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O Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas (cap. 13)
A faculdade era o que se poderia chamar, eufemisticamente, de
"faculdade de ensino". Numa faculdade de ensino, você ensina, ensina e
ensina um pouco mais. Não tem tempo para pesquisar, contemplar e
participar de assuntos extra-universitários. Ensina, ensina e ensina
até que a mente fique obtusa, a criatividade desapareça e você se
torne um autômato que diz sempre as mesmas coisas a ondas sempre novas
de estudantes que não conseguem compreender porque você é tão apático
e, assim, perdem o respeito por você e espalham esse desrespeito pela
comunidade. O motivo pelo qual você só ensina é que esse é um meio
muito inteligente de administrar uma faculdade com baixo orçamento e,
ao mesmo tempo, manter a aparência de uma educação verdadeira.
Mas, apesar disso, ele dava à faculdade um nome que parecia um
pouco absurdo e, em vista da natureza real do lugar, até ridículo.
Porém, esse nome tinha um grande sentido para ele. Fedro jamais deixou
de chamar a faculdade por esse nome e, antes de ir embora, percebeu
que o havia conseguido inocular em algumas mentes. Chamava-a de
"Igreja da Razão", e boa parte da perplexidade que as pessoas sentiam
a seu respeito teria se extinguido se elas compreendessem o que ele
queria dizer com isso.
Naquela época, o estado de Montana estava assistindo à ascenção de
grupos políticos de ultradireita, num processo semelhante ao que
ocorreu em Dallas, no Texas, pouco antes do assassinato do presidente
Kennedy. Um professor da Universidade de Montana em Missoula,
conhecido em todo o país, foi proibido de falar em público no campus a
pretexto de que suas palavras "provocariam agitação". Foi comunicado
aos professores que todas as declarações públicas teriam de ser
previamente aprovadas pelo departamento de relações públicas da
faculdade.
Os critérios acadêmicos foram destruídos. A assembléia legislativa
já havia proibido a faculdade de recusar a admissão de qualquer aluno
com mais de vinte e um anos, quer esse aluno tivesse completado o
ensino médio, quer não. Agora os deputados aprovavam uma lei que
impunha à faculdade uma multa de oito mil dólares por aluno que fosse
reprovado - virtualmente, uma ordem para que todos os alunos fossem
aprovados.
O governador recém-eleito tentava demitir o reitor da faculdade por
motivos pessoais e políticos. Além de ser um inimigo pessoal, era um
democrata, e o governador não era um simples republicano. O diretor de
sua campanha era também o coordenador estadual da John Birch Society
(N. do T.: Associação conservadora norte-americana). Foi esse
mesmo governador que elaborou a lista de cinqüenta subversivos de que
ouvimos falar há alguns dias.
Por causa de sua vendeta, a verba destinada à faculdade estava
sendo reduzida. O reitor transferira uma porção anormalmente grande do
corte de verbas para o departamento de inglês, do qual Fedro era
membro. Os membros do departamento vinham manifestando opiniões fortes
sobre a questão da liberdade acadêmica.
Fedro desistira e estava trocando cartas com o Conselho Regional de
Autorização Educacional do Noroeste para ver se este Conselho poderia
fazer algo para impedir aquela violação das exigências acadêmicas.
Além dessa correspondência privada, ele pedira publicamente um
inquérito sobre a situação geral da faculdade.
Quando isso aconteceu, alguns alunos de uma das suas classes lhe
perguntaram, com amargura, se o seu esforço de revogar o
reconhecimento oficial da insitituição significava que ele tentava
impedi-los de obter sua educação superior.
Fedro disse que não.
Então um certo aluno, aparentemente partidário do governador, disse
com raiva que a assembléia legislativa impediria a faculdade de perder
seu reconhecimento.
Fedro perguntou como.
O aluno disse que eles poriam a polícia no campus.
Fedro pensou um pouco no assunto e depois compreendeu como era
monstruosa a falta de compreensão que aquele aluno tinha do processo
de reconhecimento educacional.
Naquela noite, para a aula do dia seguinte, ele escreveu uma defesa
de seu curso de ação. Foi a aula da Igreja da Razão, cujas anotações,
comparadas com as anotações sucintas que geralmente fazia para as
aulas, foram bastante compridas e cuidadosamente elaboradas.
