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  AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO
                      Marilena Chaui

  Vocês devem ter observado que coloquei um título provoca-
dor para a minha fala. A razão desta provocação se torna clara qua-
se no fim desta apresentação, que foi estruturada da seguinte for-
ma: vou fazer algumas deferências a um documento do Banco
lnteramericano de Desenvolvimento --- BID1 --; sobre as Leis de
Diretrizes e Bases da Educação - LDB2 -; sobre alguns documen-
tos da nossa reitoria, e aí passarei a algumas observações muito
gerais ao documento da nossa Faculdade,3 que trata de sua refor-

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  1. O documento ao qual a autora se refere intitula-se A educação superior na América
latina e Caribe. Documento de estratégia, Washington, D. C., dezembro de 1997, n° EDU-101 e
foi preparado por Cláudio de Moura Castro e Daniel C. Levy. Ver também: Higher education
in Latin America: myths, realities, and how the IDB Can help e Myth, reality arid reform, dos
mesmos autores. Sobre os documentos do BID para a educação, é valioso consultar o acer-
vo da Fundação Carlos Chagas, em São Paulo. Há também uma série de autores que co-
mentam as estratégias do Banco Mundial no Brasil, América Latina e Caribe, como: Livia de
Vommasi; Mirian Jorge Warde & Sérgio Haddad (orgs.) (1996). O Banco Muridial e as políticas
educacionais. São Paulo, Cortez; Dagmar M. L. Zibas; Maria Laura Franco & Mirian ]orge
Warde (1997). "Globalização e Políticas Educacionais na América Latína", Cadernos de Pes-
quísa. São Paulo, Cortez, n° 100, mar. PREAL (1996). "Formas e reformas de la educación".
Rwvista Trimestral do PREAL (Programa de Promoción de la Reforma Educativa en América Lati-
mi), Santiago, Chile, n° 1. revista do BID, BID América. (N. da Org.)
  2. A autora se refere à Lei n° 9394, sancionada em 20 de dezembro de 1996. (N. da Org.)
  3. Não tivemos acesso aos documentos internos da Reitoria da USP ou da Faculdade
do Filosofia, Letras e Cíências Humanas, aos quais se refere a autora. Apesar disso, a expo-
sição feita por ela, destacando os aspectos principais desses documentos e a relação entre


16 UNIVERSIDADE FORMAÇÃO E CIDADANIA

ma; e será nesse momento que eu farei a referência às humanidades
contra o humanismo.
  Gostaria de fazer duas observações iniciais antes de minha fala.
A primeira é a seguinte: sabemos que a forma contemporânea do
capitalismo, isso que foi convencionado chamar de neoliberalismo,
tem, entre as suas várias características, uma muito peculiar, que
consiste em reduzir a política aos mecanismos econômicos, não à
operação geral das forças econômicas. Não é isso. É a redução do
político aos mecanismos diretos da economia, reduzir a economia à
finança, identificar a finança com o jogo do mercado e considerá-lo:
primeiro, o ponto final da história humana; segundo, a fatalidade
como se não houvesse outro caminho, ele é a fatalidade necessária;
e terceiro, como conseqüência, naturalizar a situação contemporâ-
nea do capitalismo de tal maneira que a desestruturação que esse
modo de funcionamento do capital provocou, que ele produziu, no
interior da luta de classes com respeito às formas de organização e
referências da classe trabalhadora, também sejam naturalizadas.
  Essa postura consiste em fazer com que o jogo do mercado
seja considerado a última ratio, ou seja, o fundamento de toda a
racionalidade. Quando você quer saber se algo é ou não racional
(para decidir a racionalidade de alguma coisa, de uma ação, de uma
instituição...), toma como critério o modo de inserção disso que está
examinando no jogo do mercado. O mercado, portanto, se tornou
não só o fim da história, a fatalidade humana e a naturalização das
relações sociais, mas também o cerne onde se decide o que é racio-
nal e o que é irracional. A conseqüência disso, e que transparece
nas questões que vamos colocar a respeito da universidade, é o fe-
chamento da idéia de que as coisas podem ser diferentes, que pre-
cisam ser diferentes e que devem ser diferentes. Fica ocultado que
o mercado, e o seu funcionamento, é uma instituição produzida
pela ação dos homens e que pode ser desfeita por ela. Desaparece,
portanto, a idéia de uma outra realidade possível construída por
nós mesmos.

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elos, a LDB e O BID é suficientemente esclarecedora, mesmo para aqueles que não conhe-
cem tais documentos. Contudo, uma proposta para a reforma da FFLCH pode ser encon-
trada em: Francis Henrik Aubert, Francisco C. Scarlato & Ricardo Terra (1999). Para uma
reconfiguração dos Cursos de bacharelado da PPLCH: proposta estrutural. São Paulo, Humanistas
Publicaçõvs FFLCH-USP, pp. 74-96. (N. da Org.).
'


