Rape Recovery Journal

Sábado 30/dec/2006

Andou acontecendo de novo. Agora está mais fraco, mas durante mais ou menos uma semana foi bem forte. Eu começava a pensar em como seria o meu próximo trabalho careta e logo me vinham as imagens dos dois sociopatas do grupo de programadores em C -

"Sociopatas" ou "engenheiros"? Não sei - quando eu era criança e eu descobri a palavra "sociopata" eu pensei "uau, é isso que eu quero ser quando eu crescer" - e todos os estudantes de engenharia que eu conheci eram que nem aquele Raphael do grupo de C, ou pelo menos meio que nem ele - o outro sociopata em nunca cheguei a conhecer direito e nunca soube o nome dele, mas em teoria eu teria que trabalhar junto com ele também...

Foi ouvindo as histórias deles que eu entendi porque as boates hetero - em que eu nunca vou - cobram tão caro a entrada: é porque de vez em quando caras como esses vão lá e quebram tudo. E depois eles ficam contando as histórias e rindo, rindo - " Aí, mermão! Aí, mermão!"

and he had a job
and he brought home the bacon so
no one knew

he was a mongoloid, mongoloid
happier than you and me

E uma das coisas que mais dóem é pensar que um cara desses é um ótimo profissional, muito melhor que eu (aspas em algum lugar - onde?) - o chefe manda fazer alguma coisa e o cara faz; não importa se fica mal-feito ou ilegível, ele faz. E todo mundo reconhece quanto esforço é necessário pra se fazer um programa ilegível de 5000 linhas como os dele, e pra ele fazer remendos no programa depois; pouca gente reconhece o esforço necessário pra um hippie como eu fazer um programa de 500 linhas, limpo e legível, que resolve o mesmo problema que o do cara... ah, o meu é bem mais fácil de consertar e de estender que o do cara, mes eu levo o mesmo tempo pra ter uma primeira versão rodando que ele, e eu só consigo ter pique pra fazer o que eu faço porque ao invés de eu passar os meus horários de almoço puxando a cara num sorriso, comendo uma gosma qualquer e falando sobre carros e bundas de mulheres eu passava os meus horários de almoço sozinho, indo em algum dos pouquíssimos lugares daquela merda de Barra da Tijuca que tinha opções vegetarianas, e lendo Jean Genet ou Virginia Woolf.

Uma vez eu pedi pra esse Raphael pra ele converter pra um certo formato uns documentos on-line que a gente tinha sobre um projeto que ia ficar sob minha responsabilidade; os originais estavam num formato que só podia ser lido direito em Windows ("aí, mermão, pra mim esse negócio de Software Livre é babaquice, isso não devia existir, eu não dou de graça os programas que eu faço de jeito nenhum, esse negócio de compartilhar é coisa de viado, e esse pessoal devia parar com essas frescuras de ficar usando sistemas diferentes e fazer tudo em Windows de uma vez") - aí eu fui tentar mostrar pra ele como é que eu usava esse outro formato e ele não quis ir ver no meu computador de jeito nenhum ("não preciso ver, eu conheço esse formato"), e eu tive que tentar fazer ele levantar puxando ele pelo crachá - lá os crachás ficam numas cordinhas no pescoço da gente - mas ele não quis levantar, acho que eu devia ter torcido mais (que será que teria acontecido se eu tivesse apertado até ele mudar de cor? Nananana, Raphael, sorria, é brincadeira, pára de frescura, claro que você está gostando, sorria - cada um tem um jeito de brincar, cadê o sorriso? Vem cá, baby) - mas parece que mesmo o pouquinho que eu fiz já pegou meio mal. Bom, whatever - não me arrependo.


Desde que eu tenho 14 ou 15 anos que eu não apanho por ser esquisitão ou por os caras acharem que eu sou viado - mas é como se isso fosse uma possibilidade permanente.

Sexofóbicos não apanham. São chamados de malucos, excluídos, discriminados, descartados - e só. Não é preciso empurrá-los pra baixo na hierarquia (como a gente empurra alguém pra baixo da água numa piscina) - eles já estão fora da hierarquia de qualquer modo.

