Warning: this is an htmlized version!
The original is here, and
the conversion rules are here.
# (find-angg "MONTREAL/sexophobic_as_answer")
# (find-TH "gender")
# (find-TH "2014-tr")
# (find-sh0 "recode l1..u8 < genero.org | grep -v raw-text > genero-u.org")
# (find-fline "genero-u.org" 4)
# (org-html-export-to-html)
# (find-sh0 "cp -v genero-u.html genero.html")
# file:///home/edrx/ORG/genero.html
# (eepitch-shell)
# (eepitch-line "Scp-np genero.html $TWUP/ORG/genero.html")
# http://angg.twu.net/ORG/genero.html

#+TITLE: "Sexofóbico" como resposta

Versão: 2015mar15. Links: 
@@html:<br>@@Esta página: http://angg.twu.net/ORG/genero.html
@@html:<br>@@Mais textos meus sobre gênero:
http://angg.twu.net/gender.html
@@html:<br>@@Minha página (geral): http://angg.twu.net/
@@html:<br>@@[[https://www.facebook.com/eduardo.ochs][Minha página no Facebook]]
@@html:<br>@@ /Me mande e-mail!/ Eu sou o: eduardoochs@gmail.com

#+HTML: <p><br/></p>

* Introdução
** DONE Introdução mesmo
Eu descobri que era transgênero em 2002, mas só consegui me decidir a
começar a terapia hormonal - ou, pra usar um termo mais curto, a
"transição" - em 2014. A partir disto ficou bem mais fácil eu
conseguir lidar com o que eu sou, e eu passei a ter um rótulo curto
que me explicava razoavelmente bem: "transexual".

Este texto é feito de vários fragmentos, uns que eu escrevi
antes da "transição", outros depois, e eu comecei a trabalhar
nestes fragmentos com vários objetivos - /muitos/ objetivos.

#+HTML: <p><br/></p>

O meu primeiro objetivo era submeter um texto super caprichado pra
alguma conferência de gênero, ir lá apresentá-lo, conhecer
um monte de gente legal, e aí eu passar a me sentir menos isolado e
a minha auto-estima melhorar um pouquinho. Repara, esse primeiro
objetivo correponde a dialogar com um grupo específico: os
militantes de gênero que vão em conferências.

#+HTML: <p><br/></p>

O meu segundo objetivo era poder responder coisas para as pessoas
"normais", as que acham que esse negócio de transição é
maluquice total e que não resolve nada, só piora tudo, e não
tem nada a ver comigo... repara, hoje em dia muitos "normais" já
sabem que a expectativa de vida de uma travesti no Brasil é de 30
anos - então porque eu iria querer virar trans? Seria por fetiches
sexuais? "Mas as travestis sofrem tanto!"... Como é que eu explico
pra essas tais pessoas "normais" que o meu caso não tem quase nada
a ver com roupas ou com sexo? E a gente está sendo bombardeado pela
mídia a toda hora com reportagens sobre crianças trans que
"sempre souberam" que o gênero delas não é o que
atribuíram a elas no nascimento... bom, esse não era o meu caso,
eu era tímido, esquisito e pensava muito em suicídio, mas eu
até me virava com essa história de "ser menino"... então,
como eu não encaixo na categoria do "sempre achou que era menina"
deve ser porque eu "não sou trans de verdade", não?... Além
do mais, as pessoas "normais" costumam achar que "passabilidade" é
o maior desejo das pessoas trans - e um dos motivos de eu adiar o
início da minha transição por tantos anos era porque eu
pensava "eu não posso fazer algo tão sério enquanto eu tiver
expectativas irreais", e "passar por mulher" me parecia uma
expectativa irreal... e um dos cliques que me permitiu começar a
transição foi que eu vi que "ser homem" era tão infernal pra
mim que "virar trans" bastava; mudar de "homem" pra "trans" já
seria um alívio enorme, se eu algum dia chegaria a "mulher" ou
não, isso não tinha importância.

Então, as pessoas "normais" poderiam ter um monte de perguntas
sobre mim, /mas elas dificilmente as fariam explicitamente/ - e eu vi
que eu iria viver com medo dessas perguntas assim mesmo! Como lidar
com isso? Bom, aí eu resolvi que eu iria "virar trans" sem nenhum
alarde, mas, por outro lado, sem nenhum segredo - as respostas
/estariam disponíveis/, por exemplo na minha homepage.

#+HTML: <p><br/></p>

Sobre o terceiro objetivo, um amigo meu, o Maurício, disse uma vez
uma frase que mudou a minha vida: "resumiu tanto que ficou errado".
Tem respostas que não dá pra resumir além de um certo ponto
sem elas ficarem erradas, e tem perguntas que são feitas de um
jeito que espera uma resposta curta também... e a resposta certa
não cabe numa resposta curta. Como é que a gente se defende
dessa cultura que acha as respostas têm sempre que ser curtas, e
que gênero é uma série de classificações e
definições e de questionários cheios de perguntas de "sim" ou
"não"? O terceiro objetivo deste texto é mostrar alguns jeitos
da gente se defender da exigência de respostas curtas, algumas
brechas... e esses jeitos tem a ver com /tom/: que tom a gente vai
escolher? Um tom jonalístico? Confessional? Científico,
médico? Denunciador? Vitimizante? Acadêmico?

#+HTML: <p><br/></p>

O quarto objetivo é explicar esta idéia aqui: /que eu demorei
tanto pra transicionar por uma espécie de heroísmo idiota/. Tem
pessoas que têm doenças brabíssimas, como doenças de pele
grotescas ou um tumor na testa do tamanho de um braço, que fazem
com que elas nem possam andar na rua direito porque os outros ficam
horrizados com elas - e mesmo assim essas pessoas têm uma puta
garra pra viver, elas se tratam, aproveitam a vida como podem, e
são felizes... isso só pode ser porque ter um corpo "perfeito"
não é tão importante, ou seja, /a gente tem que ser capaz de
se virar com o corpo que tem/, e aliás é bom que cada pessoa
saiba se virar com os defeitos físicos dos companheiros
também...

Eu queria ser alguém acima de preconceitos, que não
discriminasse ninguém por a pessoa ter um corpo fora do padrão,
e eu esperava que como uma "recompensa" do universo por isso eu fosse
conseguir me cercar de pessoas que iriam até me ajudar a lidar com
as dificuldades que eu tinha com o meu próprio corpo, que estava
todo errado - porque eu parecia um homem, né... então eu vivia
repetindo pra mim mesmo que o corpo não pode importar muito, ele
tinha que ser algo muito secundário, irrelevante, até, e que as
pessoas têm que se ligar pela alma...

Eu repetia pra mim mesmo que pessoas sobrevivem a guerras e
genocídios, a doenças horríveis e tal, e eu não podia ser
fresco, eu tinha que lidar heroicamente com um corpo disfuncional...
que se eu fosse fresco as pessoas não iriam gostar de mim, e se eu
fosse heróico elas iriam, e eu seria até uma referência de
como lidar com disforia de gênero deixando o corpo pra lá - /o
meu exemplo ajudaria outras pessoas/...

Como é que eu consegui mudar de posição? Não foi fácil!
Primeiro eu vi que eu não tinha mais absolutamente nada a perder -
mas além disso eu ainda precisei encontrar vários motivos extras
pra eu me livrar do pensamento de que a transição seria só um
capricho, uma frescura, porque tinha "só" a ver com o corpo... Um
lado meu impunha um pedágio, e dizia: "você só passa além
daqui quando tiver conseguido justificativas muito boas,
impecáveis". Aos poucos eu encontrei esses motivos, que me
permitiram ultrapassar o pedágio - eles não são óbvios, e
eu quero compartilhá-los. As palavras-chave são "dicionário",
"voz", "memória", "armadura", "espelho".

#+HTML: <p><br/></p>

O quinto objetivo tem a ver com o título. Numa época, em que era
importantíssimo eu definir a minha orientação sexual e as
pessoas em torno de mim não entendiam a idéia de "gênero" de
jeito nenhum, eu dizia que eu era sexofóbico... e às vezes isso
era a resposta perfeita pras perguntas sobre a minha orientação
sexual, porque as pessoas ficavam curiosas do jeito certo, e depois de
mais 5 minutos de conversa elas já mais ou menos que me
entendiam... mas às vezes dava tudo errado, elas diziam que eu era
doente, tinham chiliques e começavam a me provocar e me agredir.
Então: como é que gente complicada como eu pode lidar com uma
sociedade tão sexocêntrica quanto a nossa? Vou contar umas
idéias e umas historinhas sobre isso numas seções lá no
meio deste texto.

#+HTML: <p><br/></p>

O último objetivo, ou motivo, é totalmente pessoal. Eu passei a
maior parte da minha vida "sem voz"; deixa eu explicar. Às vezes a
gente se cala sobre certos assuntos porque tem "certeza" de que
ninguém vai nos entender... aí a gente fica repetindo pra gente
mesmo "deixa pra lá", "não tem importância", etc, toda vez
que os assuntos voltam à nossa cabeça. Os efeitos desse "deixa
pra lá" de anos às vezes são enormes, e têm até
reflexos físicos - a gente fica "pra dentro" e "pra baixo". E às
vezes alguém faz uma grosseria absurda com a gente que a gente
não consegue responder na hora, e depois a gente fica semanas
pensando no que poderia ter respondido, e tentando preparar uma
resposta pra usar da próxima vez... eu descobri, quando eu era
adolescente, acho, que escrever me ajudava a organizar minhas
idéias, a preparar respostas "pra usar da próxima vez", e, mais
importante ainda, me permitia parar de pensar nessas coisas...
escrevendo eu podia parar o trabalho de preparar a resposta, ou a
explicação, perfeita na hora que eu quisesse e retomá-lo
depois sem perder as idéias que eu já tinha tido.

Este texto acabou virando algo como a gaveta na qual a gente guarda
nossas anotações. Alguns textos - seções, na verdade - eu
acho fantasticamente bons, mas muitos me dão vontade de me
desculpar - tipo, "desculpa, esse aí é algo que eu escrevi pra
mim, pra não perder as idéias... eu quero reescrevê-lo, mas
ainda não deu tempo".

