conseguir me expôr ou puxar papo
com quase ninguém, porque a minha vivência é bem diferente
dos relatos que eu vejo... eu comecei a TH muito tarde, e antes disso
eu vivi meio invisível, tentando fazer com que aparência
física, namoros, sexo, etc, ficassem bem em segundo plano na minha
vida - eu pensaria direito nessas coisas quando eu crescesse...
então, sei lá, vai que os espaços trans estão ocupados
só pelas pessoas que tem questões ``externas'', as pessoas que o
tempo todo põem a cara no sol e levam porrada, e elas não têm
mais questão ``interna'' nenhuma?...




% \bigskip
\newpage

\ni {\bf De:} Eu

\ni {\bf Em:} 2/maio/2015 05:32

Tudo bem que várias pessoas aqui acharam o texto de TERF péssimo
sem nem lê-lo... mas eu fui relê-lo agora pra escrever mais
sobre ele - ou aqui ou só pra uma amiga minha - e achei ele MUITO
bom.

Eu tinha ficado com a impressão de que a autora deixava
\_explícito\_ que ela tinha sido violentada, e aí a partir
desse ponto do texto ela iria se permitir falar sobre os gatilhos dela
e sobre ela ver estupro em todo lugar... agora que eu reli eu vi que
não é bem assim, tá só implícito, mas escrito de um
jeito tão forte que dá pra inferir as vivências dela - e,
aliás, depois que eu fucei um pouco mais o site dela, vi que
estão escritas em detalhes em outros posts.

Tem uma coisa lá no meio do texto dela que eu achei MUITO foda. Ela
diz: ``NÃO SABER LIDAR COM UM NÃO PARA UMA INVESTIDA SEXUAL É
SOCIALIZAÇÃO MASCULINA''. Eu tou há meses tentando deixar
mais claro o que é ``homem'', ``mulher'', ``masculino'',
``feminino'' pra mim e porque o ``mundo masculino'' era um inferno, e
essa idéia é uma boa chave de pensamento.




\bigskip

\ni {\bf De:} Eu

\ni {\bf Em:} 3/maio/2015 06:57

...e eu ia comentar aqui que acho uma estratégia ruim a gente chamar
as histórias pesadas dos outros de mimimi, porque isso praticamente
convida as outras pessoas a dizerem que as nossas histórias são mimimi
também... mas fiquei deixando pra quando eu conseguisse escrever de um
jeito mais caprichado, e agora vi que ao invés de usar as minhas
palavras eu posso fazer uma citação. Lá vai.

  \begin{quote} ``Quem se omite diante da dor não escolhe a
  neutralidade. Escolhe afundar ainda mais a vítima numa lama de
  culpas, nojos e medos. E eu só tinha o papel para enfrentar o que
  passava sem perder a
  lucidez.''\footnote{\myburl{https://milfwtf.wordpress.com/2014/06/23/sobre-pedofilia-e-a-minha-primeira-}{historia-de-horror/}}
  \end{quote}



\newpage

\ni Pouco depois do meu último comentário

\ni me baniram do ``Transfeminismo $<\!\!3$''.

\ni Duas semanas depois comentei isto

\ni aqui no grupo ``Feminismo Trans'':

\bigskip
\bigskip

\ni {\bf De:} Eu

\ni {\bf Em:} 16/maio/2015 02:40

...e eu tou aqui torcendo pra pessoa ``ex-trans virando rad'' não ser
eu, porque deve ter pelo menos 3 pessoas me rotulando assim agora...
me expulsaram de um grupo e várias pessoas me bloquearam sem
explicação depois que eu escrevi essas coisas aqui,

\url{http://anggtwu.net/falta-misandria.html}

eu sei que eu pisei em gatilhos, mas não imaginei que ia ser tão
grave... porque por mim eu estava tentando pensar exatamente sobre que
tipos de ``pertencimento'' a gente deveria estar procurando - tem
coisas que acabam me soando como a rixa eterna da turma da rua de cima
com a turma da rua de baixo...

\bigskip
\bigskip

\ni Aí uma pessoa que também estava no grupo anterior disse: ``Vc foi
expulse do grupo porque concordou com um texto totalmente
transfobico'' e ``E ainda ficou relativizando transfobia'', e pouco
depois me baniram do ``Feminismo Trans'' também.

% \newpage

% Eu consegui reconstruir a discussão no ``Transfeminismo $<\!\!3$''
% - só até terem me banido, claro - a partir dos falas que
% apareciam nos e-mails de notificação que o Facebook me mandava.
% Pus aqui:

% \url{http://anggtwu.net/falta-misandria-0.html}



%  _____                      _ _                         ____  
% | ____|     _ __ ___   __ _(_) |___   _ __  _ __ __ _  / ___| 
% |  _| _____| '_ ` _ \ / _` | | / __| | '_ \| '__/ _` | \___ \ 
% | |__|_____| | | | | | (_| | | \__ \ | |_) | | | (_| |  ___) |
% |_____|    |_| |_| |_|\__,_|_|_|___/ | .__/|_|  \__,_| |____/ 
%                                      |_|                      
%
% «E-mails» (to ".E-mails")
% (find-LATEX "falta-misandria-rh.tex")
% (find-fmpage 45 "E-mails pra Silvia")
% (fmvp        45 "E-mails pra Silvia")

\separatorpagesimple{E-mails pra \R}

\def\ni{\noindent}

% https://mail.google.com/mail/ca/u/0/#sent/14d13bce981030a7

\ni {\bf De:} \RW{}

\ni {\bf Para:} Mim

\ni {\bf Em:} 2/maio/2015 15:57

\medskip

Muito bom! Acho que você foi no ponto!

Só duas coisas:

Eu acho o termo Terf bem complicado. Em primeiro lugar porque, bom, é
pejorativo, né? Já que nenhuma mulher se intitula terf, embora algumas
se intitulem perf (P de pênis), pois trans homens são aceitos nos
espaços exclusivos. E em segundo lugar porque é um termo misógino. Por
que só as mulheres têm um termo para designar o fato de serem
trans-excludente quando a sociedade inteira é trans-excludente e
quando quem agride, estupra e mata trans são homens cis?