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   17

  Estou fazendo este preâmbulo porque todas as discussões que
tem sido feitas a respeito da universidade giram em torno do modo
em que ela deva se relacionar com o mercado. E não há uma alma
que seja para dizer: "Mas, por que essa relação fundamental?". Ou
seja, não só se toma que é assim, mas se toma isso como um destino
necessário. Essa é a minha primeira observação.4
  A minha segunda observação é conseqüência dessa. Trata-se
do documento do BlD, que se refere ao desempenho (é um diag-
nostico do desempenho das universidades da América Latina e do
Caribe) e as propostas do BID para mudanças nessas universida-
des como condição para financiamento delas.
  Quando se lê o texto do BlD, depois o texto da Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação, depois o texto da nossa reitoria e depois o
texto da nossa Faculdade, o que impressiona é a homogeneidade
de pensamento. Há uma identidade, uma sintonia, uma harmonia
total entre esses textos. Não quero dizer que eles estejam idênticos
do ponto de vista da redação. Há uns mais sofisticados na redação,
outros mais toscos, mais grosseiros; varia a redação, mas não a idéia.
  Ora, o documento do BID é produzido pelo Banco a partir de
dados que são fornecidos pelos vários países. E, portanto, não po-
demos dizer, como diríamos nos anos 50 e 60, que a posição do BID
é uma invasão imperialista contra a independência e a autonomia
nacionais e a identidade cultural do país. O imperialismo mudou
inteiramente de figura. Não é mais desta forma que se deve pensá-
lo.5 E, nesse caso específico, não podemos falar numa ingerência
externa sobre as universidades latino-americanas e a brasileira pelo
simples fato de que os dados oferecidos para o Banco foram infor-
mados por nós. E o que é interessante é que certamente o BlD fez
uma lista do que queria e esses dados foram fornecidos. lsto signi-
fica. que aqueles que forneceram as informações em nenhum ins-

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4. A respeito destas observações da autora, ver também: Marilena Chaui (1999). "Ide-
ologia neoliberal e universidade". In: Francisco de Oliveira & Maria Célio Paoli (orgs.). Os
sentidos da democracia. Petrópolis, Vozes, pp. 27-51; Franklin Leopoldo & Silva (1999). A
experiência universitária entre dois liberalismos. São Paulo, Humanistas Publicações FFLCH-
USP, pp. 33-73. (N. da org.)
N. todos os textos do livro organizado por Francisco de Oliveira e Maria Célia Paoli,
citados anteriormente, discutem a questão da nova forma do capitalismo. Ver também:
Pablo Gentili & Tomaz Tadeu Silva (Orgs.) (1996). Neoliberalismo, qualidade total e educação.
Rio de Janeiro, Vozes. (N. da Org.)


18 UNIVERSIDADE FORMAÇÃO E CIDADANIA

tante contestaram que elas pudessem não ser expressivas da reali-
dade da universidade. E, portanto, ao fornecer os dados solicita-
dos, aqueles que assim o fizeram mostram que estão de pleno acor-
do com a posição do BID. Nesse segundo ponto, ao focalizar a har-
monia, a sintonia, a identidade desses vários documentos, o que
estou querendo dizer é que eles exprimem, à maneira do que obser-
vei inicialmente a respeito da visão que temos da nossa sociedade,
aquilo que alguns chamam de "o pensamento único" e que eu, que
gosto de usar a linguagem considerada antiquada, digo que se trata
do pensamento hegemônico.6 Isto é, estamos tendo, pela primeira
vez com muita clareza, no caso do Brasil, uma verdadeira experiên-
cia de hegemonia que se apresenta da seguinte maneira: há um con-
senso sociopolítico e um dissenso inteiramente difuso, sem rosto, 1
sem força, sem organização e sem poder. E, portanto, não temos
várias posições a respeito de problemas. Temos uma que diz o que a
coisa é e porque que é assim, e uma multidão completamente dis-
persa que diz: "acho que não é assim", mas fica por isso mesmo. É
esta a situação que estamos experimentando.7
  Feito esse preâmbulo, não vou analisar o documento do BID  
(proponho-me a fazer isso como tarefa política), não vou analisar
nenhum documento do MEC, não vou analisar os docmnentos da
reitoria, nem vou analisar o documento da nossa Faculdade. Vou
destacar alguns pontos destes documentos que me parecem rele-
vantes para a nossa discussão aqui, hoje.
  O BID, ao fazer o seu diagnóstico da situação das Universida-
des latino-americanas e caribenhas, tem como eixo o par "custo -
benefício". Não devemos nos surpreender que o Banco tenha como
critério de avaliação o par custo-benefício. Seria espantoso um ban-

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6. Sobre o que significa o pensamento hegemônico na América Latina e Brasil, ver:
Celso Furtado (1975). A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Lati-
na. Rio de janeiro, Civilização Brasileira; E. Sader & P. Gentili, (orgs.) (1995). Pós-
neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de janeiro, Paz e Terra (princi-
palmente o artigo de E. Saber - "Hegemonia na América Latina"). Sobre a relação entre
hegemonia e educação, ver: N. J. Paoli (1981). Ideologia e Hegemonia: as condições de produção
da educação. São Paulo, Cortez, Anita H. Schlesener (1992). Hegemonia e cultura: Gramsci.
Curitiba, Editora UFPR. (N. da org.)
7. E interessante conhecer a posição de diversos intelectuais, como Noam Chomsky,
por exemplo, a respeito de algumas idéias correntes em nossa época apresentadas em:
Célia Razão Linhares e Regina Leite Garcia (orgs.) (1996). Dilemas de um final de século: o que
pensam os intelectuais. São Paulo, Cortez. (N. da Org.)