Essa macheza desses Raphaéis é social - eles estão o tempo todo fazendo coisas para serem aceitos pelas pessoas do grupo deles, que pra eles é como se fosse o único grupo que existe e que importa. O "aí, mermão"; o "isso é coisa de viado" - o que acontece se há alguma reviravolta e eles passam a ser considerados viados, ou malucos (mesmo, de hospício), ou losers? É algo inconcebível pra eles - é uma espécie de morte -

O grupo deles massacra viados e nerdzinhos frágeis - "gente inferior".

Eu não sou um nerdzinho frágil - eu caí fora desses grupos há muito tempo - eu morri - e doeu, muito (it's an open wound that never heals, etc).

Algumas das minhas referências: junkies de psicodélicos, xamãs mendigos, Lobo Solitário, Sandman, terroristas suicidas -

Das vezes em que eu esganei alguém nos últimos anos era sempre eu sozinho contra a pessoa que eu esganava. Eu não contava com ninguém do meu lado, mas eu prestava atenção a todas as pessoas em torno, eu estabelecia uma comunicação com elas, e aí elas não me atacavam em grupo como se eu fosse o invasor, o "ele" (versus o "nós") - elas não conseguiam me transformar num "ele", numa coisa -

Os homens - os Raphaéis, mas esses é que são os homens homens de verdade - formam máfias - eles acobertam as escrotices e burrices uns dos outros - esse Raphael, por exemplo, trai a mulher pra cacete -

Covardes


Quando passaram "O Triunfo da Vontade" da Leni Riefenstahl e eu vi aquelas cenas da Convenção de Nuremberg, centenas de milhares de jovens em formação perfeita ouvindo os discursos de Hitler, aí é que eu entendi direito como deve ser bom pra caralho fazer parte de um grupo, ou melhor, do "todo mundo" - mas eu nunca consegui. Por um lado eu tentava, e sempre dava errado; faltava algum clic, faltava a naturalidade que aqueles caras tinham - volta e meia alguma coisa me puxava pra fora da situação em que eu estava, zuuuuuum, e num instante eu passava a ser um observador, e eu estranhava aquela situação e aqueles papéis, como é que aquelas pessoas podiam ter tanta convicção daquilo? Aquilo era raso e falso, como histórias escritas por idiotas, como música ruim - e aí eles percebiam o meu estranhamento e me estranhavam também -

Por outro lado, quando era criança a coisa que eu tinha mais medo era quando eu crescesse eu virar uma pessoa medíocre (é, com esses termos mesmo - depois é que eu passei a usar outros). Quase todas as pessoas em torno de mim eram "medíocres", e eu os via como mortos-vivos.

(Acho que se eu fosse uma criança feliz eu não pensaria desse modo. Mas eu achava que a única coisa que compensaria a vida que eu levava, e que faria tudo valer a pena, seria algo muito especial no futuro).

Aos 17 anos, depois de uma tentativa de suicídio frustrada, eu me arrastava. O único futuro que eu via pra mim era eu virar um vegetal num manicômio. Continuo achando um absurdo terem me mantido vivo; quem chega a um ponto como o em que eu estava não se recupera. Os deuses ainda vão me pagar por tudo isso - mas isso é outro assunto.

Eu tomei precauções pra que eu não pudesse virar um dos "medíocres", um dos mortos-vivos. Eu criei anticorpos. Eu queimei as pontes.


Alguns dos meus amigos matemáticos na faculdade tinham amigos estudantes de engenharia; eu não entendia como.

Se a gente vê um bicho que come grama e outro que come pequenos roedores a gente diz: são espécies diferentes. Eu olhava pros estudantes de engenharia e pensava: eu não consigo nem entender como é que alguém gosta das coisas que esses caras gostam, não consigo nem me pôr no lugar deles. A bioquímica emocional deles é o oposto da minha.

Eles gostavam de poder, coisas, mentiras, diversão, cerveja, galinhagem, trophy girls, de se sacanearem mutuamente, de tiraram onda, de serem espertos, de competirem, e de pisarem em losers.


Então: andou acontecendo de novo. Durante uma semana as imagens ficaram me vindo dezenas de vezes por dia - por exemplo, eu cortando as falanges da ponta dos dedos da mão do Raphael com um alicatão ("sorria, Raphael, sorria") -

Quase todos os homens são meus inimigos.

Era pra eu sentir alívio por eu não ser como eles - mas é mais fácil a gente se lembrar das coisas que incomodam, e da mesma forma que eu às vezes sou atacado por esses surtos de crueldade (que, óbvio, ficam só dentro da minha cabeça, como uma bad trip), eu às vezes sou atacado por crises de inveja e raiva - eu sei que eu não teria como ser como eles, mas eu fico olhando pra essas pessoas "normais" como um garoto diabético olhando pros outros garotos tomando sorvete.