Outra coisa é que só em espaços exclusivos virtuais pude entender o
conceito de gênero para as feministas radicais e acho que posso tentar
te explicar uma coisa que parece que não está clara para quem não
participa desses grupos: o conceito de ``identidade de gênero'' está
fazendo mulheres cis, cada vez mais, irem para o feminismo radical.
Não porque elas são transfóbicas, nenhuma delas nega o sofrimento de
ser uma pessoa trans que passa por transição, muito menos das trans
que se prostituem, das que sofrem violência transfóbica... Talvez você
ache ruim o que vou dizer, mas espero que você consiga entender o meu
ponto: \label{lesbicos}há homens afirmando serem mulheres não-binárias
querendo se impor como mulheres lésbicas. Basta passar um batom e
colocar uma saia e dizer ``sou mulher'' para ser mulher? E
automaticamente qualquer mulher cis passa a ser opressora dessa pessoa
que a vida toda teve todos os privilégios de ser homem? E a voz dessa
mulher não-binária deve se sobrepor à de uma mulher que passou a vida
inteira sendo silenciada por ser mulher? Você consegue perceber porque
isso é problemático?

Geralmente são homens brancos universitários, barbados, que colocam
uma saia e um batom e a partir do momento em que dizem que são
mulheres ninguém pode negar isso. Pensa em como essa pessoa é vista
por mulheres que têm trauma de estupros ou medo de estupros
corretivos. Pensa em como mulheres podem se sentir ameaçadas pela
hipótese de que um homem coloque uma saia para se dizer não-binária ou
gênero fluido apenas para ter sexo com mulheres.

A maior parte das pessoas que se dizem não-binárias ainda por cima
dizem que são lésbicas e que se uma lésbica não quer fazer sexo com
eles é porque é transfóbica. O que uma lésbica vê quando isso
acontece? Como não ver um homem impondo o seu pênis sobre o corpo
feminino? Uma lésbica não pode não gostar de pênis a não ser que tenha
passado por traumas? Eu conheço duas meninas que passaram por pressões
desse tipo. Onde mais elas iriam poder falar sobre isso se não em
espaços exclusivos?

Sério, acho que alguém devia dizer pra esses caras que eles tão
fazendo muito mal pra militância trans. Não sei se eles têm fetiche em
serem oprimidos ou o quê, mas só vão conseguir que lésbicas e
feministas radicais reafirmem que ser mulher não é usar saia.

Um beijo,

\R{}




\newpage

\ni {\bf De:} Eu

\ni {\bf Para:} \RW{}

\ni {\bf Em:} 3/maio/2015 22:54

\medskip

Hey!!!

Adorei a sua resposta, passei o dia pensando nela, com vontade de
escrever uma resposta gigante...

Desculpa eu ter usado o termo ``TERF''... é porque eu tava num grupo
de pessoas trans...

Deixa eu primeiro te mandar duas coisas que eu acabei de postar lá na
discussão. Aliás, antes olha isso aqui, que foi um dos comentários de
lá...

\begin{quote}
  ``Só pelo titulo eu nem vou ler...por q ja sei q tem chorume de
  terf.''
\end{quote}

Lá vão os meus dois comentários. Mais depois! Beijos! =)

(...)




\newpage

\ni {\bf De:} Eu

\ni {\bf Para:} \RW{}

\ni {\bf Em:} 4/maio/2015 00:00

\medskip

Eu ando procurando onde, \_pra mim\_, está o centro da distinção entre
homens e mulheres, qdz, quais são os aspectos do ``mundo masculino''
que fazem com que meios masculinos sejam um pesadelo pra mim...

Nos últimos dias eu andei tentando pensar em termos do que seria
``energia masculina'' e ``energia feminina'', principalmente em termos
de tipos de desejo, modos de se relacionar com o próprio corpo e com
os dos outros... e andei começando a catar coisas que eu li há anos
atrás num livro do Reich (o ``A função do orgasmo'' - bem
interessante), num sobre Tantra (que eu não tive paciência pra tentar
reler), em livros clássicos de psicanálise que eu nunca tinha lido
antes (que gente doeeeenteeeeeee esses psicanalistas!!!), e vi que tem
boas coisas no ``O segundo sexo''...

Uma idéia-chave (pra mim): um princípio do ``masculino'' é o ``lavou,
tá novo''; um do feminino é que é preciso cuidar e prestar atenção,
porque tem muita coisa que se for quebrada não dá pra consertar
depois.

Lendo os livros dos psis idiotas eu vi uma coisa recorrente, super
interessante... ``pênis'' é automaticamente associado a ``poder'' e
``prazer''; é como se todas as mulheres fossem intercambiáveis e não
houvesse muita diferença entre transar com a que você ama muito e uma
que é só espólio de guerra pra estuprar... ou seja, é como se a
\_qualidade\_ de conexão com o outro não fosse importante... e eu ando
com a sensação de que essa obsessão por definir qual é o nosso
``tipo'', se a gente é hétero ou gay ou o quê, tem um pouco dessa
idéia de que as pessoas-nossos-objetos-de-desejo são intercambiáveis,
que a gente pode tranquilamente se livrar de uma e arranjar outra do
mesmo tipo...

Claro que isso que eu tou descrevendo é exatamente o oposto de como eu
funciono.. pra mim a qualidade da conexão com a outra pessoa é o que
mais importa, e lidar com o genital, ou até só com o físico, às vezes
é tão complicado que é melhor deixar isso pra lá, ou pra depois - e
daí o que eu vivo dizendo e as pessoas não entendem, que é que ``sexo
estraga tudo'' (muitas vezes), e que muitas vezes a gente tem relações
sem sexo muito mais fantásticas do que outras com...

Desculpa se tá bagunçado, né, eu avisei que isso eram coisas que eu
ainda tou longe de conseguir escrever direito. =)

Beijos,

E.

