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VERSURA E O FIM DO POEMA EM ORIDES FONTELA:

TÓPICOS DE UMA CALEIDOSCÓPICA ESCRITA

Tatiana Pequeno da Silva
(Doutorado - UFRJ)


O fluxo obriga
qualquer flor
a abrigar-se em si mesma
sem memória
(FONTELA, 2006, p. 12)

Coruja

Vôo onde ninguém mais - vivo em luz
mínima
ouço o mínimo arfar - farejo o
sangue

e capturo
a presa
em pleno escuro

(FONTELA, 2006, p. 203)

A poesia de Orides Fontela floresceu a partir somente de uma sua experiência íntima, solitária, que o seu livro de estréia, Transposição (1969) deflagra e a obra última de 1996, Teia, encerra. O que guardam estes quase 30 anos de poesia? Que segredos existem no silêncio abissal de seus poemas tão justos, econômicos e concisos quanto a vida desta que os concebeu?

O silêncio diz respeito não só ao seu estilo poético, mas sobretudo a uma postura diante das relações intelectuais travadas pela intelligentsia paulistana? dos anos 60 aos 90. Avessa às rodas sociais e ao eixo de influências beats encabeçado por Cláudio Willer e Roberto Piva, Orides Fontela logrou a esquiva e fez d-a verbalização do sangue. (FONTELA, 2006, p. 25) um sutilíssimo lugar poético, como aponta um de seus raros amigos, Davi Arrigucci Jr., na entrevista dada à revista Jandira da Universidade Federal de Juiz de Fora. CITO? Todas as fontes que tratam da poeta são categóricas em mencionar o quanto seu universo sigético ansiava por uma busca essencial pela beleza e pelo modo obcecado com que manejava a poesia a partir de uma discreta cirurgia da flor(*).

Embora sua obra inicial contivesse já uma proposta poética da concisão, percebemos os insidiosos conflitos que levam aos pares ambivalentes, geradores do impasse a que sua poesia muitas vezes chega:

Mãos

Com as mãos nuas
lavrar o campo:

as mãos se ferindo
nos seres, arestas
da subjacente unidade

as mãos desenterrando
luzesfragmentos
do anterior espelho

com as mãos nuas
lavrar o campo:

desnudar a estrela essencial
sem ter piedade do sangue.

(FONTELA, 2006, p. 20)

É portanto no despojamento do ato que se encontra o fazer poético: com as mãos nuas. A atividade laboral do poeta também marca tal empreendimento, no sentido de que macula a origem do "anterior espelho" à medida que as mesmas mãos empregam agora a "alta agonia" de "mãos se ferindo/ nos seres, arestas". Munida da atividade "cavadora do infinito" (Cruz e Sousa?) geruntiva a que o verso "as mãos desenterrando" alude, o poema de Orides Fontela vai ao encontro do seu próprio devir, que para Deleuze fica claro em "A Literatura e a Vida":

O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro (...) mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados.

(DELEUZE, 1997, p. 17)

É neste sentido que a estratégia da poesia de Fontela parece sugerir as fontes de ambivalência, já que o seu sujeito poético se engendra no limiar, no espaço de fronteira entre a experiência genesíaca de não saber/ poder ou desejar nomear, e a "difícil prova" de "desnudar a estrela essencial/ sem ter piedade do sangue." e das mãos. Do choque dessa experiência terrível que Deleuze menciona no excerto acima, a voz lírica de Orides retorna não só com os tímpanos perfurados ou com olhos vermelhos, mas com a certeza de que é preciso manejar cirurgicamente "a palavra áspera e não plástica." (FONTELA, 2006, p. 23). Desse modo, a cerzidura de sua escrita garante a consciência como potência (no sentido agambeniano. Cf. Profanações) que levou muitas vezes esta literatura à total falta de compreensão ou, pior, à acusação de que o universo fonteliano erigia-se ou sob a abstração mais completa ou sob a tutela da obviedade literal de alguns sonetos que aparecem em seu último livro, por exemplo. É evidente, no entanto, que alguma visceralidade da primeira obra publicada, possa confundir ou dispersar o leitor, mas negar o simbólico das imagéticas de Orides é também prostrá-la ao risco infantil de " poetas menores e poetas maiores".

Orides Fontela nunca quis compor a constelação verborrágica, engajada e/ou puramente religiosa de sua época. Orides Fontela nunca se valeu das relações uspianas que tinha com muitos como Olgária Mattos, José Miguel Wisnik, Antonio Candido, para se promover de forma inadvertida, estéril ou de maneira passiva. Pelo contrário: Davi Arrigucci Jr. aponta sempre a inacessibilidade, a solidão clausular e a vida monástica da poeta. (MAIS)

Outrossim, podemos encontrar na poesia de Orides Fontela um uso sistêmico do que Giorgio Agamben nomeia por o fim do poema, traço que sintetizaria o problema de uma alta voltagem no escopo do texto: "a poesia não vive senão na tensão e no contraste (e, portanto, também na possível interferência) entre o som e o sentido, entre a série semiótica e a série semântica" (AGAMBEN, 2002, p. 142). De igual modo, podemos ligar a tal proposição a formulação de Mallarmé também citada por Agamben, de que o verso é a instância que se define pelo estado de suspensão (être de suspens):

O espelho
O
espelho: atra
vés
de seu líquido nada
me des
dobro.