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   19

co que não usasse esse par. Contudo, mais espantoso ainda é que o
MEC, a nossa reitoria e a nossa Faculdade também o utilizem para
pensar a universidade.
  O BID vai mostrar, a partir dos dados que lhes foram forneci-
dos, que todas essas universidades têm um custo muito alto e um _
benefício muito pequeno. Como é que é detectado o pequeno bene-
fício? O BID tem como medida um outro crítérío: a inoperância. E
ele avalia a inoperância sob três aspectos. Em primeiro lugar, a qua-
lidade do ensino e da pesquisa que é considerada baixa. E é muito
interessante que são feitas duas ressalvas. É dito que há certos seto-
res que não pertencem à universidade, e que são setores privados,
nos quais a qualidade do ensino e da pesquisa é alta. Suponho que,
no caso do Brasil, como um dos que mandou os dados, a FGV e o
IUPERJ é que sejam considerados os de alta qualidade. A outra ex-
ceção é o Chile. E o Chile vai aparecer no documento do começo ao
fim, como a situação exemplar. O Chile, ao qual o BID se refere, é o
dos anos 70. É o que o Pinochet fez com a universidade chilena que
é considerado muito bom.8 Pena que os outros países não tenham
feito isso. (E o que é fantástico na redação é que é dito o seguinte:
"Muitas vezes as universidades querem fazer coisas muito boas,
mas há o autoritarismo político, muita repressão, muita violência e,
aí, elas não conseguem fazer. Mas o Chile...".
  Vimos que o primeiro critério é a baixa qualidade da pesquisa
e do ensino. O segundo é a segunda prova de inoperância, dada
pelo altíssimo índice de evasão. E o terceiro é o alto custo com o
pessoal, isto é, com os docentes e os funcionários, e o pouco inves-
timento em infra-estrutura. Referindo-se ao alto custo com o pes-
soal, o BID insiste que as universidades latino-americanas são ar-
caicas porque trabalham com um número muito pequeno de alu-
nos por professor. O que é considerado um trabalho universitário
operante é o feito com a média de um professore para cinqüenta a
oitenta estudantes.
  Um outro tópico examinado pelo BID para se referir ao alto
custo -- baixo benefício e inoperância é o que ele chama o par

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8. Sobre a educação chilena e o BID, ver: Alfredo Rojas Figueroa. "Da resignação ao
consentimento? Privatização da educação básica e média no Chile". In: Dagmar M. L. Zibas;
Maria Laura Franco & Mirian jorge Warde (1997). "Globalização e Políticas Educacionais na
América Latina", Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Cortez, n° 100, pp. 40-56, mar. (N. da Org.)


20   UNIVERSIDADE FORMAÇÃO E CIDADANIA

"recompensa-punição". O BID considera que as universidades lati-
no-americanas foram até agora incapazes de criar um bom sistema
de recompensa pela produtividade e de punição pela
improdutividade. Ele entende como recompensa, por exemplo, bol-
sas para os produtivos. E não explica bem o que entende por puni-
ção, mas certamente, deve ser despedir, demitir.
  Feito o quadro que resumi de maneira absoluta (porque tudo
isso é explicado), o BID apresenta o que chama de "o quadro das
funções do ensino superior". É interessante porque eles não dizem
universidade; dizem "o ensino superior". E o ensino superior, se-
gundo o BID, tem quatro campos de trabalho que chamam de "qua-
tro funções" (e nem vou discutir aqui por que usam esse termo). O
primeiro campo de trabalho ou função é a formação da elite intelec- Ï
tual que é explicada da seguinte forma: "Pesquisa e ensino de alto
nível, conforme as normas acadêmicas internacionalmente consagra-
das para formar as elites intelectuais". Na seqüência, o documento
aponta o que é necessário para que isso aconteça: "Investimentos I
públicos pesados com um mínimo de prestação de contas externas;
autonomia; sistema de avaliação pelos pares...". Ou seja, o setor de
formação de uma elite intelectual é responsabilidade do Estado. É
para esse setor que devem ir os investimentos públicos. É a fundo
perdido. A avaliação é interna, a operação é autônoma. Não presta
contas.
  Depois, o documento avalia o que acontece com esta função
no Brasil ou na América Latina. Ele se refere, então, ao desempe-
nho. "Desempenho: Insuficiente. Desenvolvido freqüentemente em
instituições não universitárias" (para nós seriam, FGV, IUPERJ...).
"Fraca distinção em relação a outras funções. Priorização inade-
quada em instituições multifuncionais" (o que ele está dizendo é
que nós confundimos aquilo que é necessário para formar a elite e
formar o profissional com outros tipos de formação. E é por isso l
que o nosso desempenho não é satisfatório). Ou seja, somos, por
enquanto, incapazes de formar uma elite intelectual com padrões  
acadêmicos internacionalmente definidos.
  O segundo campo, ou a segunda função, ele chama de profis-
sional e explica o que é: "Prepara os alunos..." (agora, é evidente
que se trata de universidade, que se trata de curso de graduação).
"Prepara os alunos para mercados profissionais específicos que