\medskip

P.S.: ah, ``mulheres trans'' invasivas, que acham que têm que ser
aceitas só porque se auto-declararam mulheres e lésbicas, pra mim são
homens sem noção, e esse tipo de cara sem tato e sem noção é
exatamente o tipo que eu mais tenho vontade de combater... não que eu
consiga fazer muito contra esses caras por enquanto, mas o horror que
eu tenho a eles é visceral.

(...)

% P.P.S.: tou lendo o ``Gender Trouble", da Judith Butler, e achando
% interessantíssimo - ela mapeia bastante coisa da literatura sobre
% gênero das últimas décadas, torna essa literatura
% acessível pra quem antes sentia que não tinha contexto pra
% lê-la (como eu), e deixa o leitor, ou melhor, os leitores como eu,
% com uma sensação de dever de casa enorme, de ``uau, agora preciso
% ler as coisas tais e tais no original''... por enquanto tou com a
% sensação de que isso de que basta alguém se declarar homem ou
% mulher pra automaticamente ``ser'' homem ou mulher é consequência
% de uma leitura incrivelmente rasa e errada dos textos dela...


\newpage

\ni {\bf De:} Eu

\ni {\bf Para:} \RW{}

\ni {\bf Em:} 4/maio/2015 09:00

\medskip

Fiquei pensando sobre as ``mulheres trans'' invasivas, que pra mim são
ômis vestidos de mulher...

Eu só fiquei sabendo em detalhes de um caso desses, o da
Heleonora/Léo, aqui no Rio. Eu conheci elx no dia da visibilidade
trans, depois um dia ela começou um chat comigo, me dando esporro do
nada por eu ter uma página que ela considerava transfóbica entre os
meus likes, a gente brigou, ela se recusou a ler as coisas que eu
mandava e no final ela postou o link de um ``EVENTO PARA VOCÊ ENCHER
MEU COPO E NÃO MEU SACO!'' (hosted by ``Mulher sem frescura''). Eu
fiquei triste, fui desabafar com uma garota trans super fofa que eu
tinha conhecido no mesmo dia e por quem eu tinha ficado encantado, mas
nisso eu ainda tava tentando ver a Heleonora/Léo só como alguém super
equivocadx, descarregando nos outros coisas que não devia...

Depois fiquei sabendo que elx já tinha até mandado fotos do pau delx
pra pessoas por chat, e que ela tava sendo expulsa de todos os grupos,
massacrada, e aos poucos as pessoas que tinham prints das maluquices e
grosserias dela foram até se sentindo mais à vontade pra falar delx
pelo nome em lugares bem mais públicos das internets... mais um
pouquinho seria com nome e sobrenome, mas não vi chegar a esse ponto.
E um dia vi ela pedindo alguma recomendação de psicólogo que o plano
de saúde dela cobrisse, e depois ela sumiu.

Os ômis vestidos de mulher das baladas da Unicamp são figuras que
ainda são meio mitológicas pra mim... você os menciona, mas os grupos
nos quais eu tou omitem a existência deles por estratégia - uma
estratégia da qual eu discordo. Acho que eles deveriam ser expostos e
massacrados também.

Talvez a minha posição seja mais fácil do que as das mulheres trans
que querem juntar todas as pessoas trans AMAB num guarda-chuvão,
defender todas, e esperar que apareça alguma espécie de sororidade
entre elas... porque numa época eu até combati muito explicitamente a
cultura do sexo casual, até com surtos meio teatrais sempre que eu
achava preciso, porque essa cultura era tão hegemônica que as pessoas
ridicularizam quem procurava relações de intimidade, confiança e
segurança sem notarem, como se essas coisas fossem um delírio
romântico ingênuo, ridículo e ultrapassado - e quando elas faziam isso
elas atrapalhavam que gente como eu 1) se expusesse, 2) encontrasse
outras pessoas parecidas, 3) existisse (porque eu ficava me sentido
errado e doente e tentava mudar).

(...)

% Outro livro bacana que eu li recentemente, e que eu li num instante
% porque ele é fácil, não é que nem a Judith Butler, é esse aqui:
% ``Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating
% of Femininity'', da Julia Serano... eu até PDFizei dois capítulos
% dele a partir do e-book, e pus aqui:
 
% \url{http://anggtwu.net/LATEX/whipping-girl.pdf}
 
% Ela mora em San Francisco, é super ativa nas discussões de lá - e a
% comunidade de lá tem gente super cabeça, né - e esse livro dela, que
% é de 2007, tá anos-luz adiante do ``Gender Trouble'' da Judith
% Butler, que é de 1990... A Julia Serano pensou durante anos no que
% exatamente era a transexualidade dela, pra conseguir respostas
% honestas e esclarecedoras que ajudassem todo mundo e fizessem a
% discussão avançar... e num ponto do capítulo 5 ela diz
 
% \begin{quote}
%   ``In the years just prior to my transition, I started to express my
%   femaleness as much as possible within the context of having a male
%   body; I became a very androgynous queer boy in the eyes of the
%   world. While it felt relieving to simply be myself, not to care
%   about what other people thought of me, I still found myself
%   grappling with a constant, compelling subconscious knowledge that I
%   should be female rather than male. After twenty years of exploration
%   and experimentation, I eventually reached the conclusion that my
%   female subconscious sex had nothing to do with gender roles,
%   femininity, or sexual expression--it was about the personal
%   relationship I had with my own body.''
% \end{quote}
 
% o que é honesto, e eu achei bem legal por motivos que não valem
% muito a pena eu contar agora (me ajuda a explicar a minha relação
% com hormônios), mas não nos ajuda... mas em outros capítulos ela
% mapeia um monte de características ``femininas'' que são
% discriminadas socialmente, tanto quando são apresentadas por
% mulheres quanto quando por homens... e esse livro me ajudou bastante
% a pensar como a sociedade valoriza o ``lavou, tá novo'' e as pessoas
% serem tanques de guerra insensíveis, e desvaloriza o oposto disso,
% que é a gente ter atenção e cuidado porque a gente sabe que muitas
% coisas são frágeis...
 
% Bom, vou parar por aqui. Se você fosse outra pessoa eu me obrigaria
% a 1) escrever uma conclusão como se você não fosse genial pra
% conectar as idéias que eu escrevi do seu jeito e ir até além do que
% eu pensei, 2) me desculpar por eu ter escrito muito... mas você sabe
% que ler é rápido, escrever é que demora =).