Acho que esses flashes de crueldade - e mil outras coisas que eu detesto - têm a ver com hormônios.

(Aliás eu comecei a ficar vegetariano - em 2001 - pra tentar controlar essas crises. Funcionou bastante, mas isso é outra história).

Há anos que eu penso em experimentar Androcur pra ver o que acontece - mas eu queria experimentar o Androcur sem tomar antidepressivos junto, e dizem que aí o efeito pode ser devastador, e eu ainda não tenho estrutura pra isso. Estou há anos sempre deixando isso pra depois, e me preparando mais e mais.

Se funcionasse eu poderia consolidar o efeito com uma orquiectomia... eu teria que ficar tomando doses pequenas de hormônios de tempos em tempos pra não ficar totalmente sem hormônios, e eu odeio alopatia, mas seria um pequeno preço a se pagar. E aí depois da orquiectomia eu poderia conseguir uma penectomia...

Mas essas coisas me fechariam portas para trabalhos caretas, e eu já tive um pouco de acesso a caminhos mais sutis pra equilibrar essa bagunça toda. Nada disso tudo pode ser feito apressadamente - mas se os pensamentos ficam vindo é melhor lidar com eles do modo mais honesto possível.

Sexta 24/nov/2006

São Paulo, 18/nov/2006: de repente eu descobri que todas as outras quatro pessoas na mesa comigo - pessoas envolvidas com Software Livre, mas paulistas - eram ferrenhamente anti-Lula, e elas falavam como se qualquer pessoa minimamente razoável fosse ser anti-Lula também.

Aí eu confessei timidamente que eu votei no Lula duas vezes, que eu gosto dele, que eu acho que ele fez um governo centenas de vezes melhor do que eu achei que seria possível fazer, que ele pegou um país destruído, que pela estrutura do governo qualquer um que chegasse à posição dele se corromperia bem mais do que ele se corrompeu, que eu achava que ele seria destruído pela mídia em poucos meses e isso não aconteceu, etc...

(Marta: eu me lembro daquela época em que o "A Sociedade do Espetáculo" sempre pipocava nas nossas conversas, e aos poucos o livro começou a ser citado em artigos em jornais, e nós ficávamos revoltados porque os artigos sempre eram escritos por gente com uma compreensão do livro infinitamente mais superficial que a nossa...)

As pessoas na mesa falaram que governos e empresas eram igualmente corruptos e daninhos mas que as empresas funcionavam melhor, que a telefonia antes e depois, etc -

Acontece que eu não quero saber se celular vai funcionar melhor ou pior, se carro isso ou aquilo, o que me importa é se os meus sobrinhos vão conseguir estudar direito em colégios públicos, o quanto as pessoas em torno de mim vão ter que pagar em planos de saúde, o que elas podem conseguir depois de horas nas filas do INPS, e me importa saber como é a vida das pessoas das favelas, com quem afinal a gente aqui no Rio convive tanto... fodam-se os fucking winners e seus celulares (se bem que todo mundo tem celular hoje em dia), o que me importa é o próximo assalto, e que tantas pessoas estão deprimidas e sem saída, umas estão tomando bolinhas, outras não, e que a Marta se matou em novembro de 2004.

(Em sonhos nós éramos como os amigos do Guy Débord, terroristas que iam sendo inexoravelmente localizados e abatidos quase sem estardalhaço. Mas nosso interesse por macropolítica era quase zero, já que macropolítica é feita quase só de vícios de pensamento e de ruído, então na vida real nós eramos só aqueles malucos incompetentes vivendo nas bordas da sociedade, deixados pra morrer por si sós.)

Quinta 23/nov/2006

Eu não deixaria qualquer um me furar, eu não transaria com qualquer pessoa, e são pouquíssimas as pessoas que eu gostaria de ter ao meu lado se a gente comesse bolo de maconha ou tomasse um ácido (nossa, há quanto tempo eu não faço nenhuma dessas coisas - muitos meses, alguns anos, dez anos)

É fácil usar o safeword e dizer "pára, não põe mais uma agulha". Drogas são muito mais sérias - uma vez que a gente tomou, tenham batido ou não, não dá pra reverter até tudo passar - mas as poucas pessoas que interessam sabem disso muito bem.