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   21

exijam formação superior." O que é necessário para isso funcionar
bem: "O sistema administrativo e a alocação de recursos devem ser
orientados para o mercado de trabalho. Vínculos estreitos com as
entidades profissionais. Desejável o credenciamento individual. Do-
ventes de disciplinas aplicadas normalmente necessitam mais de
experiência do que de diplomas". O que ele está dizendo aqui é
que o investimento neste setor não é prioritariamente público. Pode
ser, mas o vmculo principal, do ponto de vista do financiamento e
do ponto de vista administrativo, é com as empresas. E é dito o quê,
a respeito do corpo docente? "Não se quer um corpo docente de
elite. O que se quer é um corpo docente experiente." O que se quer
é médico dando aula na Faculdade de Medicina e com seu consul-
tório; advogado dando aula na Faculdade de Direito e com o seu
escritório. Ou seja, a idéia é que os professores, nessas graduações,
devem ser aqueles que transmitem aos alunos muito mais expe-
riência do que teoria. (E, no nosso caso, professor dá aula para pro-
fessor.)
  Desempenho. "Tradicionalmente, esse é o ponto forte das ins-
tí tuições de ensino superior da América Latina e do Caribe." Quais
são os problemas no desempenho? "Tendente ao semiprofissional.
Rigidez" (não é possível saber o que é isso). "Currículos obsoletos."
Essa é uma grande preocupação do BID. Uma das coisas que o BID
mais critica nas nossas universidades é que, para eles, somos anti-
quados, ensinamos coisas já antigas, não captamos o espírito do
tempo.
  Há o outro campo, a outra função. "Técnico." O que é? "Pro-
gramas de curta duração com treinamento de habilidades práticas,
preparando para ocupações de nível médio no mercado de traba-
lho". Para fazer isso, o que é necessário? "O sistema administrativo
e a locação de recursos devem ser orientados para o mercado de
trabalho. A administração e os currículos devem ser flexíveis". O
que está sendo dito aqui, portanto, é que este setor é inteiramente
determinado pelo mercado, é inteiramente determinado pelas em-
presas. Mas como é o seu desempenho na América Latina? "Em
expansão. Mas ainda representando uma proporção excessivamente
reduzida do sistema como um todo." Qual o defeito? "Tendência a
imitar o ensino superior convencional." (Ou seja, um estudante que
quer apenas ser técnico e nós oferecemos graduação, depois ainda
É pensamos que ele deve fazer pós-graduação, que deve fazer ini-


22 UNIVERSIDADE FORMAÇÃO E CIDADANIA

ciação científica   Isso soa para o BID como se fôssemos incapazes
de entender o que é uma formação técnica). E o que é preciso fazer.
"Necessita introduzir nos currículos um componente maior de prá-
tica."
  E aí vem o outro campo. Este se chama "formação superior
geral ou formação generalista". O que é? "Ministram cursos ditos
profissionais, mas cujo mercado de trabalho encontra-se saturado
ou mal definido. É o equivalente pobre do curso de liberal arts." O
que é necessário para esses cursos funcionarem? "A maioria dos
cursos teriam custos relativamente modestos. Não há necessidade A
de custos elevados. Os conceitos de qualidade devem fundamen-
tar-se no valor adicionado e na eficiência. O papel regulador deve
ser, primordialmente, exercido pelo credenciamento individual."
O que querem dizer com "valor adicionado" e por que o custo é
baixo? E o seguinte. Você se formou em Contabilidade ou se for-
mou em Técnico de Computação. Como o mercado está saturado, o
recém-formado tenta superar as dificuldades para conseguir uma
vaga recorrendo à formação geral. Então, qual é a função da forma-
ção geral? (E a formação geral é assim: um pouquinho de Filosofia,
um pouquinho de Geografia, um pouquinho de História, um pouqui-
nho de Engenharia, um pouquinho de Arquitetura, um pouquinho
de Cinema, um pouquinho de Televisão. Um almanaque geral!) Isto
lhe dá um certificado. Você põe no currículo, adiciona valor a ele e
tem mais chance de encontrar emprego do que aquele que não é um
generalista. Desempenho: "Os programas seriam mais úteis se
projetados para a formação geral. São numerosos os casos de baixa
qualidade."
  O que o BID fundamentalmente nos diz? Ele nos diz que o
ensino superior se divide em quatro funções: a da formação da elite
intelectual com investimento público pesado, a formação de profis-
sionais para o mercado com um investimento público e privado
sob a forma de cursos de graduação; depois cursos de licenciatura
curta para os técnicos e para os generalistas. E tanto os cursos técni-
cos quanto os generalistas devem ser financiados, fundamentalmen-
te, pelo setor privado. A idéia, portanto, é que há uma elite intelec-
tual que pensa, e depois todo o resto que tem como objetivo o mer-
cado de trabalho. E cada vez que o mercado de trabalho saturar,
você inventa um curso de formação geral para adicionar valor no
currículo de quem compete em um mercado saturado.


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   23

  O BID afirma que está disposto a investir, e bastante, nas uni-
versidades da América Latina sob a condição de que se reformem.
lsto é, que eliminem todos esses pontos referentes à má equação do
"Custo-benefício", referentes à má qualidade do desempenho, às
evasões, ao excesso de pessoal, à falta de um sistema de punição
adequado, à falta de procedimentos adequados de recompensa e
assim por diante. Se as universidades latino-americanas ou se o
ensino superior latino-americano preencherem uma série de quesi-
tos que o Banco propõe para se reformar, ele investe.
  Em total harmonia com os critérios do BID, fala o MEC.
  Quando, na Lei de Diretrizes e Bases, se fala em autonomia9 e
se identifica autonomia com gerenciamento de recursos, quando se
fala em racionalização entendida como enxugamento de pessoal,
quando se fala em avaliação pela produtividade e quando se fala
na flexibilização dos currículos das áreas profissionais, técnicas e
generalistas, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional sim-
plesmente afirma os princípios que são propostos pelo diagnóstico
do BID e para garantir seus investimentos.
  Que o MEC faça isso... é um órgão político! O importante para
o MEC é o que ele faz politicamente com a questão da educação.
O duro é o instante em que as direções universitárias pensam da
mesma maneira. E a análise a seguir demonstra o quanto os rela-
tórios do BID e a LDB inspiraram as propostas de reforma univer-
sitária.
  Tomei alguns documentos vindos da reitoria e é possível no-
tar que neles há duas grandes preocupações as quais não podem
ser percebidas por quem não conhece o texto do BID ou os detalhes
da Lei de Diretrizes.
  A primeira grande preocupação da reitoria, do lado dos alu-
nos, é com a necessidade de expansão das vagas e com o problema
da evasão. O que é formidável nos textos é que não procuram a
causa. A causa histórica, a econômica, a social e as formas tomadas
pela evasão. E nem qual é a origem e a forma da demanda por mais

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9. Sobre a questão da autonomia universitária, ver: Sérgio Azevedo & Carlos Benedito
Martins (1998). "Autonomia universitária: notas sobre a reestruturação do sistema federal
de ensino superior". In: Anpocs/BIB, Rio de janeiro, Relume Dumará, n° 46, pp. 113-2l. (N.
da org.