Ah, não, não, péra, tem mais uma coisa que eu queria falar. Enquanto
as histórias dos ômis invasivos vestidos de mulher não circulam com
mais detalhes cada lado faz os seus ``deslizamentos'' - no sentido
daqui, \url{http://transfeminismo.com/o-banheiro-e-a-ideologia/} - e
as trans pensam só nos casos mais extremos, que são poucos, e dizem
que as rads estão pegando esses poucos casos e fingindo que são muitos
pra espalharem transfobia...

Quando eu crescer mais um pouquinho - nas próximas semanas, espero! -
eu quero ter uma terminologia mais fina pra pensar e falar sobre essas
coisas, e inclusive reativar as minhas provocações antigas, que tinham
uma estratégia bem séria por trás, agora me focando em que ``mulher
sem frescura'' (vide acima) pra mim é ômi, e ômi que quer ser ``mulher
sem frescura'' não é trans não, qdz, não no sentido que eu respeito,
pra mim é ômi também. Ou, em outras palavras, sororidade com gente
incapaz de sororidade é o caralho.

Beijos!

    E.

\medskip

P.S.: agora é que me ocorreu - e as travestis? Como ser solidário com
elas, porque elas são a vanguarda do movimento e as mais oprimidas e
tal... se elas são obrigadas a serem tanques de guerra, e portanto
pessoas duríssimas? Bom, a resposta me veio logo depois da pergunta -
as poucas que eu conheci pessoalmente são pessoas super sensíveis e
fofas sempre que podem...


\newpage

% https://mail.google.com/mail/ca/u/0/#search/heleonora/14d1df0fe608eee5

\ni {\bf De:} \RW{}

\ni {\bf Para:} Mim

\ni {\bf Em:} 4/maio/2015 13:44

\medskip

Eduardo, ontem eu passei o dia na rua e li seus 3 e-mails agora. Bom,
que bom que você não defende esses ``homens vestidos de mulher''!
Gostei muito das coisas que você escreveu, mas voltando para o seu 1º
e-mail, fiquei me perguntando uma coisa: a maioria das trans se
incomoda com o fato de feministas radicais terem espaços exclusivos?
Não entendo muito bem porque se incomodar, já que as coisas discutidas
entre feministas radicais normalmente são muito específicas e podem
funcionar como TW para trans: aborto, violência obstetrícia, parto,
menstruação, estupros, educação das crianças, direitos reprodutivos,
representação da mulher na mídia estão entre as principais pautas das
feministas radicais no Brasil. Acho que são assuntos tão importantes e
urgentes... Também acho importantes e urgentes muitas das coisas que
você diz, mas talvez não seja melhor que só trans possam opinar a
respeito das causas trans? (Pergunta sincera, pois acho que uma pessoa
cis não deve opinar sobre a causa trans, assim como acho que quem não
tem útero não tem que opinar sobre menstruação.)

Um beijo, 

\R{}



%  ____                       
% / ___|        ___      _ __ 
% \___ \ _____ / __|____| '__|
%  ___) |_____| (_|_____| |   
% |____/       \___|    |_|   
%                             
% «S-c-r» (to ".S-c-r")
\separatorpagesimple{S-c-r}

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec princesa")
{\bf A princesa}

Deixa eu usar uma imagem. A sua família se muda pra outra cidade, e
você vai pra outra escola. Na sua escola antiga você era só uma
criança introversiva que não se relacionava direito com ninguém. Na
escola nova alguma coisa deu um clique - outra criança te perguntou
alguma coisa e achou as suas respostas interessantes, e em poucos dias
você estava sendo convidado pra festas - na escola antiga você era
esquisito por ser totalmente incompetente pra esportes; e as festas
eram só uma confusão de pessoas barulhentas sendo mais barulhentas
ainda, pessoas correndo pra lá e pra cá bebendo e se sacaneando, todo
mundo querendo que tudo fosse como nas festas de adolescentes dos
filmes americanos - mas na escola nova ser introversivo não é pecado,
você foi adotado por um grupinho que às vezes se reúne pra conversar
por horas, e eles sabem que as pessoas que falam menos são as que às
vezes aparecem com as melhores idéias, e conjuram as melhores imagens
-

Aí um dia - desculpa, tá ficando difícil escrever sem gênero, então
deixa eu usar o feminino - uma das suas melhores amigas te convida pra
uma festa maior, em que vai ter bem mais gente, e onde você não vai
conhecer praticamente ninguém. Você acha essa amiga fascinante, ela
acha você fascinante também, e ela age de forma meio protetora com
você. Vocês duas entram juntas na pela porta da casa enorme cheia de
gente, e naquele momento você é a amiga daquela garota, e você
compartilha um pouco da aura dela, vocês são duas princesas entrando
numa festa numa castelo - e a sua versão anterior, a menina tímida da
outra escola, é só uma memória distante -

Eu vivi muitos anos acreditando que a vida era assim: que eu iria em
algum momento encontrar a festa certa, a em que as pessoas realmente
interessantes estavam, e eu entraria nela como uma princesa, e tudo
funcionaria... minhas qualidades, que eram algo praticamente sem valor
na escola enterior, iriam brilhar como um colar de diamantes através
de um vestido leve e semitransparente; eu seria adotada, e a versão
anterior de mim, que vivia em humilhação e vergonha, se tornaria só
uma memória distante.


%\bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec principe-encantado")
{\bf Príncipe encantado}

Algumas pessoas detestam a expressão ``príncipe encantado'',
porque acham que ``isso não existe''... eu gosto dela.

{\sl O príncipe encantado é alguém que nos salva por mágica.} Tem uma
frase que é: ``qualquer tecnologia suficientemente avançada é
indistinguível de mágica''... qualquer coisa que o príncipe encantado
saiba fazer que esteja muito adiante do que as pessoas do nosso
círculo sabem fazer é, num certo sentido, mágica. Se as pessoas do
nosso círculo chamam o diferente de esquisito e de idiota, chamam o
cara que não canta ninguém de viado e não sabem conversar, então quem
nos entende e nos aceita e conversa com a gente é um príncipe
encantado que nos salva ``por mágica''.

