Biblioteca do Daniel

Para trás


2

  Na ida e na volta do colégio, faço o sinal da cruz em frente à igreja. Depois encho o saco. Prefiro imaginar que da minha mochila sairão duas turbinas e eu voarei desse mundo de merda. Mas por mais que eu pense nisso, nada acontece.

Uns garotos ficam dando peteleco na minha orelha. Não sei quem é. Perco a paciência. Quando virei para bater sério no garoto que estava sentado atrás de mim, ele tenta se proteger com o braço e o seu cotovelo destrói para sempre a harmonia entre meus dentes. Mas pelo menos é uma ferida de batalha. Ou quase. Se eu já era feio, agora fudeu.

 

  Eu estou insatisfeito. Eu vivo no inferno. Os outros estão felizes. Os outros conversam em grupinhos, enquanto eu só fico dando voltas esperando o recreio acabar. Eu desprezo eles. Eu não quero mais eles. Eu vou ficar com o coração mau, e desprezar tudo que eles representam. Eles são otários, não sabem o quanto a vida é dura. Otários. Só eu conheço a realidade. Tudo é sujo. Tudo é mau. Tudo é feio.

Voltei pra casa e sintonizei na Fluminense, que era a rádio que supostamente tocaria música punk. Depois de ouvir muita coisa que obviamente não era punk, eles tocaram "Rotina", dos Inocentes, versão acústica. "Acorda cedo para ir trabalhar, tem o relógio de ponto ali a observar. No lar a sua esposa prepara o jantar, chegou a hora do programa começar... A sua esposa lhe convida para o prazer... Até quando ele vai aguentar?" Não era barulhento nem rápido, mas era seco. Só podia ser isso.

Pedi para a Lola me trazer um disco dos Garotos Podres. Confundi Inocentes com Garotos Podres, mas tudo bem, porque ganhei um disco muito mais punk do que esperava. "Papai noel, velho batuta, rejeita os miseráveis! Eu quero matá-lo!" "Não devemos temer -- os que detêm o poder!" "Enquanto você fala... vou fazer cocô!" Era muito para mim. Era absolutamente punk. Na capa, um bebê johnson com a mamadeira; no verso, um bebê etíope desfigurado, chorando de fome. Tudo preto e branco numa péssima impressão. Era eu dando o troco de todo o meu sofrimento. Como o Papillon gritando para o carcereiro:

-- Ainda estou vivo... Canalhas!

Sempre choro nessa parte do filme. O resto não me impressiona tanto.

 

  Descobri a coleção inteira do Asterix e do Tintin na biblioteca do colégio. Agora já há algo a fazer no recreio, além de deprimir. A biblioteca era o refúgio de vários colegas que viviam à margem da vida social. Lá me tornei amigo do João Pedro e do Émerson.

O João Pedro era um tipo meio troncudo, sarcástico, que nos recreios alternava a leitura na biblioteca com recitais de funk e techno pop na sua sala. Era incrível a variedade de sons de percussão que podíamos tirar de carteiras, estojos, moedas, canetas e similares.

Já o Émerson era um altão magro e um bobo alegre, que ficava atirando bolinhas de papel no cabelo das meninas que ele achava "gostosas". "Viu aquela menina ali?" Atirava a bolinha. "Muito maneiro, né?"

-- Émerson, deixa de ser retardado!

-- Pode me chamar do que quiser. Isso não significa nada para mim.

  Depois o Émerson passou para a turma tecnológica, enquanto eu e o João Pedro ficamos na Humanas. Para nós fazia todo o sentido. O Émerson ficou amigo de um cara tão no nível dele, que atendia pelo apelido de Escroto. -- E aí, Escroto? -- Oi, Daniel, tudo bem? Estávamos no terceiro ano do segundo grau, e o os dois retardados continuavam lutando espada, mas não com réguas. Com o tampo das carteiras.

 

  Eu e o João Pedro estávamos voltando pra casa, quando encontramos o Escroto na esquina de uma rua, parado embaixo de um sol homicida.

-- O que você está fazendo, Escroto?

-- Tem uma garota muito gostosa que eu vi no colégio, e que depois eu vi passando por aqui uma vez. Eu estou esperando ela passar de novo, para tentar conhecê-la.

-- Porra, Escroto, deixa de ser escroto! Ela podia estar indo na casa de uma amiga e talvez nunca mais passe de novo.

-- Mas talvez ela volte pra fazer outra visita!

 

  Eu e o João Pedro estávamos cada vez mais céticos com o futuro da humanidade, representado por tipos como o Émerson e o Escroto. Parados na esquina da casa dele, líamos as manchetes de O POVO, "o jornal que você espreme e sai sangue". Os corpos mutilados nas manchetes eram um alívio: afinal, não era só a gente que se sentia mal neste mundo...

 

  Fui me tornando cada vez mais rancoroso. Cada vez despejava mais meu ódio em música barulhenta, visual sujo e agressividade verbal.

Depois de um breve período de experimentação com penteados diversos, decidi eliminar o problema: raspei o cabelo. Eu sempre tive mochilas que eram feias, compradas apenas por serem as mais baratas. OK, também não quero mais mochilas da moda, quero ser pobre. Um saco de plástico é suficiente. Camisas compradas a lote? Ótimo! Posso pintar o símbolo dos meus conjuntos punks, ou seja, caveiras, cérebros arrancados, símbolos anticlericais. Calças herdadas dos primos. Bora torná-las mais refugo do que já são: uns furinhos de nada nos joelhos e não se fala mais nisso. A única vez que eu tive um boné, estava escrito "Müller" nele, e meus colegas de C.A. liam "Muler", mulher.

-- Ah ha ha! Daniel é mulher!