Onde é que estão as pessoas pra quem a gente pode dizer "essa história de sexo não está funcionando, vamos tentar usar a energia pra outras coisas"?

Eu estou tentando me livrar de um "fantasma": uma cena que se repete - que eu me envolvo com alguém e daqui a pouco essa pessoa me massacra ou me troca por outra, porque pra ela sexo é uma coisa física e simples e boa e pra mim não é -

Eu fico sem saber se eu devo tentar esquecer isso e tirar a energia desse pensamento ou se eu devo pensar mais sobre isso até conseguir definir mais ou menos bem com palavras como essas coisas são pra mim.

No Canadá eu podia dormir com meus amigos e amigas (com amigos é mais difícil; só quase aconteceu, mas não chegou a acontecer mesmo), mas aqui as coisas são diferentes... Uma vez uma amiga minha daqui me disse uma coisa que me deixou horrorizado: essa amiga minha, A, estava namorando B mas brigou com ele; aí ela saiu com C e B ficou com muito ciúme. Como assim, eu perguntei, e acabei descobrindo que "sair com" quer dizer "trepar" - assustador isso, porque pra mim "dormir com" quer dizer "dormir com", e eu fico até com medo de lembrar do que "dormir junto" quer dizer pras pessoas normais daqui... aliás, foi numa dessas que a Aline me agarrou e me comeu - e depois ficou se esquivando e tirando onda e me manipulando - e isso acabou virando a pior coisa que já me aconteceu, pior do que eu ser filho do meu pai, pior do que a minha adolescência, pior do que eu ter sobrevivido à minha tentativa de suicídio quando eu tinha 17 anos, que na época era a minha única esperança.

Segunda 20/nov/2006

Aconteceu com um amigo meu:

- Tá tudo bem?
- Não, tá tudo péssimo!
- Ah, mas não pode ser assim não! A gente tem que dizer que as coisas estão bem.
- Então tá tudo bem.
- Então tá bom. Muita força pra você, qualquer coisa me liga.

Sábado 4/nov/2006

Da última vez que eu encontrei a pessoa X (terça, 23/outubro, por acidente, depois de um seminário na UFF; o domingo que eu fiquei doente foi dia 15/out) a gente conversou um bocado, e ela ficou tentando pôr as coisas em termos de atração física e definição sexual -

Cada vez eu tenho mais raiva disso. Desde pequeno eu acho que a gente deveria tentar não discriminar pessoas só por detalhes físicos etc etc - ah, mas depois eu fiquei tentando pensar nesses termos da pessoa X, nem que fosse só pra eu ter uma resposta pras próximas vezes em que as pessoas em torno de mim começassem a conversar sobre essas coisas (esse tipo de conversa me irrita e me frustra, quando elas acontecem eu desligo) -

Que tipo de coisa eu gosto numa transa: o espírito de "na hora a gente vê". Algo que eu detesto e que me aterroriza: pessoas que separam o físico do resto.

Quinta 2/nov/2006

De Diane Arbus - A Biography, pp.243-244:

Diane would also show her contacts to Walter Silver, a documentary photographer who lived near her in the West Village. Diane liked his work and he liked hers. "We'd compare prints," Silver says, and then sometimes Diane would have coffee with him at the Limelight, where many photographers still hung out - photographers like Weegee, Robert Frank, and Louis Faurer. "We'd all sit together at a big table and Diane would sit with us," Silver adds. "She'd never say a word - she'd just listen and then suddenly you'd look up and she'd be gone. She was the only woman who was ever in our little group."

Which was her choice, of course, but some people got the feeling that Diane thought of photography as a man's profession. "I remember, though, that once I mentioned that women might be better photographers than men because women can inspire greater confidence," John Putnam noted, "and Diane said, `Look, I'm a photographer, not a woman photographer.'"

As for making a great photograph, Diane believed men and women were equal, but she also knew that for many of her magazine assignments she was being paid half a man would be paid and this bothered her. Still, photographing for magazines was to only way to survive; all the photographers she respected did magazine work.