A aula começou fazendo referência a um artigo de jornal sobre o
antigo edifício de uma igreja, na zona rural, que agora tinha um
anúncio de cerveja sobre a porta principal. O edifício fora vendido e
nele estava funcionando um bar. Podemos supor que, a essa altura, a
classe começou a rir. A faculdade era conhecida pelos excessos
alcoólicos de seus alunos, e a imagem se encaixou. Segundo o artigo,
várias pessoas haviam se queixado às autoridades eclesiásticas. O
edifício já fora uma igreja católica, e o padre incumbido de responder
às críticas se mostrou bastante irritado. Para ele, as queixas
evidenciavam uma inacreditável ignorância a respeito da natureza da
Igreja. Será que as pessoas pensavam que eram os tijolos, as tábuas e
o vidro que constituíam a Igreja? Ou a forma do telhado? O prório
materialismo que ao qual a igreja se opunha disfarçava-se ali de
piedade. O edifício em questão não era um imóvel santo. Já fora
desconsagrado. Ponto final. O anúncio de cerveja estava colocado sobre
um bar, não sobre uma igreja, e as pessoas incapazes de reconhecer a
diferença estavam simplesmente fazendo alarde da própria ignorância.
Fedro disse que a Universidade era objeto da mesma
confusão, e era por isso que a perda do reconhecimento oficial era
difícil de entender. A verdadeira Universidade náo é um objeto
material. Não é um conjunto de edifícios que pode ser defendido pela
polícia. Explicou que, quando uma faculdade perdia o reconhecimento
oficial, ninguém vinha fechá-la. Não havia penalidades legais, nem
multas, nem prisões. As aulas não eram interrompidas. Tudo continuava
exatamente como era antes. Os alunos recebiam a mesma educação que
receberiam se a faculdade não perdesse o reconhecimento. A mudança,
segundo Fedro, limitava-se à aceitação oficial de um estado de coisas
já existente. Seria semelhante à excomunhão. O que aconteceria é que a
verdadeira Universidade, que não obedece aos ditames de nenhum
legislador e não se localiza em nenhum edifício de tijolos, tábuas e
vidro, simplesmente declararia que este lugar já não era um "lugar
sagrado". A verdadeira Universidade desapareceria de lá, deixando para
trás os tijolos, os livros e a manifestação material.
Deve ter sido um conceito muito estranho para todos os alunos.
Posso imaginar Fedro esperando por bastante tempo para que esse
conceito fosse assimilado e depois tendo de responder à pergunta: o
que é, na sua opinião, a verdadeira Universidade?
Em resposta a essa pergunta, suas anotações dizem o seguinte:
A verdadeira Universidade, disse ele, não tem uma localização
específica. Não possui bens de espécie alguma, não paga salários e não
recebe mensalidade. A verdadeira Universidade é um estado de espírito.
aquela grande herança de pensamento racional que nos foi legada
através dos séculos e que não existe em nenhum lugar específico. É um
estado de espírito regenerado no decorrer das eras por um corpo de
pessoas que tradicionalmente recebem o título de professores; mas nem
esse título faz parte da verdadeira Universidade. A verdadeira
Universidade não é nada menos que o próprio corpo da razão, que se
perpetua.
Além desse estado de espírito, a "razão", existe uma entidade
jurídica que, embora infelizmente chamada pelo mesmo nome, é outra
coisa completamente diferente. É uma empresa sem fins lucrativos, um
ramo do Estado, com um endereço específico. Possui bens, paga salário,
recebe dinheiro e, nesse processo, pode reagir às pressões do
legislativo.
Mas essa segunda universidade, a pessoa jurídica, não pode ensinar,
gerar conhecimento ou avaliar idéias. Não é, de modo algum, a
verdadeira Universidade. É apenas um edifício de igreja, um cenário,
uma localização que propicia condições favoráveis à existência da
verdadeira Igreja.
Disse que as pessoas incapazes de captar essa diferença
continuamente se confundem e pensam que o controle dos edifícios da
igreja implica o controle da Igreja. Vêem os professores como
empregados da segunda universidade, que devem abandonar a razão quando
alguém lhes manda e devem aceitar ordens sem discutir, como os
empregados de outras empresas.
Vêem a segunda universidade, mas não a primeira.
