Oi - como eu já disse pra alguns de vocês, há um tempo atrás eu tive alguns ataques de inspiração e comecei a ter umas idéias de cenas pra uma peça de teatro de bonecos... o título (que ficou na minha cabeça durante anos sem que eu tivesse a menor idéia do que fazer com ele) é um trocadilho esquisito: os franceses pronunciam títulos de coisas como se os nomes fossem em Francês, e daí "Rambo" acaba soando como "Rimbaud"; como em Português o Rambo II virou "Rambo II - a missão", daí, bom, o resto é óbvio. Aviso: isso tudo tá INCRIVELMENTE MAL-ESCRITO! É a primeira vez que eu escrevo cenas de uma história, e quando as inspirações bateram eu resolvi anotar o que vinha vindo do jeito que desse; foi mais ou menos como quando a gente acorda e quer anotar um sonho: se a gente puser o pé no chão antes de começar a anotar as primeiras frases o sonho vai embora. Eu não tenho a menor pretensão de transformar isso numa peça de verdade - pelo menos não num futuro próximo - mas me bateu a sensação de que eu tinha que pôr essas idéias pra circularem. Então aqui vai o material, leiam ou não, divirtam-se ou se chateiem, distorçam, recortem, copiem, joguem fora, roubem idéias, etc. Claro que eu vou achar ótimo se alguém quiser conversar sobre essa história, mas não quero ficar com expectativas nem pressionar ninguém; quero só fazer o que os deuses mandaram pra ver se depois eu ganho mais inspirações. Abraços, beijos e "oi"s, Eduardo Ochs (Edrx) http://angg.twu.net/ http://angg.twu.net/p.txt http://angg.twu.net/s.txt http://www.mat.puc-rio.br/~edrx/ http://www.mat.puc-rio.br/~edrx/rimbaud/ edrx@mat.puc-rio.br edrx@inx.com.br Rimbaud 0 - Missão Abissínia Ataque de inspiração No. 1 (23 de outubro de 2002): A peça começa com dois personagens - atuais - contando que estavam conversando com mais alguém sobre um amigo deles, que gostava de garotinhos; alguém que estava presente disse "urgh", e aí um deles disse "é, eu até concordo com você, mas eu não expulsaria o Rimbaud da minha cama"... depois disso eles viram que a história do Rimbaud começou a pipocar na cabeça deles com cada vez mais freqüência; essa peça é a história desse Rimbaud que foi se criando na imaginação deles, e que não precisa necessariamente ter a ver com o Rimbaud real. Nisso aparece, no outro canto do palquinho, Rimbaud esperando o navio que vai levá-lo para a Abissínia. O navio se aproxima muuuito lentamente (e é uma noite de lua cheia), e ele enquanto isso escreve coisas num caderno, sobre o que é escrever algo que ninguém mais vai ler; sobre como ele está tentando abandonar uma cabeça cheia de palavras pra pisar no mundo real. Personagens da peça: Felipe e Chris, que são os que conversavam sobre Rimbaud. Rimbaud. Aooamu, negro, meio animista, meio muçulmano. Leão (inspirado em Douanier Rousseau). Outro negro, esse inspirado nas pinturas do Rousseau. Verlaine e sua mulher. Rimbaud escreve porque quando ele entra num certo estado as imagens que ele tem são muito mais intensas que o mundo real. Aos poucos ele vê que ele constrói esse mundo com as palavras dele; no início meras fantasias, quase infantis - castelos, torres, mulheres com brilhos nos olhares - mas à medida que ele vai transpondo em palavras o que ele vê certas questões se resolvem, detalhes novos se criam, etc. É de uma dessas mulheres [que ele encontra nesse mundo imaginário] que ele ganhou o brilho no olho que ele tem - "vou te contar um segredo: esse brilho não vem de algo que você tem, não vem de se olhar no espelho e se achar loura e linda; ele vem de não ter algo, de sentir frio, de algo não fazer sentido, de sentir falta, de esperar alguém pra poder se entregar, pra se esquecer da angústia durante um abraço. O olhar vem por necessidade. O olhar é uma pergunta e uma isca". "Sim - caramba. Eu entendo - eu quero - eu preciso. Eu estou disposto a pagar o preço, seja qual for ele. Desculpe, não sei como dizer -" "pss, não se desculpe - se você se desculpar mais uma vez o momento estará perdido. Só você pode saber de onde os seus novos olhos vão vir -". Pausa. Espera. Movimentos lentos, hesitantes, quase solenes: é uma daquelas poucas situações na vida da gente em que a gente não pode fazer absolutamente nada errado, nem um mínimo gesto. Rimbaud começa a procurar, e a pensar onde procurar, em voz alta. Não é no chão, não é na lua, não é na árvore. Não é na poça de lama. Não é no reflexo da lua. Não é dentro de mim. Não são os seus olhos. Não é um animal (o leão do Rousseau tinha aparecido silenciosamente detrás de um monte de areia perto da torre e observava a cena). Olha a mulher de novo. "Posso?" - muito hesitantemente, se