Insegurança e baixa auto-estima parecem ser território feminino - não, não é bem isso - tem vários modos de lidar com isso, muitos femininos, uns (poucos) masculinos

...em geral "downright losers"; as exceções a gente conta nos dedos de uma mão, acho, e são sempre muito impressionantes e caem fora dos padrões de gênero usuais. As que me vêm à cabeça agora ("fragilidade e lucidez ao mesmo tempo"): David Bowie no "Low"; os irmãos Reid no "Psychocandy"; Ney Matogrosso no Secos & Molhados; talvez o J. Mascis no Dinosaur Jr., principalmente no "Just Like Heaven" e no "Bug" -

Estou me expressando mal, mas depois eu tento de novo.

Ah - eu fiz essa conexão porque às vezes eu fico pensando que talvez eu esteja condenado a ganhar sempre metade do que os "homens" ganham - pelo menos se eu continuar aqui no Brasil. Parece que aqui competência não importa muito, pose e assertividade é que sim...

Terça 31/oct/2006

Dizem que pra gente viver como frila - e trabalhar em casa - a gente precisa de uma auto-disciplina monstro, e eu não sei se eu tenho - pelo menos não do jeito dos outros.

Quando essa minha história com a pessoa X estava no seu pior momento eu passei uma semana vivendo como um zumbi. Teve um domingo em que eu acordei muito zonzo e espirrando muito; eu tentei fazer algo de útil no computador e nada andava, aí eu resolvi interpretar isso como um sinal de que eu tinha que descansar e me joguei na cama. Das poucas vezes que eu acordei eu vi que que eu mal tinha forças pra rolar um pouco pelo chão e alcançar alguma coisa (a minha cama é um futon, ela fica pouco acima do nível do chão), então no domingo inteiro eu mal passei seis horas sentado ou de pé... e depois disso eu tentei lembrar o que eu tinha feito nessa semana e não consegui - sei que eu não perdi nenhum compromisso, sei que na terça eu dei um seminário na UFF que foi bastante bom, sei que eu devo ter parecido bastante normal, e sei que algumas vezes eu me via conversando comigo mesmo sobre essa história com a pessoa X, e eu ria, porque era estranho e engraçado eu não saber se eu estava triste ou não, aliás, eu não saber como eu estava -

Bob Dylan - Most of the Time

Sei que durante essa semana em que eu fui um zumbi eu quase não tive energia pra mexer num programa que eu estou fazendo como frila, e isso me grila - os "profissionais" que eu conheço que trabalham em profissões caretas, quase todos - digamos, os que trabalhavam comigo na Barra - são cascas vazias sem nada dentro... e ainda por cima eu sempre me meto em coisas que exigem um bocado de conhecimento e dedicação, que não dá pra fazê-las banalmente -

De onde é que aqueles garotos nerds do trabalho da Barra tiravam energia pra fazer aqueles programas enormes, áridos, horríveis? De dinheiro, kart e putas? De ficarem rindo e se chamando de viados?

Domingo 29/oct/2006

Agora a Camila se mudou de volta pra cá, dessa vez com o namorado, que é super gente boa; a casa virou uma festa permanente, e esse domingo foi um entra-e-sai de convidados trazendo garrafas. Eles zanzavam entre o terraço - onde as pessoas estavam "trocando uma idéia", whatever that means - e a cozinha.

A máquina de lavar vai embora na terça. A geladeira também, mas tem uma reserva (uma antiquíssima), e vai entrar uma nova no lugar da que sai.

Eu falei "...de volta pra cá", mas eu não estou em casa, estou matando tempo na rua, tentando pôr as idéias no lugar e tentando lidar com uma coisa engasgada na garganta.

Acho que a minha Pepsi de 2L foi embora também - as pessoas da cozinha fizeram alguma menção a ela logo antes de eu sair de casa pra votar, e a Camila quer que as coisas da cozinha sejam de todo mundo. Isso é foda, porque eu sou vegetariano (com tendências vegans fortes) e ela é super carnívora e junkfoodívora. Ah, e eu tinha nojo das panelas que ela deixava em cima do fogão - a frigideira de ovo frito e a sanduicheira que eu nunca tive coragem de abrir - e daquelas cracas em torno das bocas do fogão que um dia, na época em que ela estava morando fora, eu levei meia hora com um bombril pra tirar 90% delas. O forno eu só abri uma vez, pra esquentar um treco, e nessa hora eu mantive a minha capacidade de abstração ligada no máximo, então eu não sei como ele estava.

