David Graeber: "Debt", capítulo 5 - "passa o sal?"O "Debt: The
First 5,000 Years" do David Graeber foi um dos meus livros mais
prfereridos de todos durante vários anos.
5. Breve tratado sobre os fundamentos morais das relações econômicasPara contar a história da dívida, é necessário reconstruir como a linguagem do mercado passou a permear cada aspecto da vida humana - chegando a influenciar a terminologia para expressões morais e religiosas contrárias a ele. Já vimos como os ensinamentos védicos, assim como os cristãos, acabam dando o mesmo passo curioso: primeiro descrevem toda a moral como dívida, mas depois, cada um à sua maneira, demonstram que a moral na verdade não pode ser reduzida à dívida, pois deve ser fundamentada em outro aspecto. Mas fundamentada em quê? As tradições religiosas preferem respostas cosmológicas amplas: a alternativa à moralidade da dívida consiste no reconhecimento da integração com o Universo, na vida à espera da iminente aniquilação do Cosmos, na absoluta subordinação à deidade ou na passagem para outro mundo. Minhas metas são mais modestas, então tomarei a direção oposta. Se quisermos de fato entender os fundamentos morais da vida econômica e, por extensão, da vida humana, creio que devemos começar pelas pequenas coisas: os detalhes cotidianos da existência social, o modo como tratamos nossos amigos, inimigos e crianças - geralmente com gestos tão pequenos (passar o sal, filar um cigarro) que quase nunca paramos para pensar neles. A antropologia tem nos mostrado como os modos de organização dos seres humanos são diferentes e numerosos. Mas ela também revela algumas afinidades notáveis - princípios morais fundamentais que parecem existir em todos os lugares e que sempre tenderão a ser invocados toda vez que as pessoas trocam objetos de lugar ou argumentam sobre o que os outros lhes devem. Um dos motivos que fazem da vida humana algo tão complicado, por sua vez, é o fato de muitos desses princípios se contradizerem. Como veremos, eles estão o tempo todo nos levando em direções radicalmente diferentes. A lógica moral da troca, e portanto da dívida, é apenas uma; em qualquer dada situação, é provável que princípios completamente diferentes possam ser aplicados. Nesse sentido, a confusão moral discutida no primeiro capítulo não é nova; de certo modo, o pensamento moral é fundado nessa tensão. Para entender realmente o que é a dívida, portanto, será necessário entender como ela é diferente de outros tipos de obrigações que os seres humanos podem ter uns com os outros - o que, por sua vez, significa mapear quais são essas outras obrigações. Ao fazermos isso, no entanto, defrontamo-nos com alguns desafios peculiares. A teoria social contemporânea - inclusive a antropologia econômica - surpreendentemente oferece pouquíssima ajuda nesse aspecto. Há uma literatura antropológica vasta sobre dádivas, por exemplo, a começar pelo Ensaio sobre a dádiva, do antropólogo francês Mareei Mauss, de 1924, bem como sobre "economias da dádiva" que funcionam baseadas em princípios completamente diferentes dos que norteavam as economias de mercado - mas, por fim, quase toda essa literatura se concentra na troca de presentes, assumindo que sempre que uma pessoa oferece alguma coisa, esse ato acarreta uma dívida, e o presenteado tem de retribuir com algo equivalente. De modo muito parecido ao que acontece nas grandes religiões, a lógica do mercado tem se insinuado até mesmo no pensamento de quem se opõe a ele de maneira mais explícita. Assim sendo, terei aqui de começar de novo e criar uma nova teoria, praticamente do zero. Parte do problema é o lugar extraordinário que a economia ocupa atualmente nas ciências sociais. Em muitos aspectos, ela é tratada como um tipo de disciplina mestra. Espera-se que quase todas as pessoas que administram algo importante nos Estados Unidos tenham algum treinamento em economia, ou pelo menos tenham algum conhecimento de seus princípios básicos. Consequentemente, esses princípios passaram a ser tratados como lugar-comum, quase como certezas absolutas (sabemos que estamos diante de um lugar-comum quando, ao questionarmos o outro, sua primeira reação é nos tratar como completos ignorantes - "você provavelmente nunca ouviu falar da Curva de Laffer"; "com certeza você precisa fazer um curso básico de economia" -, ou seja. a teoria é tida como algo tão obviamente verdadeiro que ninguém entende como alguém pode discordar dela). Além disso, os ramos da teoria social que recorrem a certo "status científico" - a “teoria da escolha racional", por exemplo - partem das mesmas suposições sobre psicologia que os economistas; supõem que a melhor maneira de interpretar os seres humanos é como atores egoístas que estão sempre calculando como tirar a melhor vantagem de qualquer situação, como obter o melhor lucro, prazer ou felicidade com o menor sacrifício ou investimento - algo curioso, considerando que a psicologia experimental já demonstrou repetidas vezes que essas suposições simplesmente não são verdadeiras. Há muito tempo existem aqueles que desejam criar uma teoria da interação social fundamentada em uma visão mais generosa da natureza humana - insistindo que a vida moral se caracteriza por algo além da vantagem mútua: que ela é motivada sobretudo por um senso de justiça. A palavra-chave aqui se tornou "reciprocidade", ou senso de igualdade, equilíbrio, justeza e simetria, incorporada na nossa imagem de justiça como uma balança com dois pratos. As transações