aproxima, e começa a abrir o vestido dela, que se arqueia um pouco para trás; Rimbaud se acocora, tira um dos seus olhos. Abre o vestido. Seus novos olhos estão nos bicos dos seios dela. Ele põe os olhos novos, bem mais brilhantes; talvez ele jogue um dos antigos pro leão. A mulher diz: "nós nos veremos de novo". Rimbaud: "espere! Eu preciso perguntar uma coisa. Eu vou ser tão bonito quanto você?" "Você vai entender." Ela fecha os olhos dele, e vai embora. Quando ele a encontra de novo ela é a mulher do Verlaine. Ele nunca consegue olhar pra ela direito de novo, porque ela parece saber tudo, e em silêncio. E Rimbaud nunca entende a sua dureza. Verlaine vê em Rimbaud uma maravilha, e uma oportunidade para experimentar o caos, tanto das suas próprias emoções como dos seus atos - ir numa sinuca do porto, tomar porres, puxar briga, gastar todo o dinheiro, ver a lua nascer por um reflexo numa poça de água com óleo na frente de uma garagem de motos - e ele deitado, com a cara na poça. Ter Rimbaud perto é um privilégio incrível, uma redenção, e ao mesmo tempo é viver na beira do abismo; ele pode perder Rimbaud a qualquer momento, e ele nem entende direito o que é que o toca tanto quando Rimbaud está por perto, o que é real ou imaginário, o que é sério, belo, ou ridículo. Rimbaud: "Eu me lembro de uma noite em especial - é uma das minhas memórias mais preciosas. Estávamos na casa de uma amiga, que tinha ido viajar (a cena vai se transformando na casa da amiga; a janela ao fundo mostra o Cristo Rendentor). Nós tomamos absinto como se fosse ácido - LSD. Ficamos olhando um vaso de flores como se fosse uma televisão. Ficamos abraçados no sofá durante horas. Eu não gostava do cheiro dele, do Verlaine - ele me lembrava o cheiro de alguém que procura emprego nos classificados do jornal, de roupas mal lavadas, de cigarros, de muita energia desperdiçada tentando parecer ocupado - tentando escapar dos olhares dos outros criando uma imagem medíocre e comum. E ele era gordo, meio peludo, velho. 40 anos - eu tinha 17. É engraçado, eu tenho 30 e tantos agora, e tenho vergonha de considerar alguém de 40 como velho. Mas talvez o que conte sejam os anos passados sentado na frente da televisão, fazendo pilhas de garrafas de cerveja vazias, enquanto a sua mulher cuida das coisas da cozinha. O silêncio entre os dois é que me intriga e me assusta..." "Mas voltando, como eu queria ser a mulher do Verlaine - uma vida de pratos e detergentes, esperando o Verlaine, que não vem - e nós estávamos no sofá, e era tão mágico, porque não importava se os cheiros dele eram bons ou ruins, não havia mais julgamentos, e ele me tocava de um jeito que eu nunca mais consegui deixar ninguém me tocar, e era como se não houvesse mais tempo, como se todas as realidades se misturassem, como se ele estivesse me ensinando a chegar num mundo que era tão intenso quanto o meu mundo das palavras, e era através do corpo... e no fim, quando o sol estava quase nascendo, ele deixou umas gotas dentro de mim - toda vez que eu me lembro delas é como se fossem pedras preciosas que ele me deu de presente, e que elas estão a salvo - são as únicas memórias que eu tenho que são realmente minhas, que eu tenho certeza de que eu não roubei de ninguém, e que ninguém vai conseguir me tirar." "Mas nós nunca conseguimos repetir isso. Eu nunca mais vi esse Verlaine, que era tão puramente mágico, e imaterial. Em todas as outras vezes eles parecia cercado de uma nuvem de horrores e mediocridades, que o rodeavam como urubus. Um dos meus medos é de ter roubado a força dele pra mim - e isso por acidente. Eu achava que as lembranças dessa noite iriam deixar nós dois mais fortes, mas não. Verlaine definhava, e ia virando cada vez um mero fiapo de si mesmo, preso num invólucro de carne malcheirosa, de apartamentos de paredes cinzas de nicotina, de obrigações sociais que o obrigavam ao silêncio." "Eu me sentia responsável." "Eu me sentia _amaldiçoado_." Vai até a janela da casa do Verlaine. Ele e a mulher do Verlaine se tocam através do vidro, como se um fosse o reflexo do outro. "Toda vez que eu escrevo um poema algumas das frases são ambíguas - e quando alguém lê um poema meu, ou até quando eu o releio um ano depois, essas frases ambíguas perderam o sentido, e não é possível sequer perguntar o que elas queriam dizer... a poesia é uma forma de comunicação sem resposta, em que a mensagem não chega até o outro lado... é como mandar um pedido de socorro num papel dentro de uma garrafa, mas esquecer de fechar a garrafa, e o papel ir sendo comido por insetos, ou se dissolvendo... e eu não aguento mais, eu comecei com poesia porque