O meu plano era usar a Pepsi pra virar a noite programando. Vou ter que ligar pra Camila pra saber o quanto sobrou e se eu preciso comprar outra.

A noção de sujeira das pessoas é diferente, né - eu aprendi isso no tempo em que eu morava com o Meleca, ele se preocupava com poluição e contaminação por metais pesados e nem reparava que toda vez que ele entrava na cozinha feito um bólido pra preparar alguma coisa voavam pedacinhos pra todo lado, e eles ficavam no chão. Isso me desesperava, eu costumava andar descalço em casa e o Meleca nessa época estava sempre com um pijama branco encardido e chinelos de sola de sisal - e pressa, muita pressa, pra tentar disfarçar a depressão - então ele passava pela cozinha super rápido e sem atenção e logo voltava pro quarto dele pra fumar mais skank. Como eu não sabia o que fazer com isso eu passei a deixar as minhas havaianas perto da cozinha e eu só usava elas pra entrar lá.

A minha noção de sujeira e a do Tião são super compatíveis. Nesses tempos de Camila fora nós mantivemos a cozinha e o banheiro bem usáveis, mas a gente deixava a poeira no chão da sala (a "Sala da Camila") no lugar até nos incomodar - tipo três semanas -, mas isso era uma brincadeira e um gesto de liberdade.

Sábado 28/oct/2006

Acabou. Aliás, já acabou há semanas, e cada vez que eu tento escrever sobre isso sai algo totalmente diferente.

A pessoa X acabou comigo porque ela descobriu que gosta de mulheres (e o meu corpo é masculino, né; do resto a pessoa X (diz que) não tem queixas, muito pelo contrário - melhor que a Cláudia, que acabou comigo porque queria um homem de verdade), e há meses atrás a pessoa X rechaçou uma amiga apaixonada por ela porque ela (X) gostava de homens.

Obs: claro que isso é a minha versão da história, e a minha versão já mudou várias vezes, e memórias são mais legais que fotografias porque fotografias ficam iguais com o tempo e memórias a gente pode distorcer à vontade... e as coisas que eu escrevi sobre isso antes eram ruins e chatas, e problemas têm que ser interessantes e divertidos, senão eles afastam as pessoas.

Quando eu era adolescente o meu cabelo era um Black Power gigantesco. Ele afastava algumas pessoas - quase sempre as pessoas de quem eu queria distância - e fazia outras pessoas (legais) se aproximarem.

Pessoas vestidas de problemas


Ouvindo: Furtwängler, 9ª de Beethoven, gravação de 1942 com a Filarmônica de Berlim.

Lendo: Diane Arbus - A Biography (Patricia Bosworth)

Terça 24/oct/2006

Má-formação congênita, problemas hormonais graves -

Eu tenho esse blog há quase um ano e ainda não consegui escrever nada sobre isso

Sexta 13/oct/2006

Ele me deu a mão pra eu cheirar e eu pensei: "será que ele andou caçando perto das bromélias?" - apesar do cheiro ser um pouco diferente -

Aí ele fez festinha em mim. Ele era fofo.


Me mostra o que você sabe fazer com luvas de látex e um balde de astroglide.

Quinta 12/oct/2006

Idéia para um cartaz pra ser colado no poste na base da escadaria:


Qual é a função desses policiais da escadaria?
É tirarem dinheiro de gente inocente?
Eu estou cansado de ter medo e raiva toda vez que eu subo essa escada.
Quero ser "protegido" por gente decente.

(Que vergonha precisar de um cartaz anônimo pra dizer isto)

Quarta 9/aug/2006

Passei pela casa dos meus pais e vi os dois se desvanecendo juntos.

Às vezes eu penso, como seria bom se a guerra em que nós vivemos fosse mais explícita e as nossas velhices e mortes fossem mais dignas, interessantes e coloridas.

Eu queria o meu "Malone Morre" de volta. Será que eu o emprestei pra alguém - e anotei pra quem - na época em que eu me mudei pra um lugar menor e resolvi que os meus livros precisavam circular?

A Zedka tem um exemplar, de qualquer modo.


Antigamente o Beckett era só um escritor fodão e um Prêmio Nobel bem dado. De um ou dois anos pra cá eu tenho ouvido cada vez mais gente se referindo a ele como alguém fundamental, a oitava maravilha do mundo, que bom que nós temos Beckett. O que houve? Eu lembro de ter ficado muito perturbado por "Rockaby", mas tenho lembranças vagas do resto (comprei vários livros dele numa viagem à França quando eu tinha 15 ou 16 anos), e nunca li o Godot direito.