Lembro-me que, quando li essas anotações pela primeira vez, reparei
na excelência analítica que elas demonstravam. Ele evitou dividir a
Universidade em campos ou departamentos e lidar com os resultados
dessa análise. Evitou também a divisão tradicional entre corpo
discente, corpo docente e administração. Quando se divide a
Universidade dessas duas maneiras, o que se obtém é mais ou menos o
que se poderia obter pela leitura do anuário da faculdade. Fedro,
porém, distinguiu a "Igreja" da "localização"; e, uma vez feita essa
distinção, a mesma situação monótona e imponderável que se reflete no
anuário é vista de repente com um grau de clareza que antes não era
possível. Baseado nessa distinção, ele conseguiu explicar vários
aspectos normais, mas enigmáticos, da vida universitária.
Depois dessas explicações, voltou à analogia com a igreja
religiosa. Os cidadãos que constroem essa igreja e pagam por ela
provavelmente pensam que estão fazendo isso para o bem da comunidade.
Um bom sermão pode deixar os paroquianos num estado de espírito
adequado para a semana que virá. A escola dominical ajuda as crianças
a desenvolver um bom caráter. O ministro que faz o sermão e dirige a
escola dominical compreende esses objetivos e normalmente os aceita,
mas também sabe que o seu objetivo principal não é o de servir à
comunidade: é o de servir a Deus. Normalmente não há conflito entre os
dois objetivos; vez por outra, porém, um conflito se insinua quando os
diretores da fundação se opõem aos sermões do ministro e ameaçam
reduzir a verba. Isso acontece.
Numa tal situação, o verdadeiro ministro tem de agir como se jamais
tivesse ouvido as ameaças. Seu objetivo primeiro não é o de servir aos
membros da comunidade, mas sempre o de servir a Deus.
O objetivo primeiro da Igreja da Razão, disse Fedro, é sempre o
antigo objetivo de Sócrates: o conhecimento da verdade em suas formas
sempre mutáveis, tal como é revelada pelo processo da racionalidade.
Tudo o mais está subordinado a isso. Normalmente, esse objetivo não
conflita com o objetivo local de melhorar a qualidade dos cidadãos,
mas às vezes o conflito surge, como no caso do próprio Sócrates. Surge
quando os diretores da fundação e os legisladores, que empenharam
grandes quantidades de tempo e dinheiro para fundar aquela
materialização local, assumem pontos de vista que se opõem aos pontos
de vista manifestados nas aulas ou declarações públicas dos
professores. Então, os diretores e legisladores podem exercer pressão
sobre a administração, ameaçando reduzir as verbas se os professores
não disserem o que eles querem ouvir. Isso também acontece.
Numa situação como essa, um verdadeiro homem de Igreja tem de agir
como se jamais tivesse ouvido as ameaças. O objetivo primeiro desse
homem não é servir à comunidade acima de tudo. Seu objetivo primeiro é
servir à verdade através da razão.
Era isso que Fedro queria dizer com sua Igreja da Razão. Não há
dúvida de que esse conceito despertava nele um sentimento profundo.
Fedro era visto como uma espécie de baderneiro, mas nunca chegou a ser
censurado na mesma proporção das inconveniências que causava. O que o
salvava da ira dos que o rodeavam era, em parte, a recusa de dar
qualquer apoio aos inimigos da faculdade, mas também, por outro lado,
a relutante aceitação do fato de que todas as inconveniências que ele
provocava eram motivadas, em última análise, por uma obrigação da qual
nenhum membro da universidade poderia estar livre: a obrigação de
falar a verdade segundo a razão.
As anotações de aula explicam quase tudo o que ele fez, mas deixam
um elemento por explicar - sua veemência fanática. A pessoa pode
acreditar na verdade, no processo racional de descoberta da verdade e
na resistência às autoridades estaduais, mas porque se consumir
inteiramente, dia após dia, por essa causa?