Ser quem me
olha
e olhar seus
olhos
nada de
nada
duplo
mistério.

Não amo
o espelho: temo-o

(FONTELA, 2006, p. 212)

No poema em questão, depreendemos claramente o processo de incompletude presente em duas palavras nevrálgicas para o todo semântico do texto, e ambas na mesma estrofe: através e desdobro. Em através identificamos o rompimento do radical (través) na confecção do verso, cujo significado só pode ser pretensamente completo através/ por meio do enjambement, isto é, as relações entre som e sentido são dadas sobretudo na fluência dos intervalos que não só impedem a totalidade, como também criam outras validades semânticas. Dado o título do poema, a caleidoscópica escrita de Orides Fontela sugere o jogo de espelhos, próprio também do excesso de visão a que Deleuze anteriormente convencionava. Um outro aspecto que deve ser mencionado é a relação de contigüidade existente na ocasião do uso da palavra espelho, tão cara a esta poética. O jogo especula, ou melhor, a tensão ótica obriga o sujeito poético a confrontar o espelho a um complemento enumerado, como se refletisse a suspensão (o espelho: atra/ vés) ou a exatamente a temeridade do objeto refletido, daí o esfacelamento da palavra. Se na poesia fonteliana "toda palavra é crueldade", todo espelho é ludismo de ferir, arma caleidoscópica a incidir a luz mais lúcida do meio-dia sobre o "corpo/ denso amargamente impuro" (FONTELA, 2006, p. 303). O que movimenta a versura desta poesia é, com efeito, talvez a própria consciência poética da impossibilidade de continuidade. Para tanto, convém demonstrar o que o próprio Agamben entende acerca do conceito que aqui nos convém, que é o de versura:

E o poema é um organismo que se funda sobre a percepção de limites e terminações, que definem, sem jamais coincidir completamente e quase em oposta divergência - unidades sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas (...) Podemos contar as sílabas e os acentos, verificar as sinalefas e as cesuras, classificar anomalias e regularidades: mas o verso é, em qualquer caso, uma unidade que encontra o seu principium individuationis somente no fim, que se define só no ponto em que finda. Em outro trabalho, propus dar o nome de versura - do termo latino que indica o ponto no qual o arado faz a volta, ao final do sulco - a esse traço essencial do verso que, talvez mesmo por ser tão evidente, permaneceu inominado entre os modernos.

(AGAMBEN, 2002, p. 143)

A versura está atrelada, portanto, ao universo campestre/ rústico do poema, em que podemos destacar o papel nodular do "desdobro" / desdobramento do verso que, como já vimos anteriormente no poema "O Espelho", é de extrema relevância para a poesia aqui em questão. É ainda conveniente fazermos referência, agora de forma mais clara, ao texto de Flora Sussekind, sobre Orides Fontela, no qual a ensaísta sugere uma leitura desfolhada e laminar dos muitos poemas-fragmentos da poeta que :

em meio a um uso hábil do verso curto, dos parênteses e dos dois pontos, abre-se, aos poucos, um leque e tematiza-se, sem alarde, nesse movimento, o modo como se tramam, aí, a rosa, e uma forma lacerada de expressão. Trama poética que, quase limite, silêncio, na imprevisibilidade seca do fragmento, na paciência armada de Orides Fontela, vira por vezes pétala, lâmina, seta.

(SUSSEKIND, 2002, p. 338)

E quanto ao fim do poema, fim do texto, retornamos ao mesmo texto matricial, homonimamente intitulado. Giorgio Agamben, em seu texto "O Fim do Poema", ressalta a idéia de que os últimos versos aludem, em geral, a um desarranjo, uma cisão inesperada ou tão urgente que só é cabível na contingência da interrupção definitiva. Nos poemas fontelianos encontramos a fonte dessa reflexão: os últimos versos marcam inadvertidamente o espaço da versura rasurada, do intervalo prolongado ou tácito demais.

A poesia de Orides Fontela não é harmoniosa. Mesmo inscrita sob e sobre flores, luzes, espelhos, ânforas e albas, os cristais que giram sabem a sangue. Sua luz é impiedosa, e por isso não ilumina a tudo, só ao meio-dia. Por muito do apresentado, essa escrita permanece no "silêncio que não é mudez" (Ana C.). Orides Fontela sabia, a contrapelo, e à flor-da-pele que "onde tudo é vivo nenhum/ barco furtivo se aventura."

E para finalizar a minha fala, vou ao encontro da fala dela, Orides:

FALA

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)




(*): "Orides Fontela e a discreta cirurgia da flor" - Ensaio de Flora Sussekind em Papéis Colados.