Nunca mais tive coragem de usar boné. Agora comprei um boné camuflado, onde pixei "Beware: death is near" e que uso virado para trás. O boné está um lixo. Oba! E as camisas de flanela que a Lola tanto insistia que eu usasse para não gripar, agora uso na cintura.

Em 1987 não existia isso no Rio. Ou pelo menos não era comum nas escolas de classe média da zona sul. Da lixeira da história para o estrelato: me tornei popular.

-- De que grupo você gosta, Daniel?

-- Dead Kennedys, GBH, Olho Seco.

-- Nunca ouvi falar. E de Sigue-Sigue-Sputnik?

-- Não é punk. É uma merda. Não diz nada. São invenção da mídia para vender pra otários.

-- Mas eu gosto...

-- E daí?

Li 1984. Toda minha formação política está contida naquele livro. Quando voltava do colégio com o João Pedro, num calor terrível, misturado à fumaça dos ônibus e dos esgotos transbordantes, em pleno governo Brizola, tive um insight. Não dava pra ficar pior. Podiam tirar o governo, que não haveria mais caos do que já existia. Mais, boa parte das pessoas temeriam viver no estado de caos sem ter um governo qualquer para confiar, e então procurariam se organizar para poder continuar vivendo.

-- Isso deve ser anarquismo.

O João Pedro concordou. Comecei a formar minha biblioteca anárquica, primeiro com livros novos, depois cada vez mais com sebo.

-- Daniel, você é anarquista?

-- Não, sou Machadista, ou Danielista, o que preferir.

-- Eu estou lendo um livro de um anarquista. Você deve conhecer. Roberto Freire.

-- Nunca ouvi falar. Ele é sindicalista?

-- Não.

-- O que ele faz contra o governo?

-- Ah, não sei...

-- Então não é anarquista, pô!

É da Era Punk esse meu cacoete de falar cinco palavrões para cada três palavras. Poupo os leitores dessa parte da história.

Mas o fato é que a minha imagem de rebelde rendeu. Virei uma espécie de atração turística. Alguns anos depois, uns anarco-punks foram ao shopping Rio Sul fazer panfletagem contra o consumismo na véspera do natal. Todo mundo queria tocar neles. Algo semelhante ocorreu no meu colégio.

Uma colega que depois virou modelo, uma da alta roda, me convidava para suas festas. O colega mais dopado da sala, que quando ia à aula ficava dormindo e babando a mesa, achava que eu tomava heroína. Eu era abstêmio e nunca botei um cigarro na boca. Uma garota tinha ataques de riso todas as vezes que eu abria a boca. Não era sarcasmo não! Uma outra me pediu para fazer um desenho pra ela, acho que se interessou um pouco por mim. Mas eu estava em outro mundo. E não me sentia desejável -- não -- me sentia tão lixo quanto me apresentava. Mas era um lixo que mordia, que exigia respeito, e era no braço.

 

  Márcia. Filha de milico, imagine! Se interessou pelo lixo anti-tudo. Não podia ser normal. Liguei pra ela, os encontros sempre ferravam. Até que eu a chamei para um show qualquer na praia, e ela topou. Veio com a irmã, não podia sair de casa sozinha. Só com a irmã ou uma amiga. Mas desistimos do show, levei-a sozinha para casa. Quando estávamos a sós, sentados num banco, tudo vazio, ela emburrou. É claro que eu não tomei nenhuma iniciativa, eu não poderia me mover se não tivesse certeza absoluta, se ela não expressasse claramente que me queria. E ela deixou toda a responsabilidade nas minhas mãos. Ficamos parados até a irmã aparecer, dizendo que não podia entrar em casa sozinha sem levantar suspeitas. Se não fosse isso, ainda estaríamos lá.

Bom, Márcia já era agora, né? Desisti de tentar arrancá-la de casa. E aí encontro ela fazendo vestibular, e ela é mais receptiva do que nunca! Sentados nos degraus da universidade, com milhares de pessoas passando, ela senta-se junto a mim e sorri. O quê, agora?! Com todo esse povo?! Difícil, me dê mais certeza. E aí apareceu o ex-namorado. Fiquei surpreso por ele não ser um altão musculoso, mas um tipo muito semelhante a mim. Mesmo assim, ele foi uma desculpa para eu desistir, por hoje, de pensar em tentar alguma coisa.

Vestibular para outra universidade. Eu sei que ela também está fazendo. Eu vou encontrar com ela! Fiz a prova o mais rápido que pude e fiquei esperando... Em todas as provas. E nada. Estavam pra fechar os portões, quando ela aparece do nada, sorrindo. "Eu estava no ponto de ônibus e te vi." "Você só saiu agora?" "Que isso, já saí há muito tempo. Eu faço as provas em outro campus. É que eu moro aqui perto, já fui em casa, tomei banho e estava saindo de novo." Eu estava fora do ar. Eu queria tanto, tanto e consegui. Marcamos um cinema.

A essa altura eu já estava passado. Já tinha decidido que se ela não facilitasse o meu trabalho, eu ia ficar sarcástico e me divertir com a situação. Antes de começar o filme, ela começou a dizer que essa história de anarquismo é besteira, que eu tinha é que me preocupar com a minha vida. Boa forma de conquistar um cara, essa de criticar suas convicções. Começou o filme. Passei o braço por trás dela, da forma mais tímida que encontrei. Ela parada. Me senti ridículo. Tirei o braço.

No "Poderoso Chefão 3" há a cena em que a filha do Al Pacino é morta na sua frente, e ele faz uma cara de desespero brutal, abre a boca mas não emite nenhum som. Eu não agüentei. Minha gargalhada ecoou no cinema, em meio às lágrimas silenciosas dos outros espectadores. Não imagino o susto que a Márcia tomou. Estou vingado.

(continua)

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