econômicas eram apenas uma variante do princípio da troca equilibrada - uma variante que tinha a famigerada tendência de dar errado. Mas, se examinarmos mais de perto essas questões, descobriremos que todas as relações humanas são baseadas em alguma variação da reciprocidade. Nas décadas de 1950,1960 e 1970, tornou-se uma febre pensar nessas questões, na esteira daquilo que, na época, se chamava "teoria da troca", desenvolvida em variações infinitas, da teoria da troca social, de George Homans, nos Estados Unidos, ao estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, na França. Lévi-Strauss, que se tornou uma espécie de deus intelectual da antropologia, apresentou a tese extraordinária de que a vida humana podia ser imaginada como constituída de três esferas: linguagem (que consiste na troca de palavras), parentesco (que consiste na troca de mulheres) e economia (que consiste na troca de coisas). Todas as três, insistia ele, eram governadas pela mesma lei fundamental da reciprocidade. Hoje o prestígio de Lévi-Strauss está em declínio, e tais declarações extremadas, em retrospecto, parecem um tanto ridículas. No entanto, não houve quem propusesse uma nova e corajosa teoria em substituição a essas ideias. Em vez disso, as suposições simplesmente se retiraram para segundo plano, Quase todas as pessoas continuam pressupondo que, em sua natureza fundamental, a vida social é baseada no princípio da reciprocidade e, portanto, que toda interação humana pode ser mais bem compreendida como um tipo de troca. Se isso for verdade, então a dívida realmente é a raiz de toda moralidade, porque a dívida é o que acontece quando falta restabelecer algum equilíbrio. Entretanto, toda a justiça pode realmente ser reduzida à reciprocidade? Não é nada difícil imaginarmos formas de reciprocidade que não pareçam particularmente justas. "Aja com os outros da maneira que gostaria que agissem com você" poderia ser um excelente fundamento para um sistema ético, mas, para a maioria de nós, "olho por olho" evoca menos a justiça do que a brutalidade movida pela vingança. "Amor com amor se paga" é um sentimento agradável, mas "eu coço suas costas e você coça as minhas" é um atalho para a corrupção política. De modo inverso, há relações que parecem claramente morais, mas que não têm nada a ver com reciprocidade. A relação entre mãe e filho é um exemplo citado com frequência. A maioria de nós adquire o sentido de justiça emoral primeiro com os pais. Porém, é extremamente difícil ver a relação entre pais e filhos como particularmente dotada de reciprocidade. Estaríamos então propensos a concluir que não se trata de uma relação moral? Que não tem nada a ver com justiça? A escritora canadense Margaret Atwood abre um livro recente sobre dívida com um paradoxo semelhante:
A maioria de nós não teria tantas dúvidas. Tal comportamento parece monstruoso e inumano. Ernest certamente pensava da mesma maneira: ele pagou a conta, mas nunca mais conversou com o pai. E, de certa forma, é justamente por isso que apresentar uma conta desse tipo parece tão ultrajante. Ajustar contas significa que as duas partes serão capazes de se distanciar. Ao apresentar a conta, o pai sugeriu que não tinha mais nada a ver com o filho. Em outras palavras, embora a maioria de nós possa pensar no que se deve aos pais como uma espécie de dívida, poucos de nós se imaginam capazes de realmente pagá-la - ou mesmo que essa divida deva ser paga. Contudo, se ela não pode ser paga, em que sentido se trata de uma "dívida"? E se não é uma divida, o que ela é? Um dos lugares óbvios para buscarmos alternativas é naqueles casos de interação humana em que as expectativas de reciprocidade parecem dar com os burros n’água. Os relatos de viajantes do século XIX, por exemplo, são repletos de casos assim. Missionários que trabalhavam em determinadas regiões da África muitas vezes se surpreendiam com as reações que recebiam quando receitavam medicamentos. Vejamos um exemplo típico, nesse caso de um missionário britânico no Congo:
Nas primeiras décadas do século XX, o filósofo francês Lucien Levy-Bruhl, em uma tentativa de provar que os "nativos" tinham uma lógica totalmrnte diferente, compilou uma lista de casos semelhantes: a lista continha, por exemplo, a história de um homem salvo de um afogamento que pediu à pessoa que o salvara algumas roupas para vestir, ou de outro que, depois de receber cuidados c recuperar a saúde após ter sofrido o ataque violento de um tigre, pediu uma faca. Um missionário francês que trabalhava na África Central afirmou que coisas desse tipo aconteciam regularmente: "Você salva a vida de uma pessoa e algum tempo depois recebe uma visita; agora você lhe deve uma obrigação, e só vai se livrar dela dando presentes". Ora, com certeza quase sempre há algo de extraordinário em salvar uma vida. Tudo que diz respeito ao nascimento e à morte tem alguma ligação com o infinito e, por isso, deixa de lado todos os meios habituais de cálculo moral. Talvez por isso histórias como essas tenham se tornado quase um clichê nos Estados Unidos durante minha infância e adolescência. Quando criança, eu me lembro de terem me contado que, entre os inuítes (às vezes mudavam para budistas ou chineses, mas curiosamente nunca para africanos), quando uma pessoa salva a vida de outra, ela é considerada responsável por cuidar daquela pessoa para sempre. Isso é uma afronta ao nosso senso de reciprocidade. Mas, de certa forma, estranhamente também faz algum sentido. |