** HALF O dicionário

No início de 2014 eu tive uma depressão monstro, de passar dias
praticamente sem conseguir levantar da cama... e fora da cama, mas
perto dela, numa mesa, tinha uma pilha de provas que eu tinha que
corrigir, e que ficavam cada vez mais atrasadas. Eu tava /muito/ mal.

Aí eu peguei um dinheiro que eu tinha guardado e fiz uma viagem pra
Vancouver, pra, entre outras coisas, tentar encontrar uma grande amiga
que eu não via há anos... e pra passar uns dias num lugar que
não fosse tão doente quanto o Rio de Janeiro.

Deixa eu dar um pouco mais de contexo.

No meio do meu doutorado eu consegui uma "bolsa sanduíche" que me
permitiu passar os primeiros 8 meses de 2002 no Canadá. Aí eu
saí do Rio de Janeiro, onde eu me sentia um alienígena e onde as
pessoas me chamavam de doente - vou contar bem mais sobre isso depois
-, e fui pra Montreal, onde em três dias eu já estava me
sentindo mais em casa do que eu jamais tinha me sentido no Rio...
lá as pessoas me entendiam, achavam o meu jeito de funcionar fofo,
e confiavam em mim. Eu fiz amigos incríveis lá. Um desses meus
amigos - o melhor amigo, aliás - era o Chris.

Depois que eu voltei pro Brasil eu achei que eu ia conseguir manter
contato com todos os amigos de lá do Canadá, mas quando a nossa
vida é uma luta só e a gente nunca nem consegue relaxar a gente
acaba tendo dificuldade de pra mandar e-mail, carta, ou telefonar...
é fácil mandar carta quando a gente pode contar do que vai bem e
dizer que está com saudade, mas é super difícil escrever
quando tá tudo uma merda e o tempo que a gente gasta escrevendo a
carta faz a gente ficar culpado porque a gente devia estar tentando
trabalhar.

Um dia, depois de anos, eu mandei um e-mail pro Chris, super
tímido, começando com algo como "Oi, você lembra de mim,
andamos juntos na época tal, eu era o cara brasileiro branco e
magro com um cabelo black power"... e ele respondeu hiper fofo, tipo
"claro que lembro, bobinho!" - ele também lembrava de centenas de
cenas - e disse "...mas passa a usar esse outro e-mail aqui, porque eu
tou mudando de sexo e vou parar de usar os contatos com nomes
masculinos".

Eu fiquei muito grilado, era tipo a quinta vez que alguém me dizia
isso, e eu vivia pensando: "porra, todos os meus amigos tão mudando
de sexo menos eu... porque é tão fácil pras pessoas terem
certeza do que querem, e pra mim é tão difícil?"...

Então no início de 2014 eu viajei pra Vancouver, e uma das
coisas que eu ia tentar fazer lá era encontrar a Elizabeth, que
tinha sido o meu melhor amigo em Montreal 12 anos antes... Eu nem
sabia se isso ia dar certo, porque a Elizabeth parecia tão enrolada
pra responder e-mails pessoais quanto eu, mas no resto do tempo eu
iria tentar colar no pessoal da livraria anarquista lá de
Vancouver, porque as pessoas que trabalham nesses lugares são
voluntários legais cheios de bons contatos.

Eu e a Elizabeth acabamos conseguindo nos encontrar /várias/ vezes,
e tivemos muitas conversas enormes... e logo na primeira dessas
conversas apareceu uma coisa incrivelmente importante, que me deixou
pensando durante semanas, que foi a seguinte. Nós estávamos
tentando contar as novidades, mas eram tantas que a gente não tava
conseguindo entender o que o outro contava porque a gente se perdia,
então a gente resolveu mapear o que cada um de nós tinha feito
nesses doze anos, e a gente começou a organizar uns diagramas que
tinham os anos, onde a gente estava, em que a gente estava trabalhando
ou o que estava estudando, com quem a gente estava namorando ou casado
ou o quê, ou se estávamos solteiros de que jeito, as nossas
tentativas em cada época de nos definir numa orientação
sexual e numa de gênero, coisas assim... e num momento eu usei a
expressão "príncipe encantado", e ri, e disse que tem várias
expressões que eu uso que parecem ter o gênero trocado, e umas
eu só posso usar com pouquíssima gente, mas outras, como
"príncipe encantado", são engraçadas do jeito certo, desarmam
as pessoas e criam uma curiosade boa, e aí eu me permito usá-las
com bastante gente...

Aí a nossa conversa passou pra um outro nível, pra uma
espécie de meta-conversa, e a gente começou a falar de como a
gente gasta muita energia pra traduzir as coisas que a gente pensa e
sente pra uma linguagem que os outros entendam...

A Elizabeth disse: "pois é, depois que eu mudei de sexo eu passei a
gastar infinitamente menos energia com essa tradução".

Aos poucos, nos dias e nas semanas seguintes, eu fui vendo quanta
coisa é interpretada de um jeito quando é dita por um homem e
intepretada diferente quando é dita por uma mulher; eu vi como eu
vivia tendo praticamente certeza de que tudo que eu queria dizer de
mais importante iria ser interpretado errado, apesar dos meus
esforços enormes de tradução... eu vi que quando a gente vai
interpretar o que uma pessoa diz ou faz a gente usa um "dicionário"
se a pessoa é homem, e outro "dicionário" diferente se a pessoa
é mulher; e eu vi que muitas das coisas mais importantes pra mim
não podem ser expressas nas "palavras", no "vocabulário" do
dicionário masculino.

Um dos primeiros exemplos que me veio foi "elogio". Quando um homem
faz um elogio isso "quer dizer" coisas bem diferentes do que quando
uma mulher faz um elogio.

Por mais que a gente tente ser puro e transparente as pessoas vão
sempre procurar, e "ver", segundas intenções por trás de cada
gesto nosso - e, por trás dessas segundas intenções, um
padrão, o modo como a gente lida com a nossa energia,
principalmente com desejo e com afeto.

Eu tinha pouquíssima afinidade com o modo de funcionar masculino.
Eu vivia até em guerra com o mundo masculino, e até me culpando
e me sentindo péssimo toda vez que alguém fazia alguma babaquice
machista perto de mim e eu deixava isso impune, sem atacar a pessoa...

Por mais que eu lutasse e sinalizasse "eu não sou" e "eu não
pertenço" as pessoas me "liam" como alguém com padrões,
códigos, desejos e segundas intenções masculinos... e alguma
coisa em mim me dizia que eu não podia criticá-las por isso,
porque o que acontecia era que elas olhavam pra dentro de mim,
procuravam algo de masculino no meu núcleo e /encontravam/. Por
mais que eu combatesse esse lado homem/monstro dentro de mim ele
estava lá, e as pessoas o percebiam. Essa coisa masculina no meu
núcleo podia ser pequena, atrofiada, e estar sob controle, mas ela
/estava lá/.

#+HTML: <p><br/></p>

Aí eu entendi que eu /podia/ começar o tratamento hormonal mesmo
sem ter nenhuma expectativa de ter "passabilidade" no futuro. Eu
não precisava de uma transição de "homem" para "mulher", que
eu nunca ia conseguir que fosse completa o suficiente; se eu mudasse
de "homem" para "trans" já seria suficiente pra mim. Bastava que eu
tivesse a marca simbólica de "eu comecei a terapia hormonal", pra
eu poder sentir o "eu não pertenço ao mundo masculino" com bem
mais certeza, e eu parar de me sentir um covarde ou uma farsa. Não
era mais "eu /preciso/ de tratamento hormonal" - agora era algo como:

#+BEGIN_QUOTE
  Eu trabalhei pra caralho - eu tentei me encaixar no mundo masculino
  de vários jeitos durante décadas - e não preciso dizer pra
  mim mesmo "tenta mais um pouquinho". Eu tenho um emprego estável
  como professor numa universidade federal. Eu tenho "inteligibilidade
  social" quase zero, porque todo mundo me "lê" (erradamente!) como
  homem - e isso me deixa mal, e paralisado. Eu não tenho nada a
  perder. Eu /mereço/ tentar a terapia hormonal. Continuar dizendo
  "ainda não" é covarde, e mesquinho.
#+END_QUOTE

Essa sacação sobre o "dicionário" e sobre quanta energia eu
gasto pra "traduzir" o que eu penso e sinto pra termos que os outros
entendam pode parecer algo pequeno, mas foi o que fez a balança
virar. Eu iria começar a TH, mesmo que fosse algo só pra mim e
pra uma meia dúzia de pessoas queer e trans que iriam entender o
que eu estava fazendo, me levar a sério, e me dar apoio.

A TH acabou funcionando infinitamente melhor do que eu esperava.

** HALF Querelle

Quando eu tinha 14 anos abriram um cineclube perto da minha casa - o
Cineclube Estação Botafogo. Eles tinham um esquema no qual a
gente podia virar sócio pagando só um pouquinho por mês e
aí assistir quantos filmes quisesse. Eu comecei a passar muitas
tardes por semana lá.

Quando eu tinha uns 15 anos eu assisti Querelle, do Fassbinder, feito
em cima do livro do Jean Genet. Até aquele momento eu nunca tinha
ouvido falar nem de Fassbinder, nem de Genet.

Antes de falar do filme deixa eu explicar umas coisas sobre o mundo no
qual eu vivia. Eu vivia num mundo incrivelmente homofóbico. "Viado"
era só um xingamento - a gente não conhecia ninguém que fosse
homossexual, e aliás eu tinha todos os indícios de que
ninguém da minha família conhecia alguém que conhecesse
alguém que conhecesse alguém que fosse homossexual - mas a gente
passava o tempo todo fazendo todo o possível pra não "ser
viado", porque "ser viado", mesmo que fosse durante um instante só,
significava cair num abismo social sem volta, era pior do que ser um
leproso e um pária, era a gente passar a merecer porrada de todo
mundo a toda hora, até a gente desaparecer e apagarem todos os
traços (bons) da nossa existência.

Eu sabia que esse mundo super homofóbico era um mundo de mentiras e
medo. A gente vivia em alerta, sempre preparado pra reagir quando a
gente fosse sacaneado pelos colegas - a gente tinha que peitar na hora
a pessoa que nos desafiava e dar uns motivos que mostrassem que a
gente não era viado... e, bom, esses motivos eram improvisados na
hora, então claro que não eram algo nem muito profundo nem muito
verdadeiro...

