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Daniel e iniciativa

Escrito em 5/nov/2012.
Postado originalmente neste blog em 5/mai/2013.
Postado no Facebook em 24/10/2015.
Incluído no zine Falta misandria no movimento Trans.


Nas discussões sobre assédio e estupro que eu vejo eu sempre tenho a sensação de que falta alguma coisa. Nos últimos dias algumas idéias sobre o que falta começaram a ficar mais claras pra mim - vou tentar escrever o INÍCIO disto agora, mas não sei se vai dar pra escrever tudo de uma vez.

Durante dois anos, quando eu tava no fim da graduação e no início do mestrado, o meu melhor amigo era um cara chamado Daniel. Uma vez ele me disse isso aqui:

"Cara, se eu tivesse com as minhas amigas um décimo da intimidade que você tem com as suas eu já tinha comido elas há muito tempo."

Volta e meia eu me lembro disso - e de outras coisas que ele dizia - com horror e nojo. Esse tipo de macheza dele, aliás, teve a ver com o que fez com a gente se separasse, mas vou deixar isto pra depois.

Então: o Daniel não PODIA ter mais intimidade com as amigas dele, porque elas sabiam que ele estava sempre esperando a oportunidade de poder agarrá-las.

Pro Daniel as coisas funcionavam assim: quando duas pessoas estão dando mole uma pra outra em algum momento alguma "toma a iniciativa". Aí elas se beijam. Se der certo, depois elas trepam.

Se uma amiga do Daniel deixasse de ser defensiva com ele ele poderia achar que ela "estava dando mole pra ele", e ele "tomaria a iniciativa".

Vou chamar a posição do Daniel de "posição de predador".

Quando os nossos amigos são predadores em potencial a gente tem que tomar muito cuidado com eles. Se a gente diz que gosta deles eles podem interpretar isto como uma espécie de "dar mole", e aí eles podem ficar - deixa eu usar um termo do próprio Daniel aqui - "apaixonados"; eles ficam viajando em expectativas delirantes, sobre as quais eles não conseguem conversar - e eles entram num modo de funcionar em que eles começam a pensar o tempo todo se podem tomar a iniciativa ou não. É difícil tirá-los disso, e o único modo óbvio é cortar essas expectativas, "dar um fora" neles. Isso magoa, e não queremos fazer isto, então não podemos nem dizer muito abertamente que gostamos deles.

Uma coisa que vale a pena pensar é: porque é que os Daniéis acham que a única coisa realmente concreta numa relacionamento, o ápice de tudo, a finalidade última de todas as tentativas de aproximação, e o que as pessoas mais almejam - é sexo?

Essa pergunta é central sim, mas me toquei de que a gente pode pensar sobre ela melhor ainda se a gente for por uma outra direção.

Eu faço um esforço enorme pra sinalizar pra todo mundo que eu não compactuo com machezas, que os meus valores são outros, que eu até já perdi empregos por ser incapaz de lidar com machezas, e tal. Mas isso só funciona parcialmente.

Em algumas épocas eu acho pessoas muito mais fascinantes do que eu deveria. É meio perturbador pra mim e pra elas, e é bem possível que eu olhe pra elas de modos incômodos. Mas não sei direito, é difícil conversar sobre isto.

Eu trabalhei a minha vida toda pra não ser visto como um "predador" - ou seja, como alguém insensível e perigoso com quem é impossível conversar. Eu sei mais ou menos os porquês disto: porque eu sei que num mundo cheio de Daniéis as minhas carências mais importantes são impossíveis de satisfazer. Por exemplo - vou ter que usar termos curtos - intimidade, confiança, poder pensar junto sobre coisas difíceis, poder conversar sobre inseguranças.

O que me intriga é porque é tão difícil ser reconhecido em meios mais heteros - que são meio novidade pra mim, porque passei mais de 10 anos afastado deles - como alguém que não vai ser um "predador" de jeito nenhum. Quando eu quase só andava com lésbicas e gente trans era mais fácil.

O que eu saquei nos últimos dias - pode ser uma idéia ingênua e pode ser viagem, mas achei que valia a pena compartilhar - é que o problema tem a ver com privilégio. Por mais que eu não queira ser um predador eu posso ser um predador. Vou explicar: PODE SER que o meu discurso seja só pose; um Daniel que soubesse passar uma aura de confiabilidade como a que eu tento passar usaria isso pra comer todas as amigas dele - e o tal "privilégio" está em que no mundo hetero as pessoas acreditam que os homens sempre têm Daniéis dentro de si, e uma manifestação do Daniel Interior é algo tão normal que ninguém pode ser muito culpado por isto.

Várias tentativas das mulheres dizerem que elas são seres sexuais também, com desejos próprios e tal, são postas em termos correspondentes a estes: uma mulher com desejos pode a qualquer momento revelar o seu Daniel Interior.

Eu sempre tive muito problema com essa história de "iniciativa". Uma das coisas que mais me levou à beira do suicídio quando eu era adolescente foi uma amiga minha, por quem eu era muito apaixonado, me pondo sempre contra a parede e me mostrando que eu deveria tomar a "iniciativa" - mas aquilo era algo totalmente alienígena à minha personalidade, e das poucas vezes que eu tentei tomar algo parecido com essas iniciativas foi patético.

Aos poucos bem depois eu fui conseguindo relações baseadas em outros tipos de aproximação que não tinham nada a ver com essa "iniciativa". Mas deu muito trabalho.

(Como eu falei, isto era o início. Vou mandar isto aqui e ver o que rola. Repassem pra quem vocês quiserem e se quiserem...)



Eduardo Ochs
eduardoochs@gmail.com
http://angg.twu.net/
Imagem: um desenho que eu fiz do Daniel em 1999.
(Só que ele tinha um cinto de spikes, não um bracelete.)