Outra coisa legal da expressão ``príncipe encantado'' é a seguinte: {\sl
  todas as mulheres procuram um príncipe encantado}. Ora, então os
príncipes encantados, que devem ser muito poucos, vão ser disputados a
tapa! Como fazer com que eles nos escolham? O que nós podemos fazer
pra merecê-los, e como fazer com que eles nos avistem no meio da
multidão?...

Pior ainda: e se os príncipes encantados parecerem pessoas comuns,
como nós vamos avistá-los e reconhecê-los? E se eles não estiverem
prontos? Se da mesma forma que nós precisamos ser salvos eles também
precisam ser salvos um pouquinho? Se eles ainda são só príncipes
encantados em potencial? Se eles parecem sapos?...

Como é que nós podemos virar pessoas muito interessantes e capazes de
``mágica'', e nos tornarmos amigos das outras pessoas interessantes e
capazes de ``mágica''?


%\bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec querelle")
{\bf Querelle}

Quando eu tinha 14 anos abriram um cineclube perto da minha casa - o
Cineclube Estação Botafogo. Eles tinham um esquema no qual a gente
podia virar sócio pagando só um pouquinho por mês e aí assistir
quantos filmes quisesse. Eu comecei a passar muitas tardes por semana
lá.

Quando eu tinha uns 15 anos eu assisti Querelle, do Fassbinder, feito
em cima do livro do Jean Genet. Até aquele momento eu nunca tinha
ouvido falar nem de Fassbinder, nem de Genet.

Antes de falar do filme deixa eu explicar umas coisas sobre o mundo no
qual eu vivia. Eu vivia num mundo incrivelmente homofóbico. ``Viado''
era só um xingamento - a gente não conhecia ninguém que fosse
homossexual, e aliás eu tinha todos os indícios de que ninguém da
minha família conhecia alguém que conhecesse alguém que conhecesse
alguém que fosse homossexual - mas a gente passava o tempo todo
fazendo todo o possível pra não ``ser viado'', porque ``ser viado'', mesmo
que fosse durante um instante só, significava cair num abismo social
sem volta, era pior do que ser um leproso e um pária, era a gente
passar a merecer porrada de todo mundo a toda hora, até a gente
desaparecer e apagarem todos os traços (bons) da nossa existência.

Eu sabia que esse mundo super homofóbico era um mundo de mentiras e
medo. A gente vivia em alerta, sempre preparado pra reagir quando a
gente fosse sacaneado pelos colegas - a gente tinha que peitar na hora
a pessoa que nos desafiava e dar uns motivos que mostrassem que a
gente não era viado... e, bom, esses motivos eram improvisados na
hora, então claro que não eram algo nem muito profundo nem muito
verdadeiro...

Vários traços meus eram ``coisas de viado'' - tipo eu ler muito,
detestar atividades físicas, não gostar de ser escroto com os
coleguinhas, e ficar mal quando me sacaneavam - então a minha situação
era bem complicada, não ``ser viado'' me tomava muita energia.

Mas deixa eu voltar pro filme.

Todos os atores do filme são homens super musculosos, e a única
personagem feminina é a Madame, a dona do bordel da cidade em que o
navio do Querelle está ancorado. O Querelle, que é o personagem
principal, é um marinheiro que está sempre testando sua coragem
ultrapassando cada vez mais limites. Ele já vinha cometendo pequenos
crimes, e ele resolve que está na hora de experimentar matar alguém
pela primeira vez. Ele assalta um cara numa rua escura, mata esse cara
a facadas, e logo depois resolve experimentar algo que é um tabu dez
vezes maior que o assassinato.

O bordel da cidade tem uma regra que todo mundo conhece. Quem quiser
transar com a dona do bordel tem que jogar dados com o marido dela,
que é um cara negro enorme. Se o cara ganhar nos dados ele transa com
a dona do bordel, e se ele perder ele tem que dar a bunda pro marido
dela.

O Querelle vai no bordel, diz que quer transar com a Madame, joga
dados com o marido dela, e rouba nos dados - ele roda um dos seus
dados pra ele dar um valor menor, pra {\sl perder} no jogo.

\msk

Assistir Querelle me fez repensar toda a minha noção de coragem... e,
além disso, o filme quase que dava uma fórmula, em dois passos, pra se
a gente quisesse sexo homo: 1) seja incrivelmente corajoso, 2) vá pro
submundo.

Eu até hoje ainda não sei qual seria uma ``fórmula'' correspondente pra
quando a gente sonha em poder deitar a cabeça no colo do nosso melhor
amigo.



%\bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec pitbull")
{\bf O pitbull}

Eu estava voltando pra casa. Era um fim de tarde, hora do rush, e
tanto a rua quanto a calçada estavam lotadas. Nessa época um dos
assuntos mais discutidos, e que sempre aparecia nas manchetes dos
jornais, era o que fazer com os pitbulls. Eles eram os cachorros
preferidos dos ``pitboys'', que eram uns garotos ricos mimados e
vândalos que viviam em academias, e que eram hipermasculinizados e que
sempre que podiam se metiam em brigas. Já tinha tido uma meia dúzia de
casos em que os pitbulls dos pitboys tinham atacado e mutilado, ou até
matado, pessoas, e havia uma campanha em andamento pra tornar pitbulls
ilegais, exigindo que eles fossem todos mortos, ou que pelo menos
proibissem andar com pitbulls na rua ou tê-los em casas que tivessem
crianças.

Então, nesse dia eu estava voltando pra casa, andando por uma calçada
hiperlotada de gente, e eu vi que ao lado de uma banca de jornais
tinha um espaço praticamente vazio - e nesse espaço tinha um garoto e
uma garota, de algo entre 12 e 15 anos, provavelmente irmão e irmã,
conversando casualmente entre si, e entre os dois o cachorro deles: um
pitbull.