Vários traços meus eram "coisas de viado" - tipo eu ler muito,
detestar atividades físicas, não gostar de ser escroto com os
coleguinhas, e ficar mal quando me sacaneavam - então a minha
situação era bem complicada, não "ser viado" me tomava muita
energia.

Mas deixa eu voltar pro filme.

Todos os atores do filme são homens super musculosos, e a única
personagem feminina é a Madame, a dona do bordel da cidade em que o
navio do Querelle está ancorado. O Querelle, que é o personagem
principal, é um marinheiro que está sempre testando sua coragem
ultrapassando cada vez mais limites. Ele já vinha cometendo
pequenos crimes, e ele resolve que está na hora de experimentar
matar alguém pela primeira vez. Ele assalta um cara numa rua
escura, mata esse cara a facadas, e logo depois resolve experimentar
algo que é um tabu dez vezes maior que o assassinato.

O bordel da cidade tem uma regra que todo mundo conhece. Quem quiser
transar com a dona do bordel tem que jogar dados com o marido dela,
que é um cara negro enorme. Se o cara ganhar nos dados ele transa
com a dona do bordel, e se ele perder ele tem que dar a bunda pro
marido dela.

O Querelle vai no bordel, diz que quer transar com a Madame, joga
dados com o marido dela, e rouba nos dados - ele roda um dos seus
dados pra ele dar um valor menor, pra /perder/ no jogo.



Assistir Querelle me fez repensar toda a minha noção de
coragem... e, além disso, o filme quase que dava uma fórmula, em
dois passos, pra se a gente quisesse sexo homo: 1) seja incrivelmente
corajoso, 2) vá pro submundo.

Eu até hoje ainda não sei qual seria uma "fórmula"
correspondente pra quando a gente sonha em poder deitar a cabeça no
colo do nosso melhor amigo.

** HALF Ogro

Logo depois que o meu pai morreu um amigo dele, chamado Paulo Blank,
resolveu organizar uma cerimônia de 30 dias pra homenageá-lo. O
Paulo inventou que uma das coisas que teria nessa cerimônia era que
eu recitaria umas coisas em Hebraico - na verdade eu leria a
pronúncia disso escrita no nosso alfabeto, porque eu não sei uma
letra de Hebraico - e isso teria um efeito mágico: eu me
reconciliaria com a memória do meu pai, o perdoaria, e seria algo
super comovente, eu começaria a chorar e seria abraçado e
consolado pela comunidade judaica presente...

Eu achei essa idéia um absurdo e negociei o seguinte: eu toparia
recitar as formulinhas mágicas se eu pudesse escrever um texto meu
e lê-lo na cerimônia também. O que eu acabei escrevendo
começava assim:

#+BEGIN_QUOTE
  Todo mundo lembra do meu pai como uma pessoa marcante. Ele era
  engraçado, espirituoso, surpreendente, e frequentemente
  inconveniente. Isso certamente tinha a ver com uma estratégia de
  sobrevivência. O meu pai sobreviveu ao holocausto, e num certo
  momento ele era a única criança do campo. Todos cuidavam dele,
  todos depositaram as suas esperanças nele, todos prestavam
  atenção nele, e, mesmo que à distância, todos ficavam
  imaginando o que ele seria depois. Acho que durante o resto da vida
  dele quase tudo que ele fazia era uma resposta a milhares de
  pessoas. Ele passou a vida inteira respondendo tanto aos horrores
  pelos quais ele passou quanto às pessoas que tentaram
  protegê-lo dos horrores, deixando ele viver num mundo à parte
  no campo. Depois ele viveu em outros mundos à parte - fazendo
  papel de gênio.

  Ele me educou da melhor forma que ele pôde, mas isso queria dizer
  que ele achava que eu tinha que ser forte e brilhante. Ele tinha
  expectativas altas e me testava o tempo todo. Ele não sabia o que
  era relaxar. Ele tinha medos muito grandes, era defensivo, mordaz,
  irônico. Num certo momento eu me toquei de que se eu tinha visto
  o meu pai falar "a sério" - sem ironia - uma ou duas vezes a
  cada ano, era muito.

  Eu era fresco e mimado porque eu tinha revistas em quadrinhos e
  brinquedos, vivia com os meus pais numa casa grande, a gente tinha
  empregados, e eu nunca tinha passado fome. Eu era um burro porque
  aos 7 anos de idade eu não tinha uma ``linguagem acadêmica''.
  Eu era preguiçoso porque eu nunca tinha pego uma caixa de
  engraxate pra ganhar o meu próprio dinheiro. Eu era infantil.
  Esse era o mundo no qual eu vivia antes dos 10 anos de idade. E eu
  tinha certeza de que todo mundo era assim, como eu, e que eu era
  incompetente porque eu era medroso e não conseguia nem me livrar
  dos meus medos nem ter a confiança que os outros garotos tinham.

  Meu pai tinha um mecanismo muito difícil de se lidar. Ele nunca
  assumia o que fazia - aliás ele nunca reparava no que fazia. Ele
  não tinha um ``eu'' com o qual ele lidasse lucidamente. Ele só
  lidava com ``verdades'' e com ``lógica''. Quando ele era
  agressivo ele nunca notava. E ele sempre tinha razão. Não era
  ``achava que tinha razão'', porque no mundo dele não existiam
  ``achos''. E nós não tínhamos provas científicas e
  argumentos irrefutáveis de que ele tinha sido agressivo.
  Aliás, quando nós conseguíamos algum e ele entendia ele
  dizia que não tinha tido a intenção.

  (Eu até hoje tenho medo das pessoas que fazem as coisas sem
  prestar atenção e que quando fazem algo ruim ``não tinham a
  intenção''. Não sei como reestabelecer um diálogo com
  elas quando há algum desentendimento. Me sinto muito mais à
  vontade com gente assumidamente cruel - eu frequentemente sei
  desarmar pessoas cruéis fazendo algo engraçado, e aí
  consigo conversar com elas.)

  Meu pai foi uma pessoa muito marcante pra mim também. Eu passei a
  vida inteira me defendendo dele.

  Eu me afastei dele - fisicamente - quando pude, mas isso não
  resolve tudo. Quando a gente está longe de uma pessoa que é
  importante pra gente aquela pessoa continua com a gente - como
  memórias, introjetada. Eu tentei me afastar do meu pai tanto
  fisicamente quanto emocionalmente. Mas o fantasma dele continuava
  comigo, me assombrando. Me atropelando como um trator. Me dizendo
  coisas pras quais eu procurava respostas, e não encontrava
  nenhuma resposta - porque eu precisava de respostas que ele fosse
  entender, mas a especialidade dele era não entender nada.
#+END_QUOTE

Aí depois disso tem um trecho que eu vou pular, e aí vem a parte
que é realmente importante pra este texto aqui sobre gênero.
Lá vai:

#+BEGIN_QUOTE
  O meu pai dizia que o Holocausto era tão pior do que qualquer
  outra coisa que perto dele qualquer outra atrocidade, passada,
  presente ou futura, perdia a importância. E isso era muito
  opressor, porque queria dizer que o mundo tinha uma dívida
  infinita com ele - ele podia fazer qualquer coisa, podia explodir a
  qualquer hora, pra descarregar coisas que aliás ele nem entendia,
  e ele seria sempre desculpado. E isso fazia todo o sentido, mas era
  insuportável.

  Eu levei 30 anos pra conseguir lidar abertamente com isso - e foi da
  seguinte forma: "ele tinha um crédito gigantesco por ter passado
  pelo que passou. Mas esse crédito não é infinito, e agora,
  depois de décadas, ele acabou". E esse corte era algo bem mais
  pesado do que parece - era algo inadmissível, pra todo mundo. Eu
  me dispunha a ser considerado um monstro, por ele, pela minha
  família, pelos amigos dele, talvez até pelos meus amigos - a
  gente não se recusa a pagar a nossa dívida com a família -
  a dívida de cuidar de quem cuidava da gente - impunemente.
  Então eu não pediria mais ajuda a nenhuma dessas pessoas.

  Então essa foi uma das situações na minha vida nas quais eu
  decidi sacrificar a minha respeitabilidade, todo um grupo grande de
  contatos, toda uma rede social - a rede de proteção que a
  gente tem por default quando nasce numa certa classe, com um ou dois
  dos nossos pais sendo judeus -

  Na verdade eu só fiz isso porque eu tinha muito pouco pra perder.
  Pode parecer meio estranho isso da gente se afastar da família
  "por não ter quase nada pra perder" - e em enterros a gente
#+END_QUOTE

etc, etc, etc. Bom, porque é que comecei falando disto - dessa
cerimônia e da minha relação com o meu pai? Por dois motivos.
O primeiro é quase impossível falar sobre gênero sem falar em
opressão e sofrimento e sem /quantificar/ esse sofrimento, e eu
não quero falar da hierarquia das opressões porque toda vez que
a gente compete por quem é mais oprimido, e portanto mais
/merecedor/, eu perco de lavada, porque sob muitos aspectos eu fui e
sou incrivelmente privilegiado... então pra eu não passar a
minha vida inteira só calado num canto e invisível eu me treinei
pra nunca competir na hierarquia das opressões - e eu acho que esse
treino é bem util, e o meu treino se reflete nas minhas escolhas de
modos de escrever... então quem estiver tentando aprender a não
competir na hierarquia das opressões talvez consiga aprender alguns
truques novos quando reler isto aqui com atenção.