24   UNIVERSIDADE FORMAÇÃO E CIDADANIA

vagas. É dado como um fato bruto que há uma evasão e que há
demanda por mais vagas. Como eles não explicam, não fazem uma
única análise desse fato, ele é tomado, costumo dizer, como uma
pedra, uma árvore, um rio, um terremoto, um maremoto, um fura-
cão. É um dado da natureza. Como ele e tomado dessa maneira e
não é analisado, o que a reitoria passa a fazer é aquilo que Espinosa
chama de "a ilusão imaginativa".10 A ilusão imaginativa consiste
em tirar conclusões sem ter as premissas. É isso o que a reitoria faz.
Ela tira uma série de conclusões a respeito da questão da ampliação
de vagas e da questão da evasão sem ter premissas para isso. Ou
seja, produz um imaginário de operação sem análise, sem reflexão,
sem nada. Mas, se você lê o documento do BlD, é óbvio que a reito-
ria se preocupe com isso porque o BlD considera que a evasão é
uma das provas de inoperância e de desequilíbrio do "custo-be-
nefício"; e considera que uma das causas da inoperância é excesso
de professor para pouco aluno. Então, é compreensível que, partin-
do dessa premissa - agora sim -, a reitoria considere que o gran-
de problema que tem que enfrentar é a evasão e a ampliação das
vagas. E a partir disso se vê às voltas com um outro problema com-
plicado referente ao corpo docente e que é o famoso problema dos
"claros". (Explicando para os mais jovens, um "claro" é uma vaga
que se forma quando um professor morre ou se aposenta.)
  Antigamente, quando um professor morria ou quando se apo-
sentava, o "claro" era preenchido, isto é, era contratado um profes-
sor. Esse contrato podia ser por nomeação, por concurso, por for-
mas variadas. E tinha mais. Se você morria ou se aposentava como
titular e fossem contratar mestres, com o salário de um titular você
não contrataria um, contrataria dois mestres. Como é irracional
muito professor para pouco aluno, isso desequilibra o "custo--be-
nefício" e caracteriza inoperância, os "claros" ficaram "escuros".
Isto é, forma um "claro" e fecha, forma um "claro" e fecha. Não
abre nada. A cada professor que se retira, "um avanço de racionali-
zação, modernização e operância é conquistado". Só que há um pro-
blema: O professor é necessário. Então, a reitoria tem uma proposta
formidável que é a seguinte: você se aposenta, se desincumbe de

------------
10. Sobre a ilusão imaginativa, ver Marilena Chaui (1999). "Imanência e geometria".
In: A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo, Companhía das Letras,
pp. 559-744. (N. da org.)


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   25

uma série de coisas que se faz quando se é um professor da ativa,
mas "em vez de pôr o chinelo e ficar em frente a televisão, venha
trabalhar conosco". E o aposentado vem. Trabalha de graça e não se
contrata ninguém. lsso é racional, operante, produtivo etc. Toman-
do-se os documentos da reitoria, esses são os dois grandes proble-
mas dessa universidade: "evasão-vagas", do lado dos alunos; "cla-
ros", do lado dos professores.
  Ainda sob a rubrica "custo-benefÍcio" e inoperância, há o pro-
blema da avaliação acadêmica que, depois de todo o tumulto que
causou, virou também um rio, uma floresta, uma montanha... Tem
o rio Tamanduateí, o Tietê, o Pinheiros, tem o Parque do Ibirapuera,
a Serra da Mantiqueira e tem a avaliação. Tudo igual. Tudo natural.
Mas o BlD não está contente com a avaliação e, portanto, ela ainda
e um problema para a reitoria. E aí, o quarto ponto, é aquele no qual
a reitoria vai garantir as quatro funções do ensino superior apre-
sentadas pelo BID, que é a reforma que está sendo proposta.
  Observei que o BlD considera que a formação da elite intelec-
tual não precisa ser necessariamente por meio da Universidade.
desta forma, como a Universidade vai contornar esta idéia? Ela vai
contorná-la por meio da idéia de Centros de Excelência e de Nú-
cleos com linhas de pesquisa que recebem um pesado financiamen-
to, público ou privado.
  No tocante ao problema da evasão e ampliação de vagas, são
duas as propostas apresentadas. O curso profissional é a graduação
longa. Eles propõem, então, a graduação curta, flexível, que
corresponde ao que o BID chama de "o técnico". E depois há a ga-
rantia da ampliação de vagas sem abertura de "claros" e com a di-
minuição da evasão através daquilo que é chamado de "o curso
seqüencial".
  O curso seqüencial é um primor! Ele é apresentado da seguin-
te maneira: "A noção de área de conhecimento é muito antiquada,
muito especializada. Hoje em dia não se usa mais. O que há são
campos do saber". Os campos do saber são pequenas totalidades
interdisciplinares, multidisciplinares, em que se dá uma formação
geral que é o que o BID chama o "primo pobre" do que nos Estados
t Unidos é denominado de liberal urts. Então... introdução à Sociolo-
gia, introdução à História, introdução à Geografia, um pouquinho