eu precisava de mundos e de caminhos" - (a torre e o caminho aparecem, balançantes, no fundo do palco) - "e agora o que eu tenho são só Verlaines se dissolvendo. Eu não aguento mais." Fragmentos escritos em 28 de outubro de 2002: O tio do Ooamu morre louco. Em outras épocas os tocadores de tambor da tribo ainda saberiam como reintegrar alguém que enlouquece, mas agora não, nós só sabemos olhar para um louco como está perdido para sempre, inatingível - e o louco olha pra nós como pessoas que eram como ele, que o entendiam, e que agora não entendem mais, e e nunca vão entender. Esses abismos entre pessoas não existiam, e vieram com o domínio francês. Um cortejo passa com o morto numa rede. Música, mas poucas vozes além disso. Rimbaud pensa no que fazer e só lhe ocorrem poemas - inúteis. Ele se sente pobre por não ter um abraço pra dar. Antes disso deve ter tido uma cena em que o Rimbaud está se arrastando pelas bordas de um vilarejo, doente, com fome e com sede; há dias ele não come nada. Ele tinha se isolado dentro dos seus pensamentos e não queria chegar perto de ninguém. Numa hora ele afinal pede socorro batendo à porta de uma casinha, e é socorrido imediatamente sem que lhe perguntem nada; só depois que ele está totalmente recuperado começam a lhe pedir que ajude em uma tarefa aqui e outra ali, mas com uma leveza que pro Rimbaud é algo de outro planeta. Ele não vê como se livrar das suas desconfianças e da sua rigidez. Rimbaud e Ooamu se encontram pela primeira vez numa cena onírica em que passa um grupo com vários seres dançando - pessoas, o leão do Rousseau, e outras criaturas que eu ainda não bolei. O Ooamu fica curioso pelo jeito do Rimbaud ficar parado e se aproxima dele e faz algumas perguntas. A conversa deles é cheia de longos silêncios. Ataque de inspiração No. 2 (11 de novembro de 2002): Sobre porque ele começou a traficar armas: Num mundo em que as pessoas perderam a sensibilidade, a única coisa que realmente importa é a morte Os meus biógrafos dirão: "e ele tinha uma esposa africana, muito bonita" - ninguém se perguntará: "mas que relação é essa?" - Ela se comportava como esposa, sim; ela parecia servil, sim; mas isso é apenas uma casca vazia - porque o recheio é outro, e está em outro lugar. (Rimbaud e a esposa agora falam em uníssono; a entonação deve lembrar os coros do teatro Nô) "Porque nós éramos estranhos em nossa própria terra - porque nós olhávamos para o que ninguém mais via - porque sempre nos disseram que não tínhamos os pés no chão - porque nós vivemos num mundo de imbecis - porque nem os nossos corpos poderiam nos proporcionar alguma paz ou satisfação; porque somos sempre inquietos, como os tubarões, que precisam nadar o tempo todo sem descanso, pra não afundar - porque vemos o futuro, o apodrecimento dos nossos corpos, o apodrecimento das nossas palavras, pernas amputadas, velhices malcheirosas, e umas poucas pessoas que ainda vão gostar de nós vão estar gostando de imagens que não têm nada a ver com o que realmente somos. Nós estamos juntos porque nós somos um, e somos exatamente iguais. Porque vemos o mundo do mesmo modo. O universo é uma bola que cabe dentro da nossa cabeça. (Tiram de dentro de uma caixa um balão preto com pontos brancos, como estrelas. O balão nem é muito grande; é meio vazio, aliás. Cantam:) "Ground control to Major Tom / Ground control to Major Tom" (talvez toda a parte principal do "Space Oddity", do David Bowie). Felipe/Chris: Esse Rimbaud é uma parte importante de nós, mas ele nos assusta. Rimbaud: Eu crio, cento e tantos anos no futuro, personagens que me entendam e que vivam num mundo diferente; talvez eles consigam me apontar uma saída. F/C: À medida que ele envelhece ele deixa de ser o gênio hipersensível e passa a ser um monstro de amargura. Ele se fecha em si mesmo, e os caminhos que ele traça para si não têm saída. Ele mergulha no próprio umbigo, e o que é pior, o que ele encontra é muito mais intenso e convincente do que o que está do lado de fora. Nós vivemos nos esfalfando pra conseguir migalhas de contato com pessoas e com o mundo exterior. Essas migalhas são pequenas e banais, mas elas nos alimentam. Esse Rimbaud se envenena com essas atitudes, e nos envenena. Nós gostaríamos de extirpá-lo de nós, como se ele fosse um câncer. R: Eles são amargos e cruéis. Eles não hesitam em descartar uma pessoa que se torna inconveniente. Eles não hesitam em tachar alguém como louco, e depois disso passarem a se lembrar dessa pessoa como alguém que já morreu. F/C: Como aquelas namoradas que agem como se tivessem direito a tudo e nos massacram. Aquelas que se vêem como vítimas da sociedade.