O segundo motivo é que muita gente tende a querer localizar a
origem das nossas questões sexuais ou de gênero num lugar só,
e o meu pai era tão ogro - até quase psicopata nas
relações com algumas pessoas da família - que as pessoas
dizem "ah, você tem uma relação péssima com o masculino
por causa da sua relação com o seu pai... você só precisa
resolver essa coisa com o seu pai na sua cabeça" - e o meu ponto
é o seguinte: coisas que estão nas camadas mais superficiais e
recentes das nossas memórias podem ser modificadas facilmente;
às vezes até alguém nos dá um argumento racional pra gente
ver como o nosso modo de lidar com aquilo está ruim, e a gente diz
"nossa, você tem razão", e, plim, mudou. Coisas que estão em
camadas mediamente profundas são mais difíceis de mudar, porque
a gente já fez mais conexões a partir delas, então é como
tentar arrancar uma planta cujas raízes se estendem num raio de
meio metro, exige bem mais energia do que arrancar uma erva que nasceu
na semana passada... e certas coisas, como as nossas relações
com os nossas pais, têm origens tão antigas e profundas que
são como plantas cujas raízes se entremeiam com absolutamente
todo o resto que existe - arrancá-las completamente, se fosse
possível, demandaria uma energia dez vezes maior do que a que a
gente tem, e algumas dessas raízes talvez estejam fundo demais,
estão além do que a gente conseguiria alcançar com o racional
e a linguagem... então hoje em dia eu acredito que o melhor que eu
posso fazer é o seguinte:

  (continuar)

* Imagens
** DONE A princesa

Deixa eu usar uma imagem. A sua família se muda pra outra cidade, e
você vai pra outra escola. Na sua escola antiga você era só
uma criança introversiva que não se relacionava direito com
ninguém. Na escola nova alguma coisa deu um clique - outra
criança te perguntou alguma coisa e achou as suas respostas
interessantes, e em poucos dias você estava sendo convidado pra
festas - na escola antiga você era esquisito por ser totalmente
incompetente pra esportes; e as festas eram só uma confusão de
pessoas barulhentas sendo mais barulhentas ainda, pessoas correndo pra
lá e pra cá bebendo e se sacaneando, todo mundo querendo que
tudo fosse como nas festas de adolescentes dos filmes americanos - mas
na escola nova ser introversivo não é pecado, você foi
adotado por um grupinho que às vezes se reúne pra conversar por
horas, e eles sabem que as pessoas que falam menos são as que às
vezes aparecem com as melhores idéias, e conjuram as melhores
imagens -

Aí um dia - desculpa, tá ficando difícil escrever sem
gênero, então deixa eu usar o feminino - uma das suas melhores
amigas te convida pra uma festa maior, em que vai ter bem mais gente,
e onde você não vai conhecer praticamente ninguém. Você
acha essa amiga fascinante, ela acha você fascinante também, e
ela age de forma meio protetora com você. Vocês duas entram
juntas na pela porta da casa enorme cheia de gente, e naquele momento
você é a amiga daquela garota, e você compartilha um pouco da
aura dela, vocês são duas princesas entrando numa festa numa
castelo - e a sua versão anterior, a menina tímida da outra
escola, é só uma memória distante -

Eu vivi muitos anos acreditando que a vida era assim: que eu iria em
algum momento encontrar a festa certa, a em que as pessoas realmente
interessantes estavam, e eu entraria nela como uma princesa, e tudo
funcionaria... minhas qualidades, que eram algo praticamente sem valor
na escola enterior, iriam brilhar como um colar de diamantes
através de um vestido leve e semitransparente; eu seria adotada, e
a versão anterior de mim, que vivia em humilhação e vergonha,
se tornaria só uma memória distante.

** DONE Príncipe encantado

Algumas pessoas detestam a expressão "príncipe encantado",
porque acham que "isso não existe"... eu gosto dela.

/O príncipe encantado é alguém que nos salva por mágica./
Tem uma frase que é: "qualquer tecnologia suficientemente
avançada é indistinguível de mágica"... qualquer coisa que
o príncipe encantado saiba fazer que esteja muito adiante do que as
pessoas do nosso círculo sabem fazer é, num certo sentido,
mágica. Se as pessoas do nosso círculo chamam o diferente de
esquisito e de idiota, chamam o cara que não canta ninguém de
viado e não sabem conversar, então quem nos entende e nos aceita
e conversa com a gente é um príncipe encantado que nos salva
"por mágica".

Outra coisa legal da expressão "príncipe encantado" é a
seguinte: /todas as mulheres procuram um príncipe encantado/. Ora,
então os príncipes encantados, que devem ser muito poucos,
vão ser disputados a tapa! Como fazer com que eles nos escolham? O
que nós podemos fazer pra merecê-los, e como fazer com que eles
nos avistem no meio da multidão?...

Pior ainda: e se os príncipes encantados parecerem pessoas comuns,
como nós vamos avistá-los e reconhecê-los? E se eles não
estiverem prontos? Se da mesma forma que nós precisamos ser salvos
eles também precisam ser salvos um pouquinho? Se eles ainda são
só príncipes encantados em potencial? Se eles parecem sapos?...

Como é que nós podemos virar pessoas muito interessantes e
capazes de "mágica", e nos tornarmos amigos das outras pessoas
interessantes e capazes de "mágica"?

** DONE O pitbull
# (find-fline "~/MONTREAL/sexophobic_as_answer" "A pitbull (2013dec03)")

Eu estava voltando pra casa. Era um fim de tarde, hora do rush, e
tanto a rua quanto a calçada estavam lotadas. Nessa época um dos
assuntos mais discutidos, e que sempre aparecia nas manchetes dos
jornais, era o que fazer com os pitbulls. Eles eram os cachorros
preferidos dos "pitboys", que eram uns garotos ricos mimados e
vândalos que viviam em academias, e que eram hipermasculinizados e
que sempre que podiam se metiam em brigas. Já tinha tido uma meia
dúzia de casos em que os pitbulls dos pitboys tinham atacado e
mutilado, ou até matado, pessoas, e havia uma campanha em andamento
pra tornar pitbulls ilegais, exigindo que eles fossem todos mortos, ou
que pelo menos proibissem andar com pitbulls na rua ou tê-los em
casas que tivessem crianças.

Então, nesse dia eu estava voltando pra casa, andando por uma
calçada hiperlotada de gente, e eu vi que ao lado de uma banca de
jornais tinha um espaço praticamente vazio - e nesse espaço
tinha um garoto e uma garota, de algo entre 12 e 15 anos,
provavelmente irmão e irmã, conversando casualmente entre si, e
entre os dois o cachorro deles: um pitbull.

"Dois adolescentes com um pitbull"... nessa época isso normalmente
seria algo apavorante, mas os dois tinham um ar tão frágil, eram
super sensíveis, super atentos, e o cachorro deles, um pitbull
só um pouquinho mais velho que um filhote, olhava pra todo mundo
com uns olhões enormes, tristes, doces e carentes, e tentava
exprimir, não só com os olhos mas com o corpo todo, algo como
"ei, ei, por favor, por favor, vem brincar comigo, eu não vou te
fazer mal nenhum!"... e umas poucas pessoas até faziam contato
visual com o cachorro e olhavam ele nos olhos um instante, mas todo
mundo, absolutamente todo mundo, evitava ele por medo, e então ali,
no meio daquele semi-círculo colado na parede cinza de uma banca de
jornais, tinha um cachorrinho doce e carente fazendo toda a força
pra parecer que tinha metade do tamanho que tinha, e ele sabia que ia
ter que ser o mais fofo /possível/ pra que alguém chegasse
perto, mas ainda não estava funcionando, ele teria que ser ainda
/muito/ mais doce, mais puro, mais sincero... e ele continuava
tentando...

Essa cena - essa imagem - nunca me abandonou. Pra mim isto é
exatamente o que é ser homem - aliás, melhor, /andar dentro/ de
um corpo masculino - num país machista. A gente fala sobre
/privilégio masculino/, mas, bom, privilégio masculino quer
dizer principalmente você poder ser estúpido com as pessoas e
elas sempre te desculparem - porque elas sabem que você é um
animal irracional que não sabe se controlar.

Existe um papo de que o que as mulheres procuram e valorizam são os
homens sensíveis. Isto só é verdade até um certo ponto.

Deixa eu voltar pra história do pitbull mais um pouco. A gente tem
esse cachorrinho que está fazendo tudo, absolutamente tudo que pode
pra merecer que algum dia um "príncipe encantado" apareça e
faça carinho na cabeça dele por cinco segundos. Mas o que
acontece se vários anos se passam e ninguém se aproxima? Se todo
o esforço pra sinalizar pro mundo o quanto a gente quer ser fofo
é em vão? A gente gastou um tempo praticamente infinito polindo
nossos corações, examinando nossos pensamentos e devaneios,
procurando cada coisinha que poderia parecer um gesto bruto, e
tentando curar cada migalha de brutalidade por trás, e trocá-la
por atenção e cuidado...

Então: imagina que os anos se passam e a gente ainda é visto e
tratado por absolutamente todo mundo como um pitbull. Nossa doçura
e nossa esperança se desgastam, e dão lugar à amargura... e
todo mundo em torno da gente diz pra gente, com as melhores
intenções, coisas como: "mas você /é/ um pitbull!
Aproveite a sua pitbullzice! Se divirta..."

** TODO William Blake (e BDSM)
** HALF Náufragos e alienígenas

Há uns dez anos atrás o Laerte fez uma série de tirinhas com
um personagem que era um náufrago, que fazia as coisas que a gente
espera que os náufragos costumem fazer... ele andava com um
chapéu e roupas que ele mesmo tinha feito de palha, acendia
fogueiras, marcava os dias fazendo talhos numa árvore, e pensava:
"Hoje fazem dez anos que eu não vejo um ser humano" - só que a
árvore não era uma árvore, era uma poste numa esquina
movimentadíssima de uma cidade como São Paulo, então fazia
dez anos que ele vivia como um náufrago cercado de gente que ele
nem via e que ignorava ele, ou que tratava ele como um mendigo, sei
lá, ele fazia fogueiras e coisas assim e ninguém notava...

Eu acho isso muito genial. De vez em quando pessoas me perguntam
coisas sobre sexo, e eu só consigo responder: "Como assim?", e por
dentro eu penso "ué, sexo com quem?"... A frase do náufrago é
genial: "hoje fazem dez anos que eu não vejo um ser humano" - onde
estão as pessoas da minha espécie? Eu quero ir pro meu
planeta!...