26   UNIVERSIDADE FORMAÇÃO E CIDADANIA

de Filosofia, introdução ao teatro, todas aquelas introduções, aque-
la mixórdia total que o aluno escolhe e compõe o seu currículo bási-
co, em dois ou quatro semestres. O que está sendo proposto para
nós, para ser realizado no ano que vem, é simplesmente a adequa-
ção da Uníversidade de São Paulo aos critérios definidos pelo BID
baseados nos dados oferecidos pelos próprios latino-americanos,
tomando como modelo a universidade norte-americana.
  Agora, vamos passar à nossa Faculdade, que também produ-
ziu o seu documento de reforma.
  Eu queria dizer a vocês que não tenho nada contra reformas.
OS que me conhecem de longa data sabem que uma vez a cada dois
anos proponho reformar o Departamento de Filosofia de cima a
baixo, todos os cursos. Trago grandes projetos, que são discutidos
mas, depois, não se fala mais nisso. Adoro reformar, mexer, arru-
mar, ficar melhor. Não tenho nada contra mudar para melhorar. E
por isso não tenho nada contra o espírito deste texto. Não tenho
nada contra o espírito do texto da reitoria ou o do BID. O que tenho
contra é o que pensam que estão fazendo para o bem da humanida-
de e que é a destruição da universidade. Então, para introduzir aqui
a chegada à nossa Faculdade é que vou explicitar o tema que pro-
pus "As humanídades contra o humanismo".
  A idéia de humanismo ou a expressão "humanismo" aparece
tardiamente na história do pensamento, na história das idéias. Ela
vai surgindo em finais do século XIX e no correr do século XX. E é
usada, inicialmente, para se referir a um acontecimento histórico
muito preciso, muito determinado, que é a cultura da Renascença.
Para esclarecer um pouco por que é que esse termo é dirigido à
Renascença, gostaria de lhes dar um exemplo, talvez o mais impor-
tante, de como o homem é pensado na Renascença.
  Durante toda a Idade Média, a cultura judaico-cristã pensa o
universo a partir da elaboração neoplatônica e da elaboração
aristotélica que implica a idéia de que o mundo é um cosmos, isto é,
é uma ordem; e que é um cosmos, uma ordem, porque é hierárquico.
A hierarquia dos seres é feita pelo seu grau de perfeição, e o grau de  
perfeição é medido pela distância menor ou maior de um ser criado
por Deus com relação à essência de Deus. Há o pólo da luz pura,  
que é Deus, e o da treva absoluta, que é o Nada, e entre esses dois  


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   27

pólos há uma hierarquia de seres pelos seus graus de realidade.
Assim, por exemplo, no primeiro grau da hierarquia para os cris-
tãos, para os árabes e para os judeus, estão os anjos (não os anjos,
porque têm uma hierarquia celeste: arcanjo, anjo, querubim,
serafim..., mas podemos considera-los genericamente anjos). De-
pois o homem. Na verdade, não o homem, a alma do homem, de-
pois o corpo do homem, os animais, os vegetais, os minerais e as-
sim por diante. E há uma grande partição, que é a diferença entre a
esfera celeste, que é uma substância eterna e imutável, e a esfera
chamada sublunar, constituída pelos quatro elementos: água, ar,
terra e fogo, que são sujeitos à corrupção e à mudança. Há, portan-
to, uma primeira grande hierarquia - Deus, o mundo celeste e o
mundo sublunar -- e, depois, a hierarquia dos seres - Deus, os
anjos, a alma do homem, o corpo do homem, os animais, os vege-
tais e os minerais.
  Ora, uma das obras mais importantes da Renascença foi escri-
ta no final do século XV por Pico della Mirandola, chamada
Miraculum Magnum (O grande milagre). O grande milagre é o ho-
mem. E essa obra é antecedida de um prefácio chamado "Oratio de
Hominis Dignitate"11 (Discurso sobre a dignidade do homem). O
termo dignidade, no latim clássico e no latim da Renascença que
pretende recuperar o latim clássico, não significa o que significa
hoje para nós. Para nós, hoje, "dignidade", "digno", é uma caracte-
ristica individual do caráter de alguém. Do ponto de vista ético, do
ponto de vista moral, digo que uma pessoa é digna, que outra é
indigna e assim por diante. Não é este o sentido da palavra na sua
origem latina e no seu uso renascentista. Dignidade significa um
posto niuna hierarquia de poderes. E a mesma coisa é a honra. É
por isso que você não é honrado, você tem honra. Você não é digno,
você tem ou não dignidade. Isto é, a honra e a dignidade são o lugar
que você ocupa numa hierarquia de valores relativos ao exercício
rio poder.
  Pico della Mirandola escreve sobre a dignidade do homem,
isto é, qual é o lugar do homem na hierarquia dos poderes dos se-
res. E ele vai dizer o seguinte: quando Deus criou o mundo, Ele foi

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11. Giovanni Pico della Mirandola. (1989). Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa,
Edições 70. (N. da org.)