``Dois adolescentes com um pitbull''... nessa época isso normalmente
seria algo apavorante, mas os dois tinham um ar tão frágil, eram super
sensíveis, super atentos, e o cachorro deles, um pitbull só um
pouquinho mais velho que um filhote, olhava pra todo mundo com uns
olhões enormes, tristes, doces e carentes, e tentava exprimir, não só
com os olhos mas com o corpo todo, algo como ``ei, ei, por favor, por
favor, vem brincar comigo, eu não vou te fazer mal nenhum!''... e umas
poucas pessoas até faziam contato visual com o cachorro e olhavam ele
nos olhos um instante, mas todo mundo, absolutamente todo mundo,
evitava ele por medo, e então ali, no meio daquele semi-círculo colado
na parede cinza de uma banca de jornais, tinha um cachorrinho doce e
carente fazendo toda a força pra parecer que tinha metade do tamanho
que tinha, e ele sabia que ia ter que ser o mais fofo {\sl possível}
pra que alguém chegasse perto, mas ainda não estava funcionando, ele
teria que ser ainda {\sl muito} mais doce, mais puro, mais sincero...
e ele continuava tentando...

Essa cena - essa imagem - nunca me abandonou. Pra mim isto é
exatamente o que é ser homem - aliás, melhor, {\sl andar dentro}
de um corpo masculino - num país machista. A gente fala sobre {\sl
privilégio masculino}, mas, bom, privilégio masculino quer dizer
principalmente você poder ser estúpido com as pessoas e elas
sempre te desculparem - porque elas sabem que você é um animal
irracional que não sabe se controlar.

Existe um papo de que o que as mulheres procuram e valorizam são os
homens sensíveis. Isto só é verdade até um certo ponto.

Deixa eu voltar pra história do pitbull mais um pouco. A gente tem
esse cachorrinho que está fazendo tudo, absolutamente tudo que pode
pra merecer que algum dia um ``príncipe encantado'' apareça e faça
carinho na cabeça dele por cinco segundos. Mas o que acontece se
vários anos se passam e ninguém se aproxima? Se todo o esforço pra
sinalizar pro mundo o quanto a gente quer ser fofo é em vão? A gente
gastou um tempo praticamente infinito polindo nossos corações,
examinando nossos pensamentos e devaneios, procurando cada coisinha
que poderia parecer um gesto bruto, e tentando curar cada migalha de
brutalidade por trás, e trocá-la por atenção e cuidado...

Então: imagina que os anos se passam e a gente ainda é visto e tratado
por absolutamente todo mundo como um pitbull. Nossa doçura e nossa
esperança se desgastam, e dão lugar à amargura... e todo mundo em
torno da gente diz pra gente, com as melhores intenções, coisas como:
``mas você {\sl é} um pitbull! Aproveite a sua pitbullzice! Se
divirta...''


\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec armadura")

{\bf Armadura}

A coisa mais impressionante que aconteceu quando eu comecei a terapia
hormonal foi quase imediata - eu tomei os remédios, fui dormir, e
acordei diferente. Antes meu tórax era um bloco rígido, como uma
armadura... muitos músculos meus estavam tão rígidos há décadas que
eles não mandavam nenhuma informação pro meu cérebro - eles não
mudavam nunca, não havia nada pra mandar. Quando eu acordei tinha, sei
lá, 20, 50, 100, 200 músculos que era como se eu não tivesse antes, e
que passaram a ter mobilidade e sensibilidade. Era enlouquecedor, mas
era fantástico.

Eu ainda estou tentando pôr direito em palavras porque é que às vezes,
principalmente quando eu tinha cerca de 20 anos, eu cruzava o olhar
com alguém na rua durante um ou dois segundos e o olhar dessa pessoa
me salvava o dia. Olha esta idéia daqui: podia ser que eu sentisse que
com aquela pessoa eu poderia tirar a armadura. Essa pessoa me dava um
vislumbre, e aí eu conseguia imaginar - aliás, planejar - um futuro no
qual eu não precisaria mais viver de armadura...

O que aconteceria se eu afinal conseguisse me aproximar de uma pessoa
dessas e me abrir com ela? Acho que eu explodiria, eu diria
``obrigado'' e ``que alívio'' e que eu procurava algo assim sem
conseguir encontrar, e eu começaria a chorar - mas isso é tão
perigoso, né, porque aí provavelmente a outra pessoa iria me achar um
chato, dependente, descontrolado...

Garimpando nos meus cadernos de anotações eu encontrei esta frase: uma
armadura de espinhos que protege o meu coração.


% \bsk
\newpage

% (find-THfile "s-c-r.blogme" "Subsec espelho")
{\bf O espelho}

Eu me perguntava a toda hora: ``será que o que eu estou fazendo é {\sl
  de verdade}?'' - e com isso eu tive que procurar algum critério pro
que seria ``de verdade'', até porque eu sempre tive uma vozinha na
minha cabeça dizendo que nada do que eu fazia era verdadeiro o
suficiente ou bom o suficiente, que tudo que eu fazia era ridículo,
que tudo meu tinha defeitos gigantes -

Agora eu acredito que a gente vive uma farsa quando a gente precisa de
cada mais energia pra sustentar o que a gente acredita que é; quando
os nossos pilares de sustentaçao vão ficando cada vez mais frágeis e
há cada vez mais situações e memórias que a gente precisa evitar. A
``verdade'' seria o oposto disso: a gente está ficando mais verdadeiro
quando a gente consegue se comunicar com cada vez mais gente, ouvir as
pessoas melhor e pensar junto com elas, mesmo que a gente tenha mais
dúvidas que certezas; {\sl e quando a gente tem acesso a cada vez mais
  memórias}. Viver uma farsa é ter que bloquear memórias e
pensamentos; ser verdadeiro é não precisar bloquear, mesmo que a gente
precise às vezes atribuir significados e explicações novos para
memórias antigas.

Depois que eu saí do armário eu lembrei de uma memória muito forte da
minha adolescência, que estava enterrada, esquecida. Teve um período
de uns dois anos no qual toda vez que eu via o meu reflexo num espelho
isso estragava o meu dia - então eu andava pela rua com muito cuidado
com pra onde eu olhava, e eu mantinha tapado com papel pardo o espelho
do meu banheiro (eu tinha um banheiro só pra mim lá na casa dos meus
pais).

