VERSURA E O FIM DO POEMA EM ORIDES FONTELA:TÓPICOS DE UMA CALEIDOSCÓPICA ESCRITATatiana Pequeno da Silva
A poesia de Orides Fontela floresceu a partir somente de uma sua experiência íntima, solitária, que o seu livro de estréia, Transposição (1969) deflagra e a obra última de 1996, Teia, encerra. O que guardam estes quase 30 anos de poesia? Que segredos existem no silêncio abissal de seus poemas tão justos, econômicos e concisos quanto a vida desta que os concebeu? O silêncio diz respeito não só ao seu estilo poético, mas sobretudo a uma postura diante das relações intelectuais travadas pela intelligentsia paulistana? dos anos 60 aos 90. Avessa às rodas sociais e ao eixo de influências beats encabeçado por Cláudio Willer e Roberto Piva, Orides Fontela logrou a esquiva e fez d-a verbalização do sangue. (FONTELA, 2006, p. 25) um sutilíssimo lugar poético, como aponta um de seus raros amigos, Davi Arrigucci Jr., na entrevista dada à revista Jandira da Universidade Federal de Juiz de Fora. CITO? Todas as fontes que tratam da poeta são categóricas em mencionar o quanto seu universo sigético ansiava por uma busca essencial pela beleza e pelo modo obcecado com que manejava a poesia a partir de uma discreta cirurgia da flor(*). Embora sua obra inicial contivesse já uma proposta poética da concisão, percebemos os insidiosos conflitos que levam aos pares ambivalentes, geradores do impasse a que sua poesia muitas vezes chega:
É portanto no despojamento do ato que se encontra o fazer poético: com as mãos nuas. A atividade laboral do poeta também marca tal empreendimento, no sentido de que macula a origem do "anterior espelho" à medida que as mesmas mãos empregam agora a "alta agonia" de "mãos se ferindo/ nos seres, arestas". Munida da atividade "cavadora do infinito" (Cruz e Sousa?) geruntiva a que o verso "as mãos desenterrando" alude, o poema de Orides Fontela vai ao encontro do seu próprio devir, que para Deleuze fica claro em "A Literatura e a Vida":
É neste sentido que a estratégia da poesia de Fontela parece sugerir as fontes de ambivalência, já que o seu sujeito poético se engendra no limiar, no espaço de fronteira entre a experiência genesíaca de não saber/ poder ou desejar nomear, e a "difícil prova" de "desnudar a estrela essencial/ sem ter piedade do sangue." e das mãos. Do choque dessa experiência terrível que Deleuze menciona no excerto acima, a voz lírica de Orides retorna não só com os tímpanos perfurados ou com olhos vermelhos, mas com a certeza de que é preciso manejar cirurgicamente "a palavra áspera e não plástica." (FONTELA, 2006, p. 23). Desse modo, a cerzidura de sua escrita garante a consciência como potência (no sentido agambeniano. Cf. Profanações) que levou muitas vezes esta literatura à total falta de compreensão ou, pior, à acusação de que o universo fonteliano erigia-se ou sob a abstração mais completa ou sob a tutela da obviedade literal de alguns sonetos que aparecem em seu último livro, por exemplo. É evidente, no entanto, que alguma visceralidade da primeira obra publicada, possa confundir ou dispersar o leitor, mas negar o simbólico das imagéticas de Orides é também prostrá-la ao risco infantil de " poetas menores e poetas maiores".
Outrossim, podemos encontrar na poesia de Orides Fontela um uso sistêmico do que Giorgio Agamben nomeia por o fim do poema, traço que sintetizaria o problema de uma alta voltagem no escopo do texto: "a poesia não vive senão na tensão e no contraste (e, portanto, também na possível interferência) entre o som e o sentido, entre a série semiótica e a série semântica" (AGAMBEN, 2002, p. 142). De igual modo, podemos ligar a tal proposição a formulação de Mallarmé também citada por Agamben, de que o verso é a instância que se define pelo estado de suspensão (être de suspens):
No poema em questão, depreendemos claramente o processo de incompletude presente em duas palavras nevrálgicas para o todo semântico do texto, e ambas na mesma estrofe: através e desdobro. Em através identificamos o rompimento do radical (través) na confecção do verso, cujo significado só pode ser pretensamente completo através/ por meio do enjambement, isto é, as relações entre som e sentido são dadas sobretudo na fluência dos intervalos que não só impedem a totalidade, como também criam outras validades semânticas. Dado o título do poema, a caleidoscópica escrita de Orides Fontela sugere o jogo de espelhos, próprio também do excesso de visão a que Deleuze anteriormente convencionava. Um outro aspecto que deve ser mencionado é a relação de contigüidade existente na ocasião do uso da palavra espelho, tão cara a esta poética. O jogo especula, ou melhor, a tensão ótica obriga o sujeito poético a confrontar o espelho a um complemento enumerado, como se refletisse a suspensão (o espelho: atra/ vés) ou a exatamente a temeridade do objeto refletido, daí o esfacelamento da palavra. Se na poesia fonteliana "toda palavra é crueldade", todo espelho é ludismo de ferir, arma caleidoscópica a incidir a luz mais lúcida do meio-dia sobre o "corpo/ denso amargamente impuro" (FONTELA, 2006, p. 303). O que movimenta a versura desta poesia é, com efeito, talvez a própria consciência poética da impossibilidade de continuidade. Para tanto, convém demonstrar o que o próprio Agamben entende acerca do conceito que aqui nos convém, que é o de versura:
A versura está atrelada, portanto, ao universo campestre/ rústico do poema, em que podemos destacar o papel nodular do "desdobro" / desdobramento do verso que, como já vimos anteriormente no poema "O Espelho", é de extrema relevância para a poesia aqui em questão. É ainda conveniente fazermos referência, agora de forma mais clara, ao texto de Flora Sussekind, sobre Orides Fontela, no qual a ensaísta sugere uma leitura desfolhada e laminar dos muitos poemas-fragmentos da poeta que :
E quanto ao fim do poema, fim do texto, retornamos ao mesmo texto matricial, homonimamente intitulado. Giorgio Agamben, em seu texto "O Fim do Poema", ressalta a idéia de que os últimos versos aludem, em geral, a um desarranjo, uma cisão inesperada ou tão urgente que só é cabível na contingência da interrupção definitiva. Nos poemas fontelianos encontramos a fonte dessa reflexão: os últimos versos marcam inadvertidamente o espaço da versura rasurada, do intervalo prolongado ou tácito demais. A poesia de Orides Fontela não é harmoniosa. Mesmo inscrita sob e sobre flores, luzes, espelhos, ânforas e albas, os cristais que giram sabem a sangue. Sua luz é impiedosa, e por isso não ilumina a tudo, só ao meio-dia. Por muito do apresentado, essa escrita permanece no "silêncio que não é mudez" (Ana C.). Orides Fontela sabia, a contrapelo, e à flor-da-pele que "onde tudo é vivo nenhum/ barco furtivo se aventura." E para finalizar a minha fala, vou ao encontro da fala dela, Orides:
(*): "Orides Fontela e a discreta cirurgia da flor" - Ensaio de Flora Sussekind em Papéis Colados. |