Tem um filme com de 1976, "O homem que caiu na Terra", no qual o David
Bowie, magérrimo e com cabelo laranja, faz o papel de um
alienígena se passando por humano, que aparece no meio de uma
estrada no interior dos Estados Unidos, penhora duas alianças de
ouro pra conseguir dinheiro, arranja o telefone de um advogado, e ao
se encontrar com ele mostra pra ele uma "invenção", que é uma
câmera fotográfica que não precisa de filme num de
revelação... essa invenção é a primeira de várias
com tecnologias revolucionárias, e eles dois em sociedade criam uma
indústria gigantesca e biliardária. O Bowie passa a viver como
um gênio excêntrico e recluso, e no fim do filme a gente
descobre que um dos objetivos em ele virar biliardário era ele
poder construir um foguete pra voltar pro planeta dele, até levando
uma quantidade de água e de outras coisas que as pessoas do planeta
dele precisavam... mas agentes secretos sabotam a viagem dele, e ele
é mantido prisioneiro dentro das mansões dele e não vai pra
lugar nenhum. É tristíssimo.



Deixa eu citar dois trechos curtos do "Reflexões sobre a questão
gay", nos quais o autor, Didier Eribon, cita outras pessoas:

#+BEGIN_QUOTE
  George Chauncey cita testemunhos de gays que resolveram deixar as
  cidades pequenas onde moravam depois que um amigo lhes falou de uma
  estada em Nova York.
#+END_QUOTE

E este trecho é da autobiografia do Guy Hocquenghem:

#+BEGIN_QUOTE
  Os anos de infância são vagos, inspiração de um desejo
  de se diferenciar, aspiração frenética rumo a outras
  atmosferas, que enchem o peito de lamentos insaciados. Algo entre a
  promessa de ser um gênio, de fazer a revolução, de ser um
  santo ou um grande artista, ou ainda de se suicidar às primeiras
  marcas da idade adulta.
#+END_QUOTE

É engraçado, eu tinha exatamente isso quando criança - a
sensação de que eu ia ter que me esforçar feito louco, o
tempo todo durante décadas, pra poder ser um gênio quando eu
crescesse, e aí conseguir viver num círculo de pessoas que eu
sentia que eram do meu planeta...

* Corpo / outsider
** DONE Galeano

O Eduardo Galeano tem um poema, ou texto curto, muito famoso, que é
assim:

#+BEGIN_VERSE
  A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
  A ciência diz: O corpo é uma máquina.
  A publicidade diz: O corpo é um negócio.
  O corpo diz: Eu sou uma festa.
#+END_VERSE

Esse texto me irritava muito. O /meu/ corpo é uma festa? O caralho!

Um dia a minha amiga Tatiana postou este texto no Facebook. Há
alguns anos atrás ela tinha problemas com o corpo dela mais ou
menos do tamanho dos meus, e ela é uma super boa escritora e poeta.
Aí me veio este adendo ao poema:

#+BEGIN_VERSE
  O corpo disfórico se contorce em silêncio.
#+END_VERSE

Tá, mas porque disforia de gênero é tão infernal? Porque
é que tanta gente "decide" virar travesti, levar uma vida barra
pesadíssima com pouca chance de sobreviver além dos 40, porque
isso acaba sendo bem menos pior do que a alternativa?...

A sensação que eu tenho é que as narrativas "padrão" das
pessoas que mudam de sexo tendem a ir em certas direções e a
falar de certas coisas mais familiares, mais fáceis de entender -
mas tem outras áreas que raríssimamente são abordadas... tem
alguns trechos que me tocaram muito nos livros da ... e da Jennifer
Finley Boylan, que falam de coisas que eu nunca vi nada parecido em
Português; acho que isso é um indício de quanta coisa ainda
há sobre disforia que ainda nunca foi escrita... eu vou tentar
fazer a minha parte.

Às vezes umas pessoas me perguntam porque eu comecei a TH, e eu
vejo que são pessoas que precisam de uma resposta /muito/ curta.
Aí eu digo isto aqui, que é bem curto e bem verdadeiro:

#+BEGIN_QUOTE
  Agora eu entendo porque as pessoas gostam de estar vivas.
#+END_QUOTE

** DONE Infância
# (find-TH "2014-tr")

No início, quando eu era pequeno, eu achava só que eu tinha dado
azar. As meninas podiam fazer tudo de legal e podiam pensar e
conversar sobre o que queriam e serem sinceras; já os meninos
tinham que ficar fingindo o tempo todo que gostavam de um monte de
coisas idiotas só pra provarem pros outros que eles eram machos, e
ficar fazendo papel de macho era algo tão infernal que a gente
vivia explodindo de frustração e raiva... aí o que eu
entendia era que os outros meninos descarregavam essa raiva se
sacaneando e se batendo, e eles ficavam tão ocupados com isso que
eles não tinham tempo pra pensar nada de diferente... e como eu era
magro e fraco e tinha defeitos de personalidade eu não conseguia me
encaixar e aí eu ficava só vendo tudo como se eu estivesse de
fora... e eu tinha a impressão - aliás, a "esperança"! - de
que se eu me esforçasse MUITO e virasse uma pessoa muito
interessante quando eu crescesse eu acabaria encontrando as outras
pessoas que também sabiam que o mundo masculino era uma farsa, e
teriam construído jeitos de viver fora dessa farsa...

Aos poucos - a partir da minha adolescência - eu fui vendo que eu
funcionava de um jeito bem diferente dos meninos, e comecei a procurar
onde estavam as pessoas com as quais eu pudesse me identificar mais e
trocar mais figurinhas... e aí tentei andar com homens gays e bis,
o que não deu muito certo, depois com lésbicas militantes,
travestis e transexuais...

** DONE Sexo estraga tudo

No fim da minha adolescência já estava claro pra mim que a gente
tem carências físicas, que a gente resolve ficando com pessoas
ou transando com elas, e carências emocionais, que a gente resolve
sei lá como; e que eu não dava certo sexualmente nem com homens
nem com mulheres, e que as minhas carências físicas podiam ser
grandes - porque, caramba, quando a gente é adolescente os
hormônios estão furiosos e o corpo tenta mandar na gente... e
ainda por cima todos os meus amigos agiam como se a gente tivesse que
estar sempre preparado porque ninguém sabe o que vai acontecer
daqui a poucas horas, pode ser que a gente acabe transando hoje à
noite, então a gente tem que estar sempre preparado - mas as minhas
carências emocionais eram muito, muito maiores, e as minhas
carências físicas estavam é me atrapalhando, então foda-se
esse negócio de tesão e sexo, que isso só me atrapalha.

Às vezes eu precisava resumir muito isso, porque as pessoas em
torno de mim não entendiam idéias complicadas, ainda mais quando
elas eram tão estranhas, então eu tinha algumas frases de efeito
preparadas... por exemplo, "sexo estraga tudo".

Deixa eu tentar fazer o contrário disso agora. Vou tentar contar a
história direito, de um jeito que possa ser útil pras pessoas
que viveram coisas parecidas com as minhas.

** DONE "Ela tá te tando mole" - o mundo dos códigos

Deixa eu começar esta seção com uma frase-chave da minha
adolescência: "Ih, olha lá, rapá, ela tá te dando mole!
Você não vai fazer nada?"

A primeira coisa que eu quero apontar nessa frase é que a pessoa
que fala ela tá /interpretando/ um gesto de uma mulher - por
exemplo, um jeito de olhar - como /querendo dizer/ outra coisa: que
ela está dando mole. O cara que diz essa frase acha que existem
determinados códigos que são compartilhados por todo mundo, e
ele acha que pelo menos em assuntos amorosos as pessoas /só/ se
aproximam umas das outras usando essa comunicação "em
código".

A segunda coisa a apontar é a seguinte: "ela tá te dando mole" e
outras frases parecidas falam sobre "estar a fim" e "não estar a
fim", mas nunca são muito específicas sobre a fim de quê.
Ora, se eu só quero perder a virgindade a qualquer custo eu estou a
fim de certas coisas; se a minha casa é um inferno e eu quero me
sentir aceito em outro lugar, as coisas de que eu estou a fim são
outras; se eu quero me esquecer do meu cotidiano a minha energia é
uma, e se, ao contrário, eu quero pensar junto com alguém numa
conversa em que a gente compartilhe idéias e memórias e repense
nossos modo de agir, aí a energia é oposta à de esquecer...

Eu era completamente incompetente pra essa comunicação por
códigos. Tudo dava errado, sempre - e eu me sentia incrivelmente
inferior a todo mundo por causa disto.

O caso é que eu tentava sinalizar o que eu desejava e o que eu
tinha pra oferecer usando a linguagem dos códigos, e o que eu
queria transmitir não cabia nela.

Eu acabei desistindo do mundo dos códigos. Tinha que haver outras
pessoas como eu, e essas pessoas certamente formariam um mundo
paralelo... elas deviam estar vivendo entre as pessoas "normais",
misturadas, mas sem fazer muito alarde da sua diferença. Onde
estavam essas pessoas que se comunicavam conversando claramente ao
invés de por códigos nos quais cada gesto queria dizer outra
coisa?

Se elas também tinham necessidade de outras pessoas parecidas elas
já teriam feito o mesmo trabalho de busca que eu estava fazendo...
e algumas já teriam encontrado outras, e formariam uma rede. Onde
estavam essas pessoas?

** HALF Pessoas bonitas

A coisa mais importante quando a gente vê uma pessoa nova é ter
uma noção de quem é essa pessoa e como ela vai reagir a cada
coisa que a gente fizer - ou não fizer.

O mundo está infestado de Ômis.

Os Ômis assediam as mulheres de várias maneiras.

Quando eles vêem uma mulher gorda e peluda, por exemplo, eles agem
como alguém que vê um tomate podre numa barraca da feira e dá
um esporro no feirante. Eles agem como consumidores ofendidos que
acreditam que vão melhorar a qualidade dos produtos sendo
agressivos.

Quando os ômis vêem uma mulher que está exatamente dentro do
padrão - magra, jovem, branca e arrumada - eles agem de um jeito
que é uma mistura de várias coisas: admiração, desejo e
desrespeito. O desrespeito é eles reduzirem ela a um bife pra se
sentirem no controle.

As pessoas me lêem como homem. E se eu sou homem então eu
certamente sou ômi também, em maior ou menor grau.

Uma vez eu bolei uma pichação que eu acabei não fazendo, que
era assim:

#+BEGIN_VERSE
  Simpatia é quase desejo
  e desejo é quase ameaça
#+END_VERSE

Eu tomo muito cuidado com o meu olhar, porque ele /pode/ ser
interpretado como um olhar de ômi. Se eu olho durante mais de dois
segundos pra uma mulher pode ser que ela veja isso como desejo, e
daí deduza que eu estou vendo ela como um bife.