As explicações psicológicas que me foram oferecidas parecem
insuficientes. O medo de se expor não é capaz de sustentar esse tipo
de esforço por meses a fio. O mesmo se pode dizer de outra explicação,
segundo a qual ele procurava se redimir do seu fracasso anterior na
Universidade. Não há nenhum indício de que ele tenha, em algum
momento, entendido sua expulsão da universidade como um fracasso; era
somente um enigma. A explicação pela qual concluí nasce da
discrepância entre sua falta de fé na razão científica do laboratório
e a fé fanática expressa na aula sobre a Igreja da Razão. Certo dia,
eu pensava sobre essa discrepância quando de repente me dei conta de
que não era uma discrepância de modo algum. Se ele tinha uma tão
fanática dedicação à razão, era porque não tinha fé na razão.
Ninguém é tão dedicado a algo em que tem a mais absoluta confiança.
Ninguém sai por aí gritando fanaticamente que o sol há de nascer
amanhã. Todos sabem que ele vai nascer. Quando as pessoas se
dedicam fanaticamente a uma fé política ou religiosa ou a qualquer
outro dogma ou objetivo, é sempre porque têm dúvidas sobre esses
dogmas ou objetivos.
A militância dos jesuítas (a quem Fedro de certo modo se
assemelhava) é um exemplo disso. Do ponto de vista histórico, o zelo
jesuíta não nasce da força da Igreja, mas de sua fraqueza diante da
Reforma. Era a falta de fé na razão que fazia de Fedro um
professor tão fanático. Isso tem mais sentido. E explica muitas coisas
que aconteceram depois.
Provavelmente, era por isso que ele sentia tamanha afinidade com os
estudantes repetentes que se sentavam nas fileiras de trás da sala de
aula. O olhar de desdém no rosto deles refletia os mesmos sentimentos
que ele tinha por todo o processo intelectual e racional. A única
diferença é que eles desprezavam esse processo porque não o
compreendiam, e ele o desprezava porque o compreendia. Como não o
compreendiam, eles não tinham alternativa: repetiam de ano e pelo
resto da vida guardavam lembranças amargas desse fato. Ele, por outro
lado, sentia-se fanaticamente obrigado a fazer alguma coisa a respeito
disso. É por isso que a sua aula da Igreja da Razão foi tão
cuidadosamente preparada. Dizia-lhes que tinham que ter fé na razão
porque não existe mais nada em que se possa acreditar. Porém, ele
mesmo não tinha essa fé.
Não podemos esquecer jamais que isso aconteceu na década de 1950,
não na de 1970. Naquela época, os beatniks e os primeiros hippies começavam a murmuram contra "o sistema" e o intelectualismo
quadrado que o sustentava, mas quase ninguém previa o quão
profundamente todo o edifício viria a ser abalado. Lá estava Fedro,
então, defendendo fanaticamente uma instituição de que ninguém - pelo
menos em Bozeman, Montana - tinha motivos para duvidar. Um Loyola de
antes da Reforma. Um militante que garantia a todos que o sol nasceria
amanhã, num momento em que ninguém se preocupava com isso.
Preocupavam-se com ele.
Mas agora, quando entre nós e ele já se interpôs a década mais
tumultuosa do século, uma década em que a razão foi assediada e
agredida num grau que ultrapassa os mais loucos pesadelos dos anos
cinqüenta, penso que, nesta Chautauqua baseada nas coisas que ele
descobriu, podemos entender um pouco mais aquilo que ele dizia... uma
solução para todo esse problema... se ao menos isso fosse verdade...
tanto já se perdeu que não temos como saber.
Talvez seja por isso que me sinto como um arqueólogo, e que isso me
deixa tão tenso. Só disponho desses fragmentos de memória e das coisas
que as pessoas me dizem; e, à medida que nos aproximamos, pergunto se
não seria melhor não desenterrar essa tumba.
De repente me lembro de Chris, sentado atrás de mim, e me pergunto
o quanto ele sabe e do quanto se lembra.
Chegamos a uma intersecção em que a estrada vinda do parque se une
à rodovia principal leste-oeste. Paramos e entramos na rodovia. De
lá, depois de uma garganta estreita, chega-se à própria cidade de
Bozeman. Agora a estrada sobe, rumando para oeste, e de repente me
sinto na expectativa do que vamos nos encontrar.
[Isto é um trecho do capítulo 13 de "Zen e a Arte da
Manutenção de Motocicletas" ("Zen and the Art of Motorcycle
Maintenance") - Robert M. Pirsig, 1974. Tradução: Marcelo Brandão
Cipola, ed. Martins Fontes]
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