Será que essas pessoas consideram que o Beckett encontrou uma chave pra entender o mundo de hoje?


No Congresso Vegetariano tinha algumas dessas pessoas de 80 e poucos anos super ágeis, super vitais, com vozes claras e sem vibrato. Elas atribuem a saúde delas à alimentação (são crudívoras, em geral), mas as pessoas da família delas dizem que não é possível, que é uma questão de genes.

É meio antipático a gente ficar dizendo pras pessoas passarem a comer coisas que elas não conseguem comer de jeito nenhum.

Acho que a grande questão é: porque é que algumas pessoas se dispõem a mudar de alimentação e a terem hábitos mais saudáveis (e a tomarem o controle das suas vidas nas suas próprias mãos) e outras não?

E a geladeira da minha mãe cheia de queijos e frios. E eu não posso fazer nada. Eu entendo as razões dela.

Domingo 6/aug/2006

Taxista filho da puta, quando eu perguntei na rodoviária se era táxi normal ele explicou com mumbling words e risadinhas de carioca gente boa que "brxstlpqtlhmqsz 3 reais", e eu achei que no máximo era 3 reais a mais em cima da bandeirada - aí chegando aqui defronte de casa ele fez uma conta mágica em cima da quilometragem e a corrida deu R$29,70 ao invés de pouco mais de R$15... eu fiquei horrorizado, reclamei, quis os meus R$0,30 de troco (preu não ir dormir me sentindo tão roubado), o cara não tinha, e eu disse que então eu ia deixar as mochilas em casa e a gente descia e rodava até conseguir trocar uma nota de R$10 e depois eu voltava a pé...

Aí eu acabei cedendo, deixando o cara com R$30 mesmo, saindo do carro num puta mau humor e pensando em fazer o que eu pudesse - e que não desse muito trabalho - pra que nenhum conhecido meu nunca mais pegasse esses táxis de cooperativas que cobram quase o dobro dos táxis normais, mesmo sendo amarelinhos e iguais aos outros.

Tou escrevendo isso com um restinho de raiva - o meu default é esquecer e agir como se eu não tivesse direito nenhum - como se eu fosse ainda mais negro e não-consumidor do que eu sou.

Sábado 22/jul/2006

!!

Domingo 16/jul/2006

A Bianca disse "você vai no congresso vegetariano em São Paulo, né?!" meio como se fosse uma ordem, e eu adorei isso - em 5 minutos eu já tinha decidido que ia.

Ontem eu conversei bastante com a minha mãe - acho que está na hora dela ficar sabendo de algumas Coisas Muito Importantes, por mais que não façam sentido pra ela num primeiro momento (ou nunca), e por mais que durante anos ela tenha dito que preferia não saber - aliás, que "tinha o direito de não saber". É hora de forçar a barra e desfazer bichos de sete cabeças.

Talvez tenha sido essa conversa com a minha mãe que me fez pensar uma determinada coisa quando a Bianca me falou do Congresso Vegetariano... Deixa eu transcrever um trecho de um e-mail que eu mandei em 24 de junho:

Eu 95 ou 96 eu caí no meio do Primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (é sim -- longa história) e lá eu aprendi MUITAS coisas muito importantes... numa das primeiras palestras que eu assisti a palestrante estava falando sobre como as lésbicas são invisíveis mesmo no meio do movimento feminista, elas participam pra caramba, carregam as coisas, fazem o trabalho pesado, dormem (e tarará etc etc) com as feministas, e aí quando elas se inscrevem pra falar nas plenárias alguma coisa acontece e o tempo sempre acaba antes da vez delas chegar. Bom, pra resumir muito, os gays que eu conhecia estavam falando sobre sexo e festa, os heteros como sempre falavam sobre mulher, política e futebol, e logo nos primeiros minutos da primeira palestra em que eu fui no seminário eu vi que as pessoas de lá estavam falando sobre visibilidade e auto-estima... Baraaaalho!