Acho que quase todas as pessoas trans sempre se viram como alguém do
gênero oposto ao sexo biológico... mas eu não sou assim, porque eu
nunca {\sl me via} direito - eu sempre fazia o possível pra que o meu
aspecto físico fosse algo muito secundário, quase irrelevante.

\msk

Agora, depois que eu comecei o tratamento hormonal, eu consigo olhar
pra mim.









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% «Antigos» (to ".Antigos")
\separatorpagesimple{Antigos}

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% (find-LATEX "falta-misandria-daniel.tex")
% (find-fmpage 55 "Daniel e iniciativa")
% (fmvp        55 "Daniel e iniciativa")

{\bf Daniel e Iniciativa}

(5/maio/2013)

\medskip

Nas discussões sobre assédio e estupro que eu vejo eu sempre tenho a
sensação de que falta alguma coisa. Nos últimos dias algumas idéias
sobre o que falta começaram a ficar mais claras pra mim - vou tentar
escrever o INÍCIO disto agora, mas não sei se vai dar pra escrever
tudo de uma vez.

Durante dois anos, quando eu tava no fim da graduação e no início do
mestrado, o meu melhor amigo era um cara chamado Daniel. Uma vez ele
me disse isso aqui:

``Cara, se eu tivesse com as minhas amigas um décimo da intimidade que
você tem com as suas eu já tinha comido elas há muito tempo.''

Volta e meia eu me lembro disso - e de outras coisas que ele dizia -
com horror e nojo. Esse tipo de macheza dele, aliás, teve a ver com o
que fez com a gente se separasse, mas vou deixar isto pra depois.

Então: o Daniel não PODIA ter mais intimidade com as amigas dele,
porque elas sabiam que ele estava sempre esperando a oportunidade de
poder agarrá-las.

Pro Daniel as coisas funcionavam assim: quando duas pessoas estão
dando mole uma pra outra em algum momento alguma ``toma a
iniciativa''. Aí elas se beijam. Se der certo, depois elas trepam.

Se uma amiga do Daniel deixasse de ser defensiva com ele ele poderia
achar que ela ``estava dando mole pra ele'', e ele ``tomaria a
iniciativa''.

Vou chamar a posição do Daniel de ``posição de predador''.

Quando os nossos amigos são predadores em potencial a gente tem que
tomar muito cuidado com eles. Se a gente diz que gosta deles eles
podem interpretar isto como uma espécie de ``dar mole'', e aí eles
podem ficar - deixa eu usar um termo do próprio Daniel aqui -
``apaixonados''; eles ficam viajando em expectativas delirantes, sobre
as quais eles não conseguem conversar - e eles entram num modo de
funcionar em que eles começam a pensar o tempo todo se podem tomar a
iniciativa ou não. É difícil tirá-los disso, e o único modo óbvio é
cortar essas expectativas, ``dar um fora'' neles. Isso magoa, e não
queremos fazer isto, então não podemos nem dizer muito abertamente que
gostamos deles.

Uma coisa que vale a pena pensar é: porque é que os Daniéis acham que
a única coisa realmente concreta numa relacionamento, o ápice de tudo,
a finalidade última de todas as tentativas de aproximação, e o que as
pessoas mais almejam - é sexo?

Essa pergunta é central sim, mas me toquei de que a gente pode pensar
sobre ela melhor ainda se a gente for por uma outra direção.

Eu faço um esforço enorme pra sinalizar pra todo mundo que eu não
compactuo com machezas, que os meus valores são outros, que eu até já
perdi empregos por ser incapaz de lidar com machezas, e tal. Mas isso
só funciona parcialmente.

Em algumas épocas eu acho pessoas muito mais fascinantes do que eu
deveria. É meio perturbador pra mim e pra elas, e é bem possível que
eu olhe pra elas de modos incômodos. Mas não sei direito, é difícil
conversar sobre isto.

Eu trabalhei a minha vida toda pra não ser visto como um ``predador''
- ou seja, como alguém insensível e perigoso com quem é impossível
conversar. Eu sei mais ou menos os porquês disto: porque eu sei que
num mundo cheio de Daniéis as minhas carências mais importantes são
impossíveis de satisfazer. Por exemplo - vou ter que usar termos
curtos - intimidade, confiança, poder pensar junto sobre coisas
difíceis, poder conversar sobre inseguranças.

O que me intriga é porque é tão difícil ser reconhecido em meios mais
heteros - que são meio novidade pra mim, porque passei mais de 10 anos
afastado deles - como alguém que não vai ser um ``predador'' de jeito
nenhum. Quando eu quase só andava com lésbicas e gente trans era mais
fácil.

O que eu saquei nos últimos dias - pode ser uma idéia ingênua e pode
ser viagem, mas achei que valia a pena compartilhar - é que o problema
tem a ver com {\it privilégio}. Por mais que eu não {\it queira} ser
um predador eu {\it posso} ser um predador. Vou explicar: PODE SER que
o meu discurso seja só pose; um Daniel que soubesse passar uma aura de
confiabilidade como a que eu tento passar usaria isso pra comer todas
as amigas dele - e o tal ``privilégio'' está em que no mundo hetero as
pessoas acreditam que os homens sempre têm Daniéis dentro de si, e uma
manifestação do Daniel Interior é algo tão normal que ninguém pode ser
muito culpado por isto.

Várias tentativas das mulheres dizerem que elas são seres sexuais
também, com desejos próprios e tal, são postas em termos
correspondentes a estes: uma mulher com desejos pode a qualquer
momento revelar o seu Daniel Interior.

Eu sempre tive muito problema com essa história de ``iniciativa''. Uma
das coisas que mais me levou à beira do suicídio quando eu era
adolescente foi uma amiga minha, por quem eu era muito apaixonado, me
pondo sempre contra a parede e me mostrando que eu deveria tomar a
``iniciativa'' - mas aquilo era algo totalmente alienígena à minha
personalidade, e das poucas vezes que eu tentei tomar algo parecido
com essas iniciativas foi patético.