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criando todas as criaturas, e a última a ser criada foi o homem. E o
que aconteceu? Para cada criatura que criou, deu uma imagem, um
vestígio de uma qualidade que ele tinha. E quando chegou a vez do
homem, já havia dado às criaturas todas as qualidades, não tinha
sobrado nada para o homem. Então, o que fez Deus para recom-
pensar o homem dele não ter uma qualidade divina própria como
todas as outras criaturas? Ele deu ao homem todas. Fez com que o
homem fosse aquele ser no qual a totalidade do cosmos, isto é, todas
as propriedades, qualidades, características, predicados existentes
no mundo existissem nele de tal modo que o homem é um
microcosmos no interior do cosmos. O homem não é nem o ser mais
elevado nem o mais inferior da criação; ele é o centro da criação.
Ele é aquele ser no qual o universo inteiro se cruza e se comunica.
O homem está em contato e em comunicação com todo o real. E
para recompensar o homem por ter ficado sem uma qualidade es-
pecífica, Deus deu ao homem uma qualidade que, esta, Ele não deu
a nenhuma das outras criaturas, nem aos anjos. Deu ao homem a
vontade livre. Essa figura do homem é o que explica a maneira pela
qual o saber se realiza na Renascença.
  De um modo geral, as pessoas pensam que o homem renas-
centista é uma espécie de enciclopédia ambulante. Tome o caso,
por exemplo, de Leonardo da Vinci:12 é inventor, pintor, escultor,
poeta, é como se o homem da Renascença estivesse diante de um
mundo em que os conhecimentos eram tão poucos, tão parcos, tão
pequenos, que ele podia ter todos. E evidentemente esse homem
desaparece quando há o progresso do saber. O saber progride, nós
sabemos mais, sabemos melhor, surgem novas ciências, há espe-
cialização... toda essa "mediocridade" com a qual convivemos, isto
é o progresso. Então, o que se diz é que o homem renascentista tem
muitos conhecimentos, mas é porque eles eram todos muito peque-
nos, muito parcos, não havia o progresso do saber. E nós, cada
um de nós tem que ter um pedacinho de cada conhecimento ou
de umconhecimento só porque há muito saber. lsto é uma inver-
dade. O homem da Renascença é aquele que domina a totalidade
dos saberes porque é da essência do homem ser, na forma do
microcosmos, a totalidade do real. Ele é a realidade inteira, ele se

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12. Ver também Rogers Masters (1999). Du Vinci e Maquiavel. Um sonho renascentista.
Rio de janeiro, Zahar.


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   29

comunica com a realidade inteira, tem acesso à realidade inteira e,
por isso, tem todos os saberes.13
  Isso se perdeu. Acabou. O humanismo, uma figura histórica
que é da Renascença, acabou. Como foi que acabou? Por meio de
uma pincelada generalista e muito breve, vou expor como o
humanismo deixou de existir no plano do conhecimento e no plano
da prática.
  No plano do conhecimento, esse homem renascentista vai ser
de alguma maneira sufocado pelo surgimento do homem protes-
tante. E qual é a característica do homem protestante? A caracterís-
tica principal do homem protestante é que ele se apresenta como
dotado de liberdade de consciência. lsto é, não tem um papa que
vai ler a Bíblia para ele. Ele abre a Bíblia, lê, interpreta, segundo a
sua liberdade de consciência. Essa figura da liberdade de consciên-
eia se transforma, no interior da filosofia, na consciência de si mo-
derna. Essa consciência de si moderna se torna consciência de si
reflexiva, com Descartes. E essa consciência de si reflexiva, que se
torna o princípio do conhecimento, faz uma trajetória até Kant com
o qual ela se toma o sujeito do conhecimento. O que é o sujeito do
conhecimento? O sujeito do conhecimento é aquele que não está
mais no interior do cosmos, que não está mais em comunicação com
a totalidade do real. É aquele que se destacou do mundo, se desta-
cou do seu próprio corpo e que existe como um observador consci-
ente que se apropria da realidade por meio da produção de concei-
tos, idéias e representações. Ou seja, a trajetória consiste num pro-
cesso pelo qual o homem do humanismo cede lugar ao homem pro-
testante, do qual provém a idéia da consciência de si que, consciên-
eia de si reflexiva, se toma princípio do saber. Esse princípio do
saber pressupõe a separação entre o homem e o mundo. O homem
se torna, agora, o sujeito do conhecimento e, esse sujeito transforma
o mundo num objeto do conhecimento.
  O que se coloca, portanto, é a exterioridade entre o sujeito e
o objeto. E o sujeito exerce o domínio sobre o objeto na medida

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13. Sobre o homem e a filosofia renascentista ver: Ernest Cassirer (1951). Individuo y
cosmos en la filosofía del Renacimiento. Buenos Aires, Emecé; Ernest Bloch (1972). Philosofia de
la Renaissance. Paris, Payot; Etiénne Gilson (1986). Humanisme et renaissance. Paris, Vrin;
Eugenio Garin (org.) (1995). L'uomo del Rinascimento. Bari, Laterza. O diálogo de Espinosa
com o pensamento renascentista também possibilita a Chaui (1999, Op. Cit.) discutir o tema. (N.
da org.)


