Quick
index
main
eev
eepitch
maths
angg
blogme
dednat6
littlelangs
PURO
(C2,C3,C4,
 λ,ES,
 GA,MD,
 Caepro,
 textos,
 Chapa 1)

emacs
lua
(la)tex
maxima
 qdraw
git
lean4
agda
forth
squeak
icon
tcl
tikz
fvwm
debian
irc
contact

Logica-l: resposta pro Cifuentes (2021)

(De: https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/g/logica-l/c/gfesZC1aRW8/m/asH2QPYsAwAJ)


Oi Cifuentes!

Você leu os trechos que eu mandei?
Você entendeu? Não, né?
Você poderia por favor ter a humildade de reconhecer que NESTE MOMENTO você não tem as estruturas mentais necessárias pra entender o que está sendo discutido ali e que você vai precisar de mais esforço do que o habitual pra entender aqui lá?

Deixa eu te dar uma outra dica? Lá vai. Aliás, lá vão.
Você está agindo por impulso e tratando esse assunto como algo que TEM que ser ridicularizado.
Qualquer pessoa que tenha acompanhado minimamente as discussões sobre gênero dos últimos 10 anos sabe identificar muito bem que papel VOCÊ está fazendo e quais são os SEUS pontos cegos.

Esta lista é pública. Esses seus posts PODEM ficar mais famosos do que os seus artigos e PODE ser que nos próximos encontros ao vivo um monte de gente das gerações mais novas fique só olhando pra você à distância e pensando "lá vai aquele imbecil do Cifuentes".

Outra coisa: quando alguém escreve em all caps ou numa fonte muito grande as outras pessoas PODEM interpretar aquilo como gritos.

Aqui vão os links de novo e os trechos de novo.
   [[]], Eduardo.

https://silviacavalcante.blogspot.com/2020/10/diario-de-quarentena-sete-meses-depois.html
http://angg.twu.net/xs.html


--snip--snip--

A marcação de gênero nas palavras é arbitrária e variável nas línguas e não tem nada a ver com o significado da palavra no mundo biossocial (para usar os termos de Câmara Jr.). O que acontece em PB? Acontece que algumas palavras estão começando a ser marcadas gramaticalmente com gênero neutro para marcar uma não oposição no mundo biossocial: em português temos morfemas específicos para marcar feminino, que se opõe ao masculino, no mundo biossocial, mas o não binário não tem uma marcação gramatical específica. Ou não tinha. Não tinha. Porque agora tem: surgem os pronomes e as desinências de neutro para marcar gramaticalmente uma oposição biossocial. E aí eu estou usando a palavra oposição propositadamente: mesmo que a intenção dos indivíduos não-binários que sentiram a necessidade de serem referidos como "elu" e com a desinência -e, gramaticalmente agora elus se opõem ao masculino e ao feminino. Então, para substantivos (e aí os adjetivos por concordância) que tenham o traço [+humano] temos a oposição masculino / feminino / neutro: aluno / aluna / alune; ele / ela/ elu; dele / dela / delu; cansado / cansada / cansade. (OBS: Reparem que não estou marcando o -o das palavras masculinas, porque não é morfema de gênero, e, sim vogal temática.)

(...)

E se a gente fizer uma busca na internet, verá que várias línguas estão usando formas gramaticais de marcar a linguagem neutra, ou a linguagem inclusiva de gênero. Vocês podem procurar por "gender inclusive language" e vão achar vários artigos falando em como é esse uso em diversas línguas. Eu, particularmente, fiquei feliz quando vi que é uma tendência linguística de amplo espectro. Então, morfologicamente, não há problema algum em linguagem neutra. Há problema quando a gente não sabe fazer análise morfológica e confunde gênero gramatical com gênero no mundo biossocial. E os morfemas e pronomes só são usados para palavras que designam serem [+humanos], porque a questão da marcação é uma necessidade dos indivíduos não-binários. E isso nos leva ao segundo ponto dessa (não tão breve assim) explicação:

Por que isso acontece? A Sociolinguística está aí para nos dizer que esse fenômeno da marcação de gênero é um fenômeno variável socialmente motivado. Língua é identidade, e se um grupo de indivíduos (um grande grupo, diga-se de passagem) motivado por razões sociais marcar linguisticamente sua identidade, essa marcação é tão válida quanto quaisquer outras manifestações de identidade linguística.

A gente sabe disso meio que informalmente com determinados dialetos urbanos que surgem, como, por exemplo, o dialeto pajubá, que tem origem em algumas palavras de origem das línguas africanas e é usado por determinados grupos: de religiões afrodescendentes como umbanda e candomblé e também pela comunidade LGBT. A gente também reconhece variação linguística dialetal quando identificamos traços característicos dos subfalares do Norte e dos subfalares do Sul do Brasil, pra usar os termos de Antenor Nascentes. A gente sabe disso quando determinados fenômenos linguísticos são característicos de determinados grupos sociais, como por exemplo a regra variável de concordância verbal (nós vai / nós vamos) que muda a medida que o nível de escolaridade dos indivíduos muda.

(...)

Tenho visto também as pessoas que são a favor das formas com pensamentos prescritivistas: "isso é o certo", "todo mundo tem que falar assim", "essa linguagem é melhor do que todas as outras". Não, não mesmo. É o certo no sentido de que qualquer variedade linguística de uma determinada língua é válida. Mas não é fazendo manual prescritivista que as pessoas vão passar a usar a linguagem neutra. Então, menos prescrição do ponto de vista de quem defende, e mais descrição linguística. Aqui, eu fiz uma breve análise morfológica baseada em Câmara Jr. Mas não sou morfóloga, sou sintaticista, e há várias outras abordagens sobre gênero gramatical dentro de diferentes quadro teóricos que podem explicar com muito mais propriedade o que eu escrevi no início desse texto. Mas eu quis mostrar uma abordagem dentro de um quadro teórico que dá conta do fenômeno que está aí, em diversas línguas, não só o Português Brasileiro. Um fenômeno que está aí independentemente de corrente política. O que me leva ao último ponto: não sejam reducionistas.

Tenho visto postagens criticando o uso da linguagem neutra fazendo uma oposição: "a população está pagando 50 reais o quilo do arroz e a esquerda quer ensinar pronome neutro". Então, não sejamos reducionistas assim. Não é porque estamos passando por um momento de crise econômica que a gente não pode discutir fenômenos linguísticos relevantes para o estudo da sociedade. Se fosse assim, a gente vai estudar o quê? A gente vai discutir o quê nas nossas escolas públicas? Não vamos discutir marxismo nas escolas públicas, porque as crianças não têm comida. Não vamos ensinar logaritmo de base negativa, porque nossas crianças passam fome. Não vamos discutir ciclo de Krebs, porque nossas crianças não têm comida para alimentar suas células. E é isso o que a gente quer? Não! A gente quer poder discutir dialetos legítimos socialmente e lutar para que nossa sociedade seja menos desigual. Ambas as discussões são válidas e uma não se opõe a outra.