Biblioteca do Daniel

Para trás


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  Adoro pescar girino na fazenda. Adoro o parque nacional. Uma vez, a gente se perdeu perto do pico, sem enxergar três metros por causa da neblina. Fiquei eufórico pensando que a gente ia dormir ali mesmo, ter uma aventura. Mas a chata da minha mãe encontrou o caminho. Só eu queria ficar. Eu sou corajoso na fazenda. Se não estou com a lança de bambu, estou com um facão para andar em trilha. A minha mãe e o namorado foram visitar uns paulistas que moravam perto, e eles tinham uma filha da minha idade, queriam apresentar pra mim. Eu não queria. EU NÃO QUERIA. Eu fiquei escondido atrás do carro até morrer de tédio, e aí eles venceram. Eu fui até onde estavam as pessoas, e conheci a tal paulista. Ela era bonita. Ela me chamou pra brincar. Foi legal. De noite, ela quis brincar de casinha, ela a mulher e eu o marido. Eu, brincar de casinha? Eu não! Eu não sou mulherzinha! Mas aí ela me ameaçou dizendo que não era mais minha amiga se eu não brincasse com ela, e eu tive que aceitar. Foi legal. Todos os fins de semana se repetia a mesma coisa. Eu não queria ir à casa dela, eu ficava com vergonha, eu desistia de me esconder, brincava, e no final era legal. Até brincar de casinha. De fato, era quando eu ficava mais feliz, mas costumava ser na hora de ir embora. Que chato. Depois, na volta para o Rio, eu ficava nostálgico e ouvia "Toada" do Boca Livre no rádio. Nem sempre os paulistas estavam na fazenda, o que fazia a minha saudade mais torturante. Sonhava com a paulista, inventava aventuras com nós dois. Aí caiu um raio na casa deles e eles sumiram por uns tempos. Sério! Um casal de hippies foram morar na Serrinha, que era onde ficava a fazenda, e ficaram nossos amigos. Quando fui na casa deles, vi uma criança de cabelos longos e louros. Achei que fosse menina. Não era. Era o filho deles. Em dois minutos estávamos brigando, querendo o sangue um do outro. Isso também acontecia todo fim de semana. Eu e o Linus tínhamos dois minutos de amizade precedendo um dia de porrada. Nunca ficava claro quem tinha ganho, e portanto a briga nunca acabava. Os paulistas voltaram. A garota me disse "quer namorar comigo?", e no momento seguinte eu vi o que isso significava: todos os garotos do meu colégio gritando "mulherzinha, mulherzinha!". -- Não! -- Por favor! -- Não, nunca! E saí correndo. Depois os paulistas deixaram de novo de ir à Serrinha e eu me arrependi amargamente. Nunca me esqueci da garota, nem desse dia.

(continua)

Sobe

Esquerda Para Frente (continua) Direita

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