Biblioteca do Daniel

Para trás


No primeiro de maio, fui encontrar os anarquistas. Eles estavam, como sempre, fazendo uma protesto num lugar onde não passava muita gente. Os punks me chamaram para o aniversário de um deles, o Papelão. Bruno me aconselhou a passar em casa e comer antes de ir. "Falo isso por experiência própria". Tá.

O apartamento dos punks era muito grande e muito arruinado. De móveis, havia a mesa do som, uma máquina de lavar quebrada, um fogão e uma geladeira. Só havia um colchonete, no quarto de empregadas, transformado em "Quarto da luz vermelha". O chão cheio de escarros. A música não era punk, mas MPB, a qual os caras dançavam da forma mais bizarra possível, tendo ataques de riso. Enquanto eu conversava com um punk, sentado na máquina de lavar, entrou um deles com uma garota de uns doze anos. Daí a pouco veio o Radical, mamando a segunda garrafa de caninha da noite, perguntando pelo Morto. "Está aí no quartinho, dormindo". Depois vejo um terceiro punk saindo do quarto com ainda outra garota.

Ou seja, havia pelo menos dois casais transando no quartinho, enquanto o Morto dormia.

Apareceu o Morto. "Morto, por que te chamam de Morto?" "É por que eu tenho o sono muito pesado, e não adianta nem me sacudir, nem bater na minha cara, nem jogar água, que eu não acordo."

Só havia uma punk na festa, uma paulista acabadaça, com uma corrente ligando o brinco ao piercing no nariz, e com os seios tão caídos que entravam pelas calças. As outras garotas eram "minas", ou seja, andavam com os punks mais não adotavam seu estilo de vida.

Quando chegou a hora de dormir, tive dificuldade em achar um espaço no chão que não estivesse escarrado. Achei. O Estácio passou nu pelo corredor, com uma mina. O Radical, que havia perdido boa parte da festa vomitando, desabou em cima de mim. Eu empurrei ele pro lado e tentei continuar dormindo. Ele ficou horas se contorcendo. Não dava pra dormir.

Me levantei e fiquei procurando um outro lugar. Não havia. O chão estava coberto de escarros e punks. De repente, o Radical começou a soltar fortes sons de vômito e arrotar, seguidos de um silêncio absoluto. Ele morreu!, pensei. Fiquei parado, sem saber se chamava um punk, correndo o risco de passar vexame, ou deixava o cara morrer. Fiquei petrificado, num canto, por muito tempo. Afinal, a mina que havia passado acompanhada do Estácio nu entrou no quarto.

-- Você está acordado? Vem pro quartinho comigo. Lá tem um colchonete pra gente dormir.

-- Valeu, mas eu prefiro ficar aqui pensando numas coisas.

-- Vem! Eu não vou te atacar não. Fomos para o quartinho. Era realmente mínimo. Num canto, o Morto jazia contra a parede.

-- Mas assim você não vai dormir direito. Tira o boot.

-- Não precisa, assim eu estou bem.

-- Eu não vou roubar seu boot não, garoto!

Tirei o boot.

-- Afrouxa o cinto.

-- Não.

-- Do que você tem medo?

-- Eu não estou com medo. Só não quero afrouxar o cinto.

Afrouxei o cinto. Eu não estava com sono nenhum. Ela percebeu, e começamos a conversar. Ela veio com um papo de que ela parecia ser dura por fora, mas que por dentro era diferente, que para mim soou como "por dentro sou quente e molhadinha". Comecei a tremer, e dessa vez sabia que não era frio.

-- Você está tremendo?

-- É frio.

Todos os meus hormônios ficaram malucos, dizendo "Vai! Vai! Vai!". Mas eu tinha uma boa desculpa para não ir. À tarde, quando estava com os anarquistas, um ativista gay me ofereceu umas camisinhas. Eu recusei, eu ficaria morrendo de vergonha de usar uma camisinha que viesse num pacote cor de rosa, cheio de referências ao movimento gay.

-- Oquê, você transa sem camisinha?!

-- Não, não é isso...

-- Você é celibatário?!!!

-- Não! Mas eu prefiro usar as minhas próprias camisinhas.

Essa resposta não colou muito, mas ele me deixou em paz. Agora estou um pouco arrependido, e certamente não me levantaria para ir ao quarto onde ele está dormindo, para pedir algumas. Na verdade, talvez o problema não seja as camisinhas. É que eu estou bastante enojado com essa história dos punks transarem sem afeto.

Nunca vi um punk beijar uma mina, ou uma punk. Mas vejo eles irem e voltarem do quartinho. E isso se torna mais estranho ainda ao lembrar que os punks levam o respeito às necessidades dos outros ao cúmulo.

Quando eu estava sentado na máquina de lavar, o ativista homossexual veio azarar o punk que estava conversando comigo. Foi histericamente engraçado ver como era difícil para o punk explicar para o gay que ele não curtia homossexualismo, sem ser preconceituoso. Ele simplesmente não conseguia um argumento racional para não querer ficar com o gay. E isso deixava ele muito mais constrangido do que a cantada em si.

Quando eu cheguei no apartamento dos punks, a primeira coisa que me disseram foi "Está vendo essa porta trancada? Tem uma mina grávida dormindo aí dentro. Nada de conversar ou fazer barulho aqui perto." O chão estava todo escarrado, mas no corredor reinava o silêncio.

Todas as minas obtinham o mesmo respeito. Mas não havia afeto. E bom, eu tenho necessidade de afeto, e não estava rolando.   Mas eu não disse que não tinha camisinha. Eu apenas fiquei petrificado, enquanto ela fazia seu monólogo, falando do trabalho, dos seus filhos, da vida dura que levava... Por fim, disse que eu era legal, que era diferente dos outros, tinha sentimentos, e que tudo bem que não rolasse hoje, a gente podia se ver outro dia. Dormimos. Ao amanhecer, fiquei um pouco ciumento ao ver ela agarrada ao Morto. Mas ele continuava na mesma posição na qual o encontramos.

(continua)

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