Aos poucos bem depois eu fui conseguindo relações baseadas em outros
tipos de aproximação que não tinham nada a ver com essa
``iniciativa''. Mas deu muito trabalho.



\newpage

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% (find-LATEX "falta-misandria-hdt.tex")
% (find-fmpage 57 "História de T")
% (fmvp        57 "História de T")

{\bf História de T}

(29/dez/2014)
\medskip

Deixa eu contar uma história do meu tempo de muita testosterona -
aliás, melhor, do tempo em que eu vivia envenenado por testosterona.
Vou contar só uma delas, porque esse tipo de coisa acabava acontecendo
tipo uma vez a cada dois anos.

Primeiro um pouco de contexto. Em 2001 eu estava no meio do doutorado,
estudando pelo menos umas 12 horas por dia, e pensando nos meus
assuntos de pesquisa quase o tempo todo, até quando eu dormia. Eu
tinha um bocado de tempo ``livre'', e eu aproveitava pra fazer aulas
de coisas como circo - acrobacia aérea - e Tai-Chi, pra eu ter mais
energia e não enlouquecer.

Pois bem. Até alguns anos antes disso a minha estratégia de vida era
baseada em eu ser magro e frágil e ser covardia alguém me bater; ou,
em outras palavras, em os caras fortes nunca me verem como alguém que
competia com eles.

Eu nunca soube lidar com as babaquices machistas que os caras falam
pros outros amigos babacas machistas rirem, e em 2001 eu comecei a
pensar o seguinte: alguém tem que começar a mostrar pra esses caras
que nem todo mundo acha essas babaquices engraçadas - e como ninguém
mais tá fazendo isso, porque não tem ninguém mais sentindo muita
necessidade de fazer isso, esse alguém vai ter que ser eu.

A gente acha que Tai-Chi deixa as pessoas calmas, mas no meu caso não
foi bem assim - Tai-Chi me deixou poderoso, controlado e preciso.

Eu vou contar a história da segunda vez em que eu ``fiz alguma
coisa''.

Era 2004, acho, e eu e umas dez outras pessoas passamos meses
preparando um evento de Software Livre. O evento ia acontecer num
domingo, de manhã e de tarde, num espaço cedido pelo Insitituto de
Física da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, e quase todo
mundo da organização morava no Rio.

No sábado de tarde eu e mais uma meia dúzia de pessoas fomos pra lá
pra UFF pra instalar nos computadores as coisas que faltavam. A gente
achava que ia ser fácil, mas lá ficou claro que a gente ia ter que
virar a noite trabalhando... e às duas horas da manhã a gente viu que
a gente ia ter que correr na casa do Diogo, num subúrbio do Rio, pra
pegar o computador dele e fazer sei lá mais o quê, pra poder terminar
tudo mais rápido.

A gente foi no fusca do Luís, com o Luís dirigindo, e na volta, lá
pelas 7 da manhã, a gente pegou duas pessoas no caminho - dois
palestrantes do evento - pra dar carona pra elas pra Niterói.

A cena que eu quero contar aconteceu no meio da ponte Rio-Niterói. No
banco de trás do Fusca estávamos eu, à direita, o Diogo no centro, e à
esquerda um dos caras pros quais a gente deu carona. Não lembro o nome
dele, então vou chamá-lo de O Imbecil.

O Imbecil tava falando que tudo era coisa de viado - era a única
``brincadeira'' que ele conseguia fazer pra socializar.

Aí ele disse que gato era coisa de viado.

Aí o Diogo disse que tinha 8 gatos.

A gente tinha acabado de passar horas na casa do Diogo com os 8 gatos.

Então. Eu já tava vendo tudo vermelho, e eu sabia que se eu não
fizesse nada, se eu ficasse em silêncio e fosse cúmplice daquela
idiotice, eu ia passar os meses seguintes muito mal.

Eu disse pro Imbecil que esse negócio de ``isso é coisa de viado'' é
coisa de viado.

Eu disse que se ele tratava a gente como homens eu ia tratar ele como
homem também.

Eu me debrucei por cima do Diogo, que, lembrem, era quem estava no
meio do banco de trás, e apertei o pescoço do Imbecil com toda a
força, e enquanto ele ficava roxo eu berrava que ele era um covarde e
outras coisas, e mandava ele reagir. Eu queria ficar batendo a cabeça
dele contra o vidro do carro, mas ele ficou molinho pra eu não bater
muito, e não deu pra eu bater.

Não sei quanta experiência vocês têm com essas coisas, mas quem tem
alguma sabe que nós somos animais - brigas são simplesmente situações
de muita energia, e elas em geral acabam quando o vencedor se define,
ou quando a gente resolve de algum outro jeito, juntos, essa energia
toda que apareceu, e transforma essa energia de briga em outra coisa.
Em brigas de cães ou de ursos, por exemplo, raramente alguém se
machuca muito - a briga termina antes. Com humanos é assim também, em
geral.

Aí a gente chegou no evento, e as pessoas ficaram sabendo dessa
história, em várias versões - algumas pessoas até perguntaram pro
Imbecil o que eram aquelas marcas de unha no pescoço dele - e claro
que não aconteceu nada comigo... primeiro porque a história era
engraçada e exótica o suficiente pras pessoas ficarem à vontade de
ficar do meu lado ao invés de do lado do Imbecil, e segundo porque o
traço principal do universo masculino, pelo menos aqui no Brasil, é o
direito à babaquice. Essa foi uma das poucas vezes nas quais eu exerci
o meu direito à babaquice ao invés de ficar sempre tentando
pateticamente ser racional e respeitável, e foi incrível!...

\medskip

Essa história é uma das mais preciosas que eu tenho entre as minhas
memórias. Desculpem, eu sei que muitos de você vão ficar chocados, mas
essa história é como uma pequena jóia pra mim... talvez - e isto está
me ocorrendo agora - porque foi uma das pouquíssimas vezes nas quais
eu consegui usar o meu lado masculino, que em geral era tão
problemático, pra fazer algo espetacular.





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