Bom, tudo isso pra contar que eu ando fazendo coisas loucas de vez em quando, cada vez mais, aliás, e com uma atitude de quem tem muito pouco pra perder e de quem já não tá mais ligando muito pra se vai ser entendido ou não, porque muita gente por aí resolveu não pensar e não entender e ficar só desprezando tudo, e não dá mais pra ficar esperando que essas pessoas me entendam e me respeitem, tá na hora de forçar umas barras. E as estratégias que funcionam quando a gente é uma minoria de um são muito diferentes das de quando a gente é parte de um grupo grande.

Eu tou com isso tudo muito presente na cabeça agora porque há duas semanas atrás eu quase esganei um garoto (20 anos) amigo de uns amigos meus que são vegetarianos militantes... ele passou horas descarregando uma raiva inexplicável em todas as direções, e quando ele falou que tinham que matar drogados, aleijados, débeis mentais, gays e todas as pessoas que fossem inúteis pra sociedade eu achei que eu não tinha nada que ficar me controlando e era melhor deixar as minhas raivas e rancores fluírem...

Lá no congresso vai ter muitos vegetarianos muito chatos, mas alguns gatérrimos. Lá vou eu, carregar coisas, fazer a minha melhor cara de roadie invisível, me divertir à beça e ver o que acontece.

Estou ficando incoerente com o meu próprio discurso reclamão - isso é ótimo.

Quinta 6/jul/2006

Eu vi ela cantando bem baixo uma música do "Pornography" do The Cure como quem entoa uma maldição

Sábado 17/jun/2006

Há vários anos atrás eu assisti uma exposição do Mestre Vitalino no CCCB. Os bonequinhos eram toscos mas muito expressivos, e muitos deles tinham sido emprestados por museus do Japão e da Alemanha. A exposição estava lotada. De repente eu me toquei que os personagens que eram retratados nas esculturinhas - barbeiros, dentistas, cavaleiros, famílias, noivos, criadores de animais, sempre coisas cotidianas assim - tinham se reconhecido nos bonequinhos, e tinham conversado com o Vitalino; alguma transformação estava acontecendo na vida daquelas pessoas e daquele lugar, parecia que antes era só aqui e agora, dia após dia, num lugar nenhum, e o máximo que as pessoas podiam ter eram memórias e histórias, e talvez algumas fotos - e de repente elas são algo mais, o que elas vivem também pode virar esculturas, não sei explicar - e não era um caso de artista solitário, como o que a gente costuma ver - tinha algo muito grande acontecendo ali. Aí eu tive um ataque de choro totalmente incontrolável no meio da exposição, e tive que ir correndo me esconder num canto - era uma época em que eu não chorava nunca, nem escondido.

Do meu caderno principal (o vermelho), escrito em 1987:

Aí o choro foi aumentando e eu soltei a voz e saiu uma voz grossa e feia e eu me calei outra vez.

Quinta 1º/jun/2006

Quando eu era pequeno eu fiz vários anos de psicoterapia com um cara que hoje em dia eu considero como um imbecil. Acho que não faz sentido omitir o nome dele, então lá vai: Mário Romaguera. Vai que algum dia alguém se dispõe a furar os pneus do carro dele, sei lá... antes tarde do que nunca.

Eu tinha alguns assuntos espinhosos que eu queria poder abordar na terapia, mas eu não conseguia falar deles diretamente - a gente não fala qualquer coisa pra qualquer um - então eu tentava dar deixas. Eu esperava que ele entendesse minimamente o que eu dizia e fizesse as perguntas certas.

Se eu percebesse que o que eu sentia era algo que ele conhecesse aí eu prosseguiria - aliás não é só que eu estivesse fazendo doce, também tem uma questão de linguagem... se a gente quer contar uma coisa X o modo de contar vai ser um quando a coisa é familiar pra pessoa com quem a gente está conversando, outro quando a coisa é totalmente nova mas a pessoa fica interessada, outro quando é nova e a pessoa fica meio horrorizada e meio defensiva, outro quando ela não entende de jeito nenhum... e o Mário, talvez por algum princípio profissional que ele provavelmente entendeu errado, era sempre casual e neutro, e é difícil a gente contar coisas que são super pesadas nessas condições - e mesmo assim durante anos eu tentei.

Eu só lembrei disso (e resolvi escrever algo sobre) porque me lembrei da imagem do labirinto. Podemos não ter grandes segredos, mas nem tudo o que temos está imediatamente à vista, se alguém quiser saber mais vai ter que andar dentro da gente um pouco, tentar vários caminhos,

(incompleto - na verdade eu ia começar daí e falar sobre relacionamentos)