É difícil pra mim conversar sobre que mulheres eu acho bonitas,
porque "bonita" acaba tendo dois significados bem diferentes... um
é "está dentro do padrão dos ômis", e outro é "ela me
interessa e eu gostaria de me aproximar dela".

** HALF Aproximações

Vamos pensar o caso das mulheres "bonitas" - as que estão dentro do
padrão dos ômis.

Elas estão acostumadas a serem muito assediadas e a terem que ficar
se defendendo de assédios. E elas sabem que o suprimento de pessoas
interessadas nelas, e interessantes, é inesgotável.

Tem uma frase que resume bem uma atitude típica dessas mulheres: "a
fila anda". Se ela se cansou de um cara, se algo não funcionou,
é só descartá-lo, daqui a pouco vem outro novo. E tem
também uma outra frase que eu acho chave, que é a seguinte: "eu
sou uma mulher maravilhosa. Você me deseja. Se arraste aos meus
pés".

Aos poucos eu entendi que era /muito perigoso/ eu me aproximar de
mulheres consideradas "bonitas". O risco de eu levar porrada era
enorme, e a chance era ínfima de conseguir estabelecer uma
relação baseada em confiança e segurança.

Muitas das porradas que a gente dá são sem a gente notar -
então relações nas quais as pessoas sejam muito mais
cuidadosas do que o "normal" só são possíveis entre pessoas
que estão se esforçando há anos pra serem menos brutas - e
acho que essas pessoas são exatamente as que já apanharam muito

(...)

** DONE Obrigado, otário

Quando eu era criança eu queria ser só uma mente sem corpo;
aliás, eu desprezava tudo que era físico, e eu tentava ser
totalmente racional. Mas aos poucos foi ficando claro que isso não
tinha como funcionar.

Eu achava que ser racional me tornava superior. Como eu era idiota...
mas eu percebi isso, e quis deixar de ser só "racional" pra me
tornar "humano".

Eu virei adolescente numa época horrível. As pessoas agiam como
se desejar intimidade e confiança fosse ridículo, porque essas
coisas "não existiam". Você tinha que ser desprendido e
abandonar as pessoas com quem você se envolvia antes que elas
abandonassem você. Você tinha que ser seguro e agir sempre
casualmente, como se você já tivesse feito cada coisa mil vezes.
Nada podia ser especial.

Eu lembro de ir pra festas e ver as pessoas se atracando nos cantos de
jeitos que eu achava bizarros. Perder a virgindade era o ritual de
iniciação mais importante de todos, mas como eu conseguiria?
Parecia que eu ia precisar querer muito, tentar me aproximar de
garotas milhares de vezes, levar milhares de foras e aprender a não
me importar com eles, até que algum dia ao invés de levar um
"não" eu ouviria alguma espécie de "sim".

Pensa na seguinte cena. Você vê uma mulher que você acha
muito atraente, ela se interessa por você, e vocês começam um
jogo de sedução que vai ficando cada vez mais sério. Numa
certa hora já está tão claro que "sim", e que vocês dois
querem muito, que a partir daí o lado animal domina.

Talvez fosse isso que acontecia nos casais que eu via nas festas, se
atracando de jeitos que pra mim eram grotescos, loucos de tesão mas
conseguindo prestar pouquíssima atenção ao outro. Eles se
permitiam deixar o tesão dominar - e pra eles era bom.

/Eu não tinha como funcionar desse jeito./ Claro que os
hormônios da adolescência me deixavam baratinado de ansiedade e
tentavam me transformar numa máquina de enfiar, mas toda vez que eu
me masturbava, assim que saía a eca do meu pênis era como se eu
meu corpo dissesse "Aaaah! Obrigado, otário!", e a sensação
era exatamente como de fim de festa - todo mundo foi embora, a
lembranças das coisas boas da festa são meio borradas e parecem
meio falsas, e sobrou a ressaca, umas coisas quebradas e muita coisa
pra limpar.

** DONE O homem com pegada

Deixa eu me focar no personagem desse homem, porque ele é um pouco
mais familiar que o da mulher. Ele é o "homem com pegada". Todo
mundo gosta dos homens com pegada - eles são um tesão e os
outros são uns bananas... e ninguém comenta que isso deles
ligarem um lado animal e não pararem mais tem seus perigos - se
você está com um deles e desiste no meio ele pode te dar um
murro ou te estuprar, porque ele /não consegue/ parar... ele tem
até um efeito físico, ele fica com os testículos doendo
muito... tem um termo pra isso em Inglês: "blue balls" - mas não
sei se tem um termo correspondente em Português.

Pois bem, todo mundo conhece o "homem com pegada"... eu sou exatamente
o contrário. Eu me fascino por pessoas às vezes, claro, e fico
atraído por elas sim, mas que eu fico com tesão o que eu penso
é "pô, que droga, que constrangedor", e eu deixo ele passar.

Eu adoraria que fosse mais fácil dizer numa conversa algo como
"Desculpa, eu me distraí olhando pra você, é que eu acho
você fascinante... acho você um tesão, na verdade, mas pode
deixar que eu não vou deixar isso nos atrapalhar."

Então, num extremo a gente tem as pessoas com pegada e as que
gostam delas; essas são as pessoas "normais". No outro extremo
estou eu; um dos meus slogans é "sexo estraga tudo", e um dos
rótulos que eu uso pra mim é "sexofóbico"...

Um amigo meu, o Maurício, tem uma frase genial, que é: "resumiu
tanto que ficou errado". Tem coisas que não dá pra resumir
direito, porque são idéias nada familiares que precisam de
explicações detalhadas, mas às vezes as pessoas nos exigem
resumos em uma palavra ou em uma frase assim mesmo... então,
"sexofóbico" e "sexo estraga tudo" são desses resumos tão
resumidos que ficam praticamente errados - mas eu aos poucos vou
explicar o que eu quero dizer com isso.

A primeira coisa importante que eu preciso contar é a seguinte. Eu
me descobri "sexofóbico" em 2001, e a reação das pessoas - no
Rio de Janeiro - era péssima, me tratavam como doente de formas bem
agressivas, me provocavam, me testavam... mas eu tinha conseguido uma
bolsa pra passar boa parte de 2002 em Montreal, e lá foi uma
situação paradisíaca - as pessoas entendiam como eu
funcionava, trocavam altas idéias sobre isso comigo (porque elas
também queriam conseguir nomear melhor o que elas procuravam!...),
as pessoas se olhavam nos olhos em quase todo lugar, e foi super
fácil pra mim estabelecer relações de confiança... e
até aconteceu algumas vezes de eu acabar dormindo junto na mesma
cama que os meus amigos mais fofos, mais queridos e mais fascinantes,
exatamente porque a gente sabia que ninguém se transformaria de Dr.
Jekill em Mr. Hyde, nunca aconteceria algo como alguém dizer "agora
já chega dessas besteiras, tá na hora de trepar..."

Aí eu voltei pro Brasil no fim de 2002, super feliz e com a clareza
de que sexofobia, quer dizer, essa idéia de que sexo é pra ser
deixado super em segundo plano, fazia todo o sentido e me levaria a
relações incríveis... e praticamente só me ferrei - até
passei três anos em pânico, sem conseguir olhar mais nos olhos
de ninguém e com a minha capacidade de confiar em pessoas
totalmente destruída, depois de uma situação que pra qualquer
carioca "normal" era banalíssima; eu fiquei com sequelas parecidas
com sequelas de estupro depois que uma parte minha foi violentade -
mas era uma parte não-física, e que ninguém mais tinha algo
parecido, então eu nem tinha como conversar sobre isso com
ninguém, ninguém entendia...

Outra coisa que aconteceu foi que eu introjetei as idéias de que
(...)

** DONE Jack

Deixa eu contar duas histórias que me aconteceram em 2001, e que me
fizeram me sentir expulso do Rio de Janeiro.

Eu tinha reencontrado um amigo de adolescência, que eu não via
há mais de 10 anos - o Jack - e me reaproximado dele. Ele andava
treinando Tai-Chi a beça, às vezes ele dava aula no lugar do
mestre quando o mestre faltava. Ele não gostava mais do apelido
"Jack", que era como todo mundo chamava ele quando a gente era
adolescente, porque ele achava "Jack" muito agressivo... mas eu vou me
referir a ele como "Jack" aqui.

A gente se via duas vezes por semana na Sociedade Taoísta, no Cosme
Velho, porque as aulas eram lá, e a gente voltava junto de
ônibus, porque a gente morava mais ou menos perto, e nisso a gente
acabava conversando a beça. Ele me contou que tava fazendo
faculdade de dança pra ajudar com as dificuldades do Tai-Chi, e
aí eu pensei "bom, quem estuda dança não pode ser muito macho
homofóbico", e contei algo sobre um cara por quem eu tinha sido
super apaixonado anos antes - e foi isso que quebrou o gelo, a partir
daí o Jack se sentiu à vontade pra me contar que ele era
homossexual, e ele começou a me contar um monte de histórias que
tinham a ver com isso... basicamente, a cada sexta ou cada sábado
ele conhecia algum cara que parecia um príncipe encantado, e dessa
vez tudo parecia que ia dar certo, mas no domingo o cara não
aguentava mais ele; e na semana seguinte era a mesma coisa com outro
cara, e na outra semana com outro, e assim por diante, sempre.

Eu tava ficando muito constrangido de ouvir essas histórias. Algo
me parecia muito errado... o Jack tava super feliz de me ter como
confidente, mas eu estava incomodadíssimo.

Eu estava tentando me posicionar nessa época. "Identidade sexual"
era uma das partes mais importantes da nossa identidade, e era como se
eu ainda não tivesse... eu ainda estava procurando uma que me
descrevesse bem, e era como se eu só tivesse uns fragmentos, uns
esboços.