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em que este objeto é inteligível somente graças às representa-
ções do sujeito e graças à intervenção técnica do sujeito sobre ele.
Isto significa que o sujeito pode desmembrar este objeto, dividi-
lo. E, dividindo este objeto, divide campos de saber, campos de
conhecimento, ciências, áreas. Ou seja, o que temos como uma
pluralidade de saberes ou de ciências ou de conhecimentos não
é fruto do progresso da humanidade, é fruto da passagem da
figura do homem como parte imanente da natureza, do mundo,
ao homem como sujeito que produz, pelas representações, o ob-
jeto do conhecimento, domina este objeto, divide-o e reparte-o
em quantas partes e fragmentos ele considerar válido proceder.
Somos, portanto, herdeiros do sujeito do conhecimento e não do
homem do humanismo.
  Ora, do ponto de vista da prática o que acontece? Do ponto
de vista da prática, esse processo que expliquei anteriormente,
como processo do protestantismo, é o processo do capitalismo.
Esse processo faz surgir, sob a forma ideológica, no interior da
luta de classes, a imagem unificada do homem como indivíduo. E
é esse indivíduo que, enquanto tal, é considerado o homem pelo
liberalismo." E o que Marx vai dizer? Marx vai dizer que o indiví-
duo é uma fixação liberal e que o humanismo não é possível sob o
capitalismo. Por quê? Para que o humanismo fosse possível seria
preciso que o sujeito da história, o agente da história fosse o ho-
mem. Mas, no capitalismo, o sujeito da história, o agente da histó-
ria é o capital, que tem como predicados a burguesia e o proleta-
riado. No capitalismo não há o homem. O homem só pode surgir
quando o capital não for o sujeito da história; enquanto os ho-
mens, divididos em classes, não forem suportes da ação do capi-
tal, mas forem sujeitos da sua própria ação.
  É exatamente no instante em que se torna impossível falar no
homem que a ideologia humanista aparece, e as humanidades, não
podendo ser humanistas, se tornam, num primeiro instante,
objetivistas. lsto é, qual é o modelo que todas as ciências humanas

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14. Sobre a construção do pensamento liberal ver: C. B. Macpherson (1979). A teoria
política do individualismo possessivo. Rio de Janeiro, Paz e Terra; Claude Lefort (1986). Essais
sur le politique. Paris, Editions du Seuil; Gabriel Cohn et al. (1995). Razão e história. São Paulo,
Editora da Unesp; Domenico Losurdo (1998). Hcgcl, Marx e a tradição liberal. São Paulo, Edi-
tora da Unesp. (N. da org.)


AS HUMANIDADES CONTRA O HUMANISMO   31

escolheram no momento de sua formação? As ciências da natureza.
(O que e o fato social de Durkheim?). E vai ser preciso um percurso
complicado no interior dessas ciências, como um percurso do Weber,
como um percurso do Husserl, para mostrar que essas ciências pos-
suem seu próprio fundamento, seu próprio sentido, que não são
ciências da natureza, que são ciências do homem. Mas o homem
não existe. E, portanto, as humanidades lidam não com o homem,
lidam com as variações histórico-sociais dos homens divididos em
classes, em classes sociais.15 Aí, as Ciências Humanas e a Filosofia,
que de humanistas se tornaram subjetivistas, de subjetivistas se tor-
naram objetivistas, e de objetivistas tentaram uma solução de linha
nmrxista e fenomenológica, hoje em dia resolveram se tornar hu-
manitárias, já que não podem ser humanistas. E é o que está aqui
no documento da Faculdade. Ou seja, que reforma podemos fazer
para o bem dos alunos? Que reforma podemos fazer para o bem dos
professores? Que reforma podemos fazer para o bem da USP? Que
reforma podemos fazer para o bem de São Paulo? Que reforma po-
demos fazer para o bem do Brasil? lsso é puramente humanitário.
Não tem nada a ver nem com humanismo nem com as humanida-
des. lsso significa, portanto, que qualquer tentativa de realizar esse
projeto está fadada ao fracasso.
  No final das considerações preliminares dos documentos da
Faculdade é dito o seguinte: "Na essência, porém, quer se trate de
Engenharia, Direito, Ciências da Terra ou Letras, espera-se que o
bacharel tenha adquirido tanto a visão crítica quanto o conheci-
mento factual e técnico. Que tenha aliado, em um sentido mais
amplo dos termos, as artes e os ofícios. lmplícita ou explicitamente
o que se almeja é restabelecer uma certa unicidade do conhecimen-
to, próximo ao ideal atribuído ao homem renascentista". Após isso,
então, passam a tratar de curso seqüencial, campos de saber,
generalista, interdisciplinar, multidisciplinar, cursos básicos de in-
trodução de todas as coisas possíveis para que, depois, os alunos
façam uma opção consciente. Ou seja, toda a aparente profundida-
de da reforma se vincula a tentativa insensata de fazer o seguinte:
os três textos - o do BlD, o da reitoria e o da Faculdade - afirmam

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15. Marilena Chaui também discute essas questões em: Marilena Chaui (1997). Convite
à filosofia. 8ª ed. São Paulo, Ática. Ver também Michel Foucault (1987). As palavras e as coisas,
4ª ed. São Paulo, Martins Fontes. (N. da Org.)


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que a especialização, que foi necessária para o progresso da ciência,
esgotou-se. E como esgotou-se esse processo de especialização, já
sabemos tudo que havia para saber, então, agora, cabe recuperar
aquele lugar que é a dignidade das humanidades. (Quando eu era
pequena, nos anos 40, tinha uma piada que era assim: "Radio
Cochabamba, pequetita pero servidora, habla para la America Lati-
na". Assim são as humanidades hoje - "Pequetitas pero
cumplidoras e vao a hablar para todo el saber". De que jeito? Vol-
tando ao humanismo.) Ou seja, o que se propõe é fazer o círculo
ficar quadrado e o quadrado virar um círculo. O que se propõe é
não analisar a situação contemporânea das humanidades, os
impasses e problemas reais que elas têm, não fazer uma análise
material dessa sociedade, mas tomar a economia como destino e o
jogo do mercado como fatalidade e querer combinar, na ausência
dessas duas análises, as duas pontas do problema - o mercado e o
humanismo - e reformar a Universidade dessa maneira. Creio que
cabe às humanidades dizer que são contra.
  Muito obrigada.