Rape Recovery Journal

Domingo 30/sep/2007

me: (isso que eu tou falando tá me ocorrendo agora)
      tá - vou te usar como personagem - eu não assisti a cena, mas acho que eu vou acertar
      um professor tá falando sobre Al Berto e te pede pra ler uma coisa dele em voz alta
      e depois de você ter lido os alunos estao pasmos e enlouquecidos, como o Robespierre e o outro cara depois que o Orfeu e as cabeças cortadas cantaram
      não bastava o texto em si
Tatiana: entendi
me: quando as pessoas olharam pra você lendo aquilo elas viram verdade
      um nível de verdade que elas podem passar anos sem lembrar que existe
      todas as associações que elas fazem naquele momento em que você está lendo o Al Berto se conectam
      elas pensam sobre porque você é arredia e calada e séria
      elas pensam sobre os poetas de bar
      elas comparam tudo
      tudo faz sentido
      e o "sentido" usual que elas estão acostumadas a dar às coisas fica tão frágil e patético que elas não conseguem desgrudar a atenção de você
Tatiana: eu enxergo isso quando você fala da Anaïs ou de como é intensa aquela gravação do Joy Division, quando a R. finge que não se encantou pelo Vergílio Ferreira, mas por exemplo, até vejo isso no Tião quando ele fala raras coisas sobre o Jorge de Sena.
me: sem contar que de repente o silêncio faz sentido tambem, e as pessoas começam a ver que é muito mais intenso ouvir (e focar no que elas estão vendo e ouvindo, imaginar) do que a performance usual cotidiana delas, o jogo de respostas certas na hora certa, as conversas no corredor, a hierarquia social das Raquéis e Maffeis
      sim - e a impressão que eu tenho é que a gente (talvez esse a gente seja um "a gente" pequeno - nós dois certamente, e algumas outras pessoas) quer, e TEM, que manter contato com essa intensidade, que pra maior parte das pessoas parece enlouquecedora
      nossos bons trabalhos, e até nossas melhores reações cotidianas, gestos, respostas, vêm de nós estarmos conectados com essa energia e com essa verdade

Quarta 5/sep/2007

O que me ficou na cabeca sobre o Thermidor esse tempo todo não foi tanto a história em si, ou a técnica de contá-la - mas eu fiquei me fazendo perguntas a respeito da história como as perguntas que a gente faz a respeito de mitos... por exemplo: o que é a técnica do Orfeu de cantar daquele jeito? O que é que fez com que os mortos cantassem junto com ele? Algumas vezes eu já assisti espetáculos que faziam com que todo o resto ficasse irrelevante; durante meses nada mais do que eu via tinha um décimo da intensidade ou da realidade daquele espetáculo... por exemplo, acho que as três coisas mais fortes que já me aconteceram foram a primeira vez em que eu tomei Daime, a vez que eu tomei LSD, e o show do Iggy Pop... Como é que alguem vira o Iggy Pop? Porque é que 3000 depois as pessoas ainda falam de quando o Orfeu desceu ao Hades? Porque é que (pequena forçação de barra aqui) 220 anos depois as pessoas ainda falam de quando Orfeu cantou no depósito de cabeças? Porque é que as pessoas contam essas histórias, e como é que elas evocam a cena original? Qual é o mecanismo? A gente precisa disso.


...e mais outra coisas menores... como é que ele sabe que o brinco vai voltar pra ele? O que é que o Sandman tinha pra oferecer para a Lady Joanna Constantine? Porque é que eles nem precisavam colocar aquilo em palavras? E claro que isso não são questões abstratas pra mim; à medida que eu consigo funcionar melhor dentro de uma certa linguagem que no mundo atual é rara, de um outro nível de percepções e certezas, eu sei que eu vou conseguir me posicionar melhor dentro de situações que viraram grandes pesadelos: a Aline me transformando num monstro canalha que devia rastejar aos pés dela, o meu pai me transformando num não-sei-o-quê, os grupos de engenheiróides com mentalidade de pit-boys com os quais às vezes a gente vai ter que conviver em alguma situação de estudo ou de trabalho.