Era /muito/ desagradável não ter uma identidade sexual. Tem uma
imagem que eu adoro, que é a seguinte: os pais levando o garoto
diabético pra sorveteria pra ele assistir os outros tomando
sorvete... então, em quase toda conversa de bar as pessoas falavam
sobre seus namoros, suas paqueras, suas conquistas, ou pelo menos
sobre o que as atraía, e eu me sentia como o garoto diabético
vendo os outros garotos tomando sorvete! Era como se eu fosse a garota
religiosa super travada, ou como o garoto nerd patologicamente
tímido e esquisto, que toda vez que tentam socializar com os
colegas num bar ficam com cara de tacho em todas as conversas sobre
amor e sexo, e aí acabam meio que se vendo como inferiores, ou
covardes, ou aleijados...

Mas deixa eu voltar pra história do Jack - depois eu continuo sobre
ficar com cara de tacho nas conversas de bar. Então, teve uma vez,
quando nós já treinávamos há meses juntos, em que nós
tínhamos ido treinar num parque de manhã bem cedo - a gente
fazia isso de vez em quando. Nós estávamos voltando a pé do
parque, o Jack estava tentando me contar do princípe encantado do
último fim de semana, tentando pensar sobre o que tinha dado errado
dessa vez, e eu resolvi contar uma história minha, apesar da minha
ser bem mais banal... eu tinha saído com amigos da faculdade dois
dias antes, tínhamos ido parar num bar do Baixo Gávea, numa mesa
com 20 pessoas, e eu comecei a conversar animadamente com a pessoa do
meu lado, que eu tinha acabado de conhecer, e numa hora eu disse "ah,
eu detesto sexo"...

Eu e o Jack íamos atravessar uma rua quando eu disse isso.

Ele começou a berrar comigo, urrar, de ficar vermelho - "O
QUÊÊÊÊÊÊ? Você NÃO PODE dizer isso!!!! Você
precisa se TRATAR!!!! ISSO É DOENTE!!!!!!"

Eu não consegui dizer nada.

Eu levei meses sem conseguir dizer nada, só com a certeza de que
é muito difícil ser sexofóbico no Rio de Janeiro.

Só meses depois me ocorreu uma boa resposta. "Jack, há poucas
décadas atrás /você/ seria visto como muito doente, e seus
namoros com homens seriam ou muito difíceis ou impossíveis...
Você só pode fazer essas coisas agora tão facilmente porque
algumas pessoas consideradas doentes lutaram pra caralho pra não
serem mais vistas como doentes. Você deve muito a pessoas que
fizeram o que eu estou tentando fazer agora".

** DONE História de testosterona
# (find-TH "historia-de-T")

Deixa eu contar uma história do meu tempo de muita testosterona -
aliás, melhor, do tempo em que eu vivia envenenado por
testosterona. Vou contar só uma delas, porque esse tipo de coisa
acabava acontecendo tipo uma vez a cada dois anos.

Primeiro um pouco de contexto. Em 2001 eu estava no meio do doutorado,
estudando pelo menos umas 12 horas por dia, e pensando nos meus
assuntos de pesquisa quase o tempo todo, até quando eu dormia. Eu
tinha um bocado de tempo "livre", e eu aproveitava pra fazer aulas de
coisas como circo - acrobacia aérea - e Tai-Chi, pra eu ter mais
energia e não enlouquecer.

Pois bem. Até alguns anos antes disso a minha estratégia de vida
era baseada em eu ser magro e frágil e ser covardia alguém me
bater; ou, em outras palavras, em os caras fortes nunca me verem como
alguém que competia com eles.

Eu nunca soube lidar com as babaquices machistas que os caras falam
pros outros amigos babacas machistas rirem, e em 2001 eu comecei a
pensar o seguinte: /alguém/ tem que começar a mostrar pra esses
caras que nem todo mundo acha essas babaquices engraçadas - e como
ninguém mais tá fazendo isso, porque não tem ninguém mais
sentindo /muita/ necessidade de fazer isso, esse alguém vai ter que
ser eu.

A gente acha que Tai-Chi deixa as pessoas calmas, mas no meu caso
não foi bem assim - Tai-Chi me deixou poderoso, controlado e
preciso.

Eu vou contar a história da segunda vez em que eu "fiz alguma
coisa".

Era 2004, acho, e eu e umas dez outras pessoas passamos meses
preparando um evento de Software Livre. O evento ia acontecer num
domingo, de manhã e de tarde, num espaço cedido pelo Insitituto
de Física da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, e
quase todo mundo da organização morava no Rio.

No sábado de tarde eu e mais uma meia dúzia de pessoas fomos pra
lá pra UFF pra instalar nos computadores as coisas que faltavam. A
gente achava que ia ser fácil, mas lá ficou claro que a gente ia
ter que virar a noite trabalhando... e às duas horas da manhã a
gente viu que a gente ia ter que correr na casa do Diogo, num
subúrbio do Rio, pra pegar o computador dele e fazer sei lá mais
o quê, pra poder terminar tudo mais rápido.

A gente foi no fusca do Luís, com o Luís dirigindo, e na volta,
lá pelas 7 da manhã, a gente pegou duas pessoas no caminho -
dois palestrantes do evento - pra dar carona pra elas pra Niterói.

A cena que eu quero contar aconteceu no meio da ponte Rio-Niterói.
No banco de trás do Fusca estávamos eu, à direita, o Diogo no
centro, e à esquerda um dos caras pros quais a gente deu carona.
Não lembro o nome dele, então vou chamá-lo de O Imbecil.

O Imbecil tava falando que tudo era coisa de viado - era a única
"brincadeira" que ele conseguia fazer pra socializar.

Aí ele disse que gato era coisa de viado.

Aí o Diogo disse que tinha 8 gatos.

A gente tinha acabado de passar horas na casa do Diogo com os 8 gatos.

Então. Eu já tava vendo tudo vermelho, e eu sabia que se eu
não fizesse nada, se eu ficasse em silêncio e fosse cúmplice
daquela idiotice, eu ia passar os meses seguintes muito mal.

Eu disse pro Imbecil que esse negócio de "isso é coisa de viado"
é coisa de viado.

Eu disse que se ele tratava a gente como homens eu ia tratar ele como
homem também.

Eu me debrucei por cima do Diogo, que, lembrem, era quem estava no
meio do banco de trás, e apertei o pescoço do Imbecil com toda a
força, e enquanto ele ficava roxo eu berrava que ele era um covarde
e outras coisas, e mandava ele reagir. Eu queria ficar batendo a
cabeça dele contra o vidro do carro, mas ele ficou molinho pra eu
não bater muito, e não deu pra eu bater.

Não sei quanta experiência vocês têm com essas coisas, mas
quem tem alguma sabe que nós somos animais - brigas são
simplesmente situações de muita energia, e elas em geral acabam
quando o vencedor se define, ou quando a gente resolve de algum outro
jeito, juntos, essa energia toda que apareceu, e transforma essa
energia de briga em outra coisa. Em brigas de cães ou de ursos, por
exemplo, raramente alguém se machuca muito - a briga termina antes.
Com humanos é assim também, em geral.

Aí a gente chegou no evento, e as pessoas ficaram sabendo dessa
história, em várias versões - algumas pessoas até
perguntaram pro Imbecil o que eram aquelas marcas de unha no
pescoço dele - e claro que não aconteceu nada comigo... primeiro
porque a história era engraçada e exótica o suficiente pras
pessoas ficarem à vontade de ficar do meu lado ao invés de do
lado do Imbecil, e segundo porque o traço principal do universo
masculino, pelo menos aqui no Brasil, é o direito à babaquice.
Essa foi uma das poucas vezes nas quais eu exerci o meu direito à
babaquice ao invés de ficar sempre tentando pateticamente ser
racional e respeitável, e foi incrível!...

Essa história é uma das mais preciosas que eu tenho entre as
minhas memórias. Desculpem, eu sei que muitos de vocês vão
ficar chocados, mas essa história é como uma pequena jóia pra
mim... talvez - e isto está me ocorrendo agora - porque foi uma das
pouquíssimas vezes nas quais eu consegui usar o meu lado masculino,
que em geral era tão problemático, pra fazer algo espetacular.

* Transição
** TODO A energia que a gente gasta pra traduzir
** DONE O espelho

Eu me perguntava a toda hora: "será que o que eu estou fazendo é
/de verdade/?" - e com isso eu tive que procurar algum critério pro
que seria "de verdade", até porque eu sempre tive uma vozinha na
minha cabeça dizendo que nada do que eu fazia era verdadeiro o
suficiente ou bom o suficiente, que tudo que eu fazia era ridículo,
que tudo meu tinha defeitos gigantes -

Agora eu acredito que a gente vive uma farsa quando a gente precisa de
cada mais energia pra sustentar o que a gente acredita que é;
quando os nossos pilares de sustentaçao vão ficando cada vez
mais frágeis e há cada vez mais situações e memórias
que a gente precisa evitar. A "verdade" seria o oposto disso: a gente
está ficando mais verdadeiro quando a gente consegue se comunicar
com cada vez mais gente, ouvir as pessoas melhor e pensar junto com
elas, mesmo que a gente tenha mais dúvidas que certezas; /e quando
a gente tem acesso a cada vez mais memórias/. Viver uma farsa é
ter que bloquear memórias e pensamentos; ser verdadeiro é não
precisar bloquear, mesmo que a gente precise às vezes atribuir
significados e explicações novos para memórias antigas.

Depois que eu saí do armário eu lembrei de uma memória muito
forte da minha adolescência, que estava enterrada, esquecida. Teve
um período de uns dois anos no qual toda vez que eu via o meu
reflexo num espelho isso estragava o meu dia - então eu andava pela
rua com muito cuidado com pra onde eu olhava, e eu mantinha tapado com
papel pardo o espelho do meu banheiro (eu tinha um banheiro só pra
mim lá na casa dos meus pais).

Acho que quase todas as pessoas trans sempre se viram como alguém
do gênero oposto ao sexo biológico... mas eu não sou assim,
porque eu nunca /me via/ direito - eu sempre fazia o possível pra
que o meu aspecto físico fosse algo muito secundário, quase
irrelevante.

Agora, depois que eu comecei o tratamento hormonal, eu consigo olhar
pra mim.



[Há pouco tempo atrás eu reli os meus cadernos daquela
época... novas interpretações; vergonha de nunca ter sido o
que eu queria]

** DONE Armadura

A coisa mais impressionante que aconteceu quando eu comecei a terapia
hormonal foi quase imediata - eu tomei os remédios, fui dormir, e
acordei diferente. Antes meu tórax era um bloco rígido, como uma
armadura... muitos músculos meus estavam tão rígidos há
décadas que eles não mandavam nenhuma informação pro meu
cérebro - eles não mudavam nunca, não havia nada pra mandar.
Quando eu acordei tinha, sei lá, 20, 50, 100, 200 músculos que
era como se eu não tivesse antes, e que passaram a ter mobilidade e
sensibilidade. Era enlouquecedor, mas era fantástico.

Eu ainda estou tentando pôr direito em palavras porque é que
às vezes, principalmente quando eu tinha cerca de 20 anos, eu
cruzava o olhar com alguém na rua durante um ou dois segundos e o
olhar dessa pessoa me salvava o dia. Olha esta idéia daqui: podia
ser que eu sentisse que com aquela pessoa eu poderia tirar a armadura.
Essa pessoa me dava um vislumbre, e aí eu conseguia imaginar -
aliás, planejar - um futuro no qual eu não precisaria mais viver
de armadura...

O que aconteceria se eu afinal conseguisse me aproximar de uma pessoa
dessas e me abrir com ela? Acho que eu explodiria, eu diria "obrigado"
e "que alívio" e que eu procurava algo assim sem conseguir
encontrar, e eu começaria a chorar - mas isso é tão perigoso,
né, porque aí provavelmente a outra pessoa iria me achar um
chato, dependente, descontrolado...

Garimpando nos meus cadernos de anotações eu encontrei esta
frase: uma armadura de espinhos que protege o meu coração.

* COMMENT Etc / fragmentos
** TODO Encalhado versus sexofóbico
** TODO Iniciativa e não

Deixa eu tentar contar de uma cicatriz psicológica da minha
adolescência. (Eu sei que é ridículo etc)

A gente se treinava pra dar mil cantadas e não se incomodar com os
"não"s

Por um lado eu tentava descobrir um modo de tomar iniciativas que
fizesse sentido pra mim, por outro lado a gente tentava encontrar as
pessoas que tivessem mais a ver

Perder a virgindade era o ritual de iniciação mais importante de
todos - e era algo que provaria que eu não era mais um idiota.

Amigos dizendo que a gente tinha que treinar tomar a iniciativa - no
início a gente levaria foras e doeria, mas depois, com prática,
deixaria de doer.

A gente tinha que ser casual - a marca do fodão era que ele já
tinha ido a milhares de festas, tomado milhares de porres, feito cada
coisa intensa e corajosa milhares de vezes... ele sempre sabia se
virar, nunca era pego de surpresa, sempre tinha resposta pra tudo,
nunca ficava com cara de tacho.

A gente aprendia a identificar de longe as pessoas mais interessantes,
que poderiam ter a ver com a gente (pelo gosto musical, por exemplo -
Psychocandy)

Querelle - coragem

Me apaixonar pelos meus melhores amigos.

Deitar a cabeça no colo de um amigo era algo inconcebível.

Eu aprendi que quando a gente é homem e a gente fica fisicamente a
fim de uma mulher a gente ganha um não.

Não fazia sentido eu me comportar como se eu fosse um homem - mas
eu demorei anos pra eu encontrar jeitos de responder certas coisas que
as pessoas sempre diziam. Por exemplo: "cara, ela tá te tando mole,
você não vai fazer nada?" - "Ué, eu também tou dando mole
pra ela, e ela tem muito mais prática de se aproximar de outras
pessoas que eu"... e se uma mulher /realmente/ esperasse que eu
"tomasse alguma iniciativa" quando ela me desse mole, era fácil:
ela tinha demonstrado que ela era a pessoa errada, ela tinha sido
reprovada no teste.

Eu procurava pessoas que fossem "do mesmo planeta que eu", e elas eram
muito poucas... tinham que ser pessoas que também não ligassem
pra códigos de gênero, e tinham que ser pessoas que lidasses com
tesão do mesmo jeito que eu...

** TODO Ficar com cara de tacho nas conversas de bar
** TODO O modo como as pessoas se atracavam nas festas
** TODO Tesão

Olhar de que agora o tesão domina

Plift - obrigado, otário (eu aprendi a deixar o tesão passar)

Poder dormir com os amigos

Porque eu evito as pessoas seguras

O meu modo de gostar das pessoas não fazia sentido (Gwen)

** Rhea e Melina
** Casos médicos vs identificação
** Palhaços de circo

Naquela época era como se nada pudesse sequer tocar na bunda da
gente, que era uma região tão proibida do corpo masculino que
só palhaços de circo - criaturas de outro planeta - podiam fazer
brincadeiras com ela... o Querelle me fez ver

** TODO Ativistas e genocídios

# (find-TH "gender")

Blake


"A gente saiu mas não aconteceu nada"

Leminski: "eu amo"


A gente vira ativista e vê genocídios em todo lugar;

** HALF Introdução (antiga - deletar)

Este texto é um "work in progress", que por enquanto é feito de
fragmentos que ainda não se juntam bem. Alguns dos fragmentos foram
escritos antes de transição, outros depois.

Antes da transição as pessoas às vezes me perguntavam o que eu era, se
gay, hétero ou bi, esperando uma resposta curta, e a melhor resposta
curta que eu encontrei nos últimos anos era: "eu sou encalhado"... há
muitos anos atrás eu tinha uma resposta muito melhor, que era "eu sou
sexofóbico" - e em algumas épocas esta resposta funcionava bem, porque
ela criava a curiosidade certa, as pessoas perguntavam "como assim,
sexofóbico?", e eu explicava, e elas entendiam facilmente as
explicações, e o fato delas entenderem acabava me permitindo
estabelecer relações super fofas e sinceras com elas... mas em outras
épocas ninguém entendia a minha explicação, e era como se ninguém
fosse entendê-la porque ela não fazia absolutamente sentido nenhum, e
a minha vida virava um inferno...

Este texto tem vários objetivos diferentes. O primeiro é dar respostas
pras pessoas em torno de mim, que certamente vão ficar intrigadas - e,
em geral, incomodadas - com essa história de eu "agora" ser
transexual, principalmente porque eu sou bem diferente dos casos de
que elas ouviram falar... por exemplo, eu me treinei durante décadas
pra quase não dar bola pra minha aparência, porque eu queria que ela
fosse algo muito secundário - eu queria que as pessoas praticamente só
prestassem atenção em como eu pensava e como eu me comportava, porque
desse modo elas acabariam me vendo como alguém "sem gênero"... então
agora eu estou tomando hormônios e o meu corpo está mudando aos
poucos, e isto é visível pra quem prestar atenção, mas fora isto eu
praticamente não tenho mudanças visíveis - tirei a barba com laser, e
só... então eu não estou fazendo nenhum alarde da minha transição, mas
ao mesmo tempo não estou fazendo nenhum segredo - e isto é exatamente
o contrário de algo que a gente vê bastante por aí, que são as pessoas
trans que querem ser reconhecidas por todos no gênero "novo", oposto
ao atribuído no nascimento... eu ainda não estou me preocupando com
pronomes nem com passabilidade, porque eu ainda estou preso em outras
preocupações que pra mim são bem mais urgentes...

O segundo objetivo é o seguinte. As histórias das pessoas trans que
"sempre souberam" que não eram do gênero atribuído a elas no
nascimento têm tido muita visibilidade, mas existe bastante gente que
viveu décadas tentando fazer o papel do gênero de nascimento e só
decidiu transicionar bem mais velha. Precisamos ter mais acesso às
narrativas dessas pessoas que transicionam mais tarde, e eu resolvi
fazer a minha parte escrevendo a minha.

O terceiro objetivo tem a ver com /estilo/. Muitas pessoas trans
acabam contanto as suas histórias de jeitos quase que padronizados,
quase como se primeiro elas tivessem preenchido um grande formulário
com itens de "sim" e "não", e depois tivessem recheado as respostas do
questionário com um pouquinho de Português... /precisamos de mais
narrativas em forma livre/ - nas últimas seções deste texto vou
explicar porquê.

O quarto objetivo tem a ver com sexualidade e relacionamentos. A nossa
sociedade é obcecada por sexo, e isso transforma a vida de pessoas
como eu, que têm carências afetivas não-sexuais enormes e complicações
sexuais tão grandes que fazem que a gente deixe sexo de lado, num
inferno.

O quinto objetivo tem a ver com opressão. Eu sou super privilegiado em
muitíssimos aspectos, e faz anos que eu nem sequer sou chamado de
viado na rua... será que eu, por ser trans, posso falar em nome das
pessoas trans que estão sendo discriminadas, espancadas e mortas?
/Não/, mas posso fazer várias outras coisas úteis... e coisas que
talvez até me ajudem a me preparar pra quando eu estiver mais
andrógino e portanto mais visível, mais discriminável, mais espancável
e mais assassinável! Que coisas são estas?

** HALF Introdução (bem antiga, escrita antes da transição - deletar)

Eu gastei muito tempo e energia, durante dez anos, procurando toda a
informação que eu podia sobre hormônios e sobre jeitos de
remover cirurgicamente a coisa entre as minhas pernas. Mas se passaram
doze anos, e eu ainda não fiz nada de concreto.

Às vezes eu me olho no espelho e o que eu vejo me faz pensar: "ai
meu deus, eu perdi a batalha. Eu pareço muito masculino, e deve ser
muito tarde pra mudar. Os hormônios masculinos ganharam." Mas
outras vezes o sentimento é de eu escolhi as prioridades certas.
Esses sentimentos vêm e vão; eu oscilo. /Eu não tenho certeza
de nada/.

Eu às vezes imaginava como seriam as entrevistas com os médicos
que me avaliariam como candidato pra tratamento com hormônios e
cirurgia - eles tentariam medir objetivamente o meu sofrimento. Quando
eu comecei a preparar esta fala eu

- e só há pouco tempo atrás eu percebi como a tentação

* COMMENT Local variables
# (find-orgnode "Per-file keywords")
# (find-orgnode "Faces for TODO keywords")
#+TODO: TODO | DONE | HALF


# Local Variables:
# coding: raw-text-unix
# coding: utf-8-unix
# modes: (org-mode emacs-lisp-